Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 157: Carne, Ato 4
— Eu não vou aguentar muito…! Corre com isso!
A urgência de Emily em avisar instalou a noção verdadeira do que se passava no largo corredor: a chance de vitória se sustentava em meros segundos e perder tempo demais significa morte.
Não era a hora de hesitar e, por sorte, o pensamento do usuário de chamas seguiu a mesma linha estabelecida pela Attwood.
— … Beleza…! — Com foco no pensamento, acumulou o restante da energia térmica em excesso presente no corpo na palma da mão. — TOMA ESSA!
Uma trilha de chamas explodiu do braço, moldada na forma rudimentar de uma flecha alaranjada, cujo brilho irrompeu pelo espaço em menos de um segundo, culminando em um estouro — BOOM!
A criatura cheia de membros se partiu em dezenas de pedaços, sorvida no fogo destruidor, a ponto de fazer pensar sobre a extrema conveniência de ele ter escolhido ir ao hospital.
— … Acabou…? — Ann questionou, ainda trêmula por conta da adrenalina.
— Claro que não…! — A voz alterada de Emily ecoou, ríspida e rachada. — A gente ainda tem que sair daqui com vida!
Ela parou de tocar a palavra escrita no chão — “preso” — puxando um pouco de ar fresco com vontade, fazendo parecer ter sido a primeira respiração do dia.
Sem a necessidade de elaborar, a garota estava exausta.
— Haah… Haah… — encostou na parede à esquerda, tocando as proximidades do nariz. — O que vocês vieram fazer aqui, hein?
A mão direita da jovem juntou uma viva linha de sangue, inspecionada com um misto de curiosidade e desgosto pelos olhos verdes.
— Ugh… Ainda caiu por cima da minha roupa… — grunhiu. destilando uma atmosfera hostil. — Anda, desembuchem! Eu falei com vocês!
O grito enfurecido despertou os dois do transe pós-perseguição com um sobressalto. Steve juntou os braços perto do corpo e, acuado, demorou um pouco para responder.
— Eeeh… A gente veio aqui atrás de você… Foi isso…
— É, isso parece bem óbvio para mim, gênio — retrucou de forma azeda. — Mas, por quê? Eu acho que deixei bem claro que eu não quero papo com vocês dois, assassinos.
A palavra cortou fundo nos corações de ambos, gerando respostas diferentes e, quando Steve resolveu se calar e contemplar, Ann tomou enfim a coragem de dizer algo em favor dos dois.
— A gente veio aqui para discutir a possibilidade de trabalharmos juntos para manter a segurança da cidade e…
— Eu me recuso — interrompeu, seca. — Não acabou de ouvir o que eu disse? Não vou trabalhar com vocês, não vou andar com vocês e não vou me associar com os responsáveis pelo que aconteceu lá.
— Eu… compreendo que você se sinta afetada por nós, Emily… Eu realmente entendo, mas… — A moça de marias-chiquinhas tentou. — … O que vai ser da gente, como um todo, se não unirmos forças…?!
— Hunf… Outra vez você, com esse discursinho que te convém… “Precisamos unir forças”, “temos que lutar juntos”... Olha, eu até concordaria, mas não se tratando de vocês.
O tom furioso escapava ao fim de cada palavra, ficando maior e mais natural. De olhar rígido no horizonte branco à frente, Emily se reergueu, um pouco mais descansada.
— Eu só salvei vocês dois agora porque não faz parte do meu feitio deixar alguém morrer assim, de graça… então nada de acharem que eu tô querendo ser amiguinha, nem nada do tipo!
A postura dominante sequer abria espaços para pensarem em respostas, posto a própria aura da presidente de clube descer sobre ambos uma pressão esmagadora.
— E vocês podem até estar certos sobre isso, mas eu nunca, ouçam, NUNCA vou perdoar quem me tirou as coisas que mais me importavam!
Ela virou de costas e continuou a falar.
— Eu não consigo olhar para vocês sem sentir nojo… Não consigo falar com vocês sem ter vontade de gritar e xingar, e se eu não fosse quem eu sou, eu garanto que os dois já estariam mortos… porque eu odiaria pensar que as pessoas que se importam com vocês ficariam tristes.
Devagar, começou a pegar distância, os cortes e arranhões do acidente de bicicleta se fazendo visíveis, em meio à pouca luz trazida pela falta de energia.
— Aproveitem a oportunidade e fujam enquanto vocês dois podem, mas lembrem de uma coisa: não vai ter uma segunda vez. Se eu topar com qualquer um fazendo algo que não deve, não vão ter tanta sorte.
As últimas palavras do discurso frio deram lugar aos passos ritmados de Emily, apressados com rumo à saída, e embora não conseguissem se levar a dizer nada, o sentimento de insatisfação crescia.
“Não…”
Uma queimação subiu do fundo do estômago de Steve, insatisfeito com o resultado.
“Não… Não é assim que vai ser…”
Ele não iria aceitar o papel de vilão com tanta facilidade, ciente de que Ann também não o merecia. As circunstâncias daquele dia não foram tão simples quanto Emily podia fazer soarem.
“... Não mesmo…!”
E ele a mostraria a verdade, quisesse ouvi-la ou não.
— … Então você vai MESMO ignorar o fato de que a gente se arrepende amargamente do que fez, Emily?!
A pergunta reverberou por cada canto do andar e, por fim, a fez parar.
— Eh…? — A súbita exclamação do Evans fez o sangue de sua companhia saltar no corpo.
A manipuladora de insetos o observou com uma expressão vazia de surpresa; desprovida de maiores ideias, ouví-lo soou como a melhor delas, sentindo algo promissor de escutá-lo falar.
Era a primeira vez em que Ann-Marie via tamanha determinação nele, também.
— Eu fiz, tá?! Eu tentei matar as suas amigas! — exclamou ao topo dos pulmões. — Eu não minto e nem tento negar, tá bom?! EU TENTEI ME LIVRAR DAS SUAS AMIGAS!
— … Eu sei disso — rebateu, ainda gélida. — E o que mais tem? Já ouvi essa história. Se quis só admitir, que seja.
Ao vê-la se distanciar outra vez, ele reagiu de imediato.
— Mas eu não consegui! Não consegui porque não era para ser assim! Não combina comigo! — deu um passo à frente. — Acha mesmo que a gente queria ter feito o que fizemos?! Você fala sobre perder coisas importantes, mas não se coloca no nosso lugar quanto a esse mesmo assunto…!
A coragem pulsando nas veias o deu energia para vencer o espaço entre eles, passo por passo.
— Ele ameaçou as nossas famílias, colocou em cheque tudo o que amamos, mentiu, enganou, nos explorou…! Aquele cara passou uma corda nos nossos pescoços e nos deixou a um chute de distância do precipício…! Não tivemos escolha!
Ela não olhava de volta, mas nem os tremores de ódio o impediram de continuar seguindo em frente.
— Você perdeu seu clube… suas amigas… e a gente só consegue imaginar uma fração do que você tá passando, mas ninguém aqui tá menosprezando a sua perda, Emily, até porque, se não tivéssemos ido… se não tivéssemos feito…
A forte vontade foi, um pouco, substituída por um grande pesar. Os passos pararam, a visão caiu e tudo o que ele pôde ver foi o chão, acinzentado pela própria sombra.
— … então teríamos sido nós na sua posição agora, cientes de quem odiar, mas incapazes de qualquer coisa a respeito…! Então, nos ouve! Você quer ter o seu lado aceito e compreendido e tudo bem… mas não dá para só ignorar a realidade e achar que é tão simples!
Emoções engasgaram na garganta, pedindo para escapar e sair e, ao fim de mais um passo, as portas se abriram para as proclamações mais intensas.
— Acha que eu não sinto culpa? Acha que eu não sinto nojo…? — A voz dele começou a rachar. — Acha que eu penso que tá tudo bem e que eu não tenho nada haver com isso…? Acha que eu durmo direito de noite…?
“Steve…” A face de Ann se contorceu em angústia.
— Eu nunca deixei de sentir o cheiro do sangue e da fumaça… lembro dia e noite dos rostos de agonia nos corpos, que de algum jeito ainda tinham um rosto intacto… — Lágrimas escorreram. — Me lembro deles se agarrando aos restos de vida…!
O último sorriso da garota cujo torso foi dividido ao meio ameaçaram puxá-lo para o poço mais fundo do desespero, do qual escapou com pura determinação.
O rapaz pressionou os dentes uns contra os outros, capturando a ponta da língua e persistindo até sentir o sabor férrico do próprio sangue — um truque aprendido com ele.
Nos últimos dias, aprendeu o quanto a dor física tinha o potencial de trazê-lo de volta ao “aqui e agora”. De certa forma, o sofrimento da carne funcionava como um alarme; uma âncora para os devaneios da mente.
Não era uma solução saudável, porém, foi a que o acalmou o suficiente para mencionar as palavras seguintes.
— … Se depois de saber disso, você ainda quiser nos considerar os vilões da história, tudo bem por mim… Já me alivia o bastante ter tirado essa do peito, tanto por mim, quanto por ela.
O foco deu lugar a um senso de paz e, enfim, as últimas palavras foram ditas.
— Mas as suas próprias palavras valem tanto para você, quanto para mim. Eu vou proteger Elderlog com tudo o que eu tenho, e se tiver que ser, vou ficar forte o suficiente até para te matar, se for o caso — imitou a frieza da mesma ao dizer. — Fica atenta ao que vai fazer de agora em diante.
O menino com cabelos de labareda virou de costas para a usuária de palavras, andando de volta em direção à amiga.
— Vamos, Ann. Eu consegui descansar um pouco mais, então vai dar pelo menos para fugir.
Repousou a mão espalmada sobre seu ombro, levando no rosto um semblante distante, embora focado. Ele tinha em vista a janela ao fim da reta e o sol além da vidraça.
— Se aqueles caras são realmente da CIA, não vai demorar para bombardearem isso aqui ou coisa assim; tentar vencer não vale o preço das nossas vidas, então é melhor nem tentar.
A palma exercia no braço uma contínua e crescente pressão.
— Vem. Vamos embora. Eu te protejo até a gente chegar.
Ele começou a andar na frente, urgindo-a para que seguisse; antes de ir, a jovem olhou para trás, contemplando a postura ainda imóvel de Emily, na outra ponta.
— … Tô indo…! — Mas não houveram objeções.
Chamar o resultado de “insatisfatório” seria usar uma palavra fraca. As promessas ali feitas criaram entre eles um novo tipo de ressentimento, baseado na antecipação pela primeira e menor falha vinda do outro lado.
Construiu-se assim uma ponte de animosidade; tanto Emily quanto Steve se fizeram claros o bastante e a cooperação passou a compor só mais um sonho e da maneira mais amarga, o plano de Ann encontrou seu contra-objetivo.
“Se tiver que ser assim, que seja…”
O rapaz compreendia a magnitude das próprias dores e lutas e não seria ela quem os negaria a chance de lutar em despeito dos próprios pecados; fosse com ou sem ajuda, ele e Ann daria um jeito.
“... Um jeito… Mas qual jeito…?”
Absorto nos próprios pensamentos, o rapaz demorou a perceber a movimentação estranha vinda da sala ao lado.
— Ajuda… Me… ajuda…
CLUNK! — A porta da sala à esquerda se abriu com um impulso brusco, revelando a grande massa de carne em seu interior, estendendo os tentáculos para envolvê-lo.
“Eh…?” Despreparado, o ímpeto de sair do lugar não teve tempo de se instalar.
— AJUDAAAA! — A criatura fez um movimento semelhante a um salto, visando agarrá-lo.
— STEVE…! NÃO! — Ann esticou o braço para alcançá-lo, futilmente.
“... Mas o quê…?” Se perguntou por dentro, ainda tentando processar. “Agora, eu…”
Sem tempo para reagir. Criar fogo demoraria demais e sair do lugar era fora de questão. Os milésimos se esticaram em horas, a respiração presa se perdia aos poucos. O choque dos apêndices viria logo e…
— Hunf… Você e aquele seu papinho chamaram a atenção disso…!
— Urgh…! — Em reflexo, cobriu o rosto com os braços, estranhando a falta de um resultado.
Os tentáculos não foram sentidos tocando a pele e quando abriu os olhos, notou o motivo; assim como antes, os dois se encontravam presos ao chão.
— Que ideia genial essa de gritar alto para todo mundo ouvir…! — disse Emily, ainda um pouco azeda. — Parece que vai acabar nas minhas mãos mesmo, né?
Ela havia corrido até a palavra escrita no chão e nela pisou, o contato de seu pé ativando o efeito.
— Ei, menina — olhou com afiação para Ann, em direção específica à garrafa de álcool que levava. — Me joga isso aí, agora.