Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 156: Carne, Ato 3

— SHAAAAAAAAAAAAAAK!

A labareda alaranjada tomou o corredor em meros dois segundos, dando início aos sons de dor emitidos pela criatura digna de pertencer a um filme de baixo orçamento sobre alienígenas.

Em frente a ela, Steve soltou até o último átomo do ar quente em seus pulmões, focado na destruição absoluta da coisa que teriam de pensar sobre apenas caso sobrevivessem.

Shiiii… — O cheiro terrível de carne queimada atingiu os narizes e, no centro, puderam ver a forma se debater em torno de si mesma, arrasada pela elevada temperatura.

— Ann, eu acho que a gente vai precisar de uma mudança de planos…!

As tubulações de ventilação acima de suas cabeças liberaram barulhos estrondosos, de movimentação; algo se locomovia pelo sistema de dutos em alta velocidade, mirando-os como presa.

— … Vamos ter que fugir daqui…!

Sem pensar, Steve agarrou a mão da amiga e a puxou para ficar de pé, fazendo os dois trocarem olhares e deixando-a notar os resultados do grande gasto de energia no ataque anterior.

— Não se preocupa, eu tô bem — disse ele, falseando em respirar. — Ao menos, bem o bastante para chegar até lá embaixo…

Uma trilha de sangue fervente e borbulhante escapava pela narina esquerda, e a testa coberta em suor emanava uma fraca, porém potente, temperatura.

Steve havia superaquecido e se continuasse a elevar a própria temperatura, poderia desmaiar.

— … Tá… Tá bom…! — concordou, voltando para a realidade. — É… é mesmo a nossa única chance…!

— Boa…! — Ainda puxando-a, começou a correr na frente. — Vamos!

A monstruosidade de carne permanecia viva, embora o dano do fogo perdurasse. Devagar, os tentáculos e apêndices tentavam se unir e regenerar, obtendo pouco sucesso.

A massa, porém, obstruía o único caminho fácil até o lance de escadas e, para evitar mais perigos, dar a volta seria a saída óbvia.

— Ann, não tá machucada?! — perguntou, alterado pela adrenalina e o cansaço. — Tá tudo bem?!

Na passagem pelos corredores longos e vazios do terceiro andar, o manipulador de chamas notou a feição cabisbaixa de sua companhia.

— Se tiver mal ou coisa assim, só me avisa! Eu acho que tem como a gente se segurar nas pontas e…

— … Não é isso, Steve… — respondeu em tom baixo. — É só que… eu tô sendo inútil aqui, entende?

— Huh? — De primeira, ele não pensou muito a respeito, mas bastou olhar um pouco mais fundo. — Ah…

— Eu tô sendo um peso morto para nós dois aqui dentro!

Pelo lado mais utilitário do contexto, ela tinha plena razão; desde que entraram no grande prédio, o usuário de chamas tem feito a grande parte do trabalho.

Somente os ataques dele tinham alguma mísera eficiência contra os monstros de carne, servindo do único modo de ataque e ferramenta de sobrevivência. Nesse contexto, não haveria como não se sentir inútil.

— Ei, Ann… Olha só…

Porém, o peso do relato serviu para lembrar que não somente de sua utilidade aparente que as pessoas são feitas e para alguém como ela, muito menos.

— Eu não vou ficar todo emotivo e fazer um discurso sobre como você e importante e tal, então, é você mesma que vai me mostrar isso.

— Huh…?! Do que diabos você tá falando?! Eu não tenho como bater naquilo e meus insetos não vão servir! Se não quer me chamar de “inútil” só para não ofender meus sentimentos, saiba que não precisa esconder, porque eu já sei…!

— Não, eu não tô falando disso! Olha lá — apontou para uma garrafa plástica em um carrinho transportador. — É sobre aquilo ali!

No centro do corredor escuro, um conjunto de ferramentas e objetos usados por enfermeiros se destacou aos olhos mais afiados e alertas do Evans.

Entre as gazes e ataduras, agulhas e bolsas de soro, um item em particular chamou mais a atenção.

— É isso! — pegou a grande garrafa na mão. — A gente acabou de ter um pouco a mais de chance agora! Ann, já sabe o que fazer!

— Eh?! — Mais desatenta, demorou para reagir direito ao objeto lançado em sua direção, segurando com certo desespero. — Ei, mas isso…! Agora… Agora a gente tem combustível!

— Esse vai ser o seu trabalho! — afirmou ele. — Por aqui deve ter uma sala onde a gente pode achar mais disso… Agora, onde será que fica…?

— Os andares são todos padronizados… — A atenção de Ann se prendeu nas marcas azuladas nas paredes do corredor, que culminavam em setas, indicando o caminho a se ir. — Essa linha azul… eu já vi ela nos outros dois andares… Leva para as salas de prontuário!

Um breve instante de silêncio veio ao fim da revelação e, junto, uma nova série de barulhos, vindos da ventilação. Felizmente, os sons pareceram mais distantes, rendendo tempo o suficiente para raciocinar.

— Eu só percebi agora, mas… Os andares têm estruturas basicamente iguais entre si! Droga, eu só não notei mais cedo porque a minha atenção ficou focada nos corpos…! — A jovem rosnou. — E considerando que isso tá certo… Ah, merda…

“Tô vendo que vai ser uma notícia ruim…” O rapaz antecipou, ouvindo com atenção.

— Steve, a sala onde isso aqui fica tá do outro lado do andar… — mostrou a garrafa, balançando em frente do rosto para mais ênfase. — Fica mais perto das enfermarias em si. Aqui tá com mais cara de ser a zona administrativa do andar.

— Real… — Também parou para observar os arredores. — Eu não vi um leito ou coisa assim até agora.

— É porque aqui não é o lugar certo — correu de volta até o início do corredor. — Olha, aqui tem explicando como a gente chega!

A grande placa presente na parede dos grandes acessos apontava com detalhes a localização dos serviços de utilidade para pacientes e acompanhantes, expressando-os em diferentes cores ao longo da planta do andar.

— Ali, a linha azul! Prontuários — apontou para um lado, antes de mover o dedo ao outro extremo do mapa.. — E aqui… a linha amarela! Vai nos levar para as enfermarias!

“Enfermarias 15 a 18” marcou o grande nome no exato tom de amarelo indicado pela linha. Segundo o exibível, bastaria que tomassem o corredor longo em sentido à esquerda, e em cerca de oitenta metros, chegariam ao ponto desejado.

— Vamos lá, a gente não tem como ficar esperando…! Se for para passar por cima daquela coisa, então que seja!

A garota destampou a garrafa de álcool isopropílico a 70% e, usando algumas das gazes e ataduras, improvisou um impulso para o poder de fogo de Steve.

— Wow…! — Ele suspirou, impressionado de verdade. — Eu não tinha pensado exatamente nisso, mas é muito melhor assim! Eu só vi molotov nos jogos…!

— Hehehe! Pois é agora que a gente coloca os conhecimentos de nerd à prova! Vamos!

O par recomeçou a corrida, trocando de rumo com determinação renovada, além de um novo plano, novo em folha.

— Eu não tenho dúvidas disso… o grito da Emily veio daqui! — falou a menina. — E se a gente não encontrou ela por esse lado, então…

— … Significa que só pode estar no outro! — completou. — Olha, eu até que dei a ideia de a gente fugir, mas…

— É, eu sei. Eu também nunca pensei em abandonar a Emily à própria sorte aqui, especialmente considerando que ela foi a razão da gente ter entrado! — interrompeu de forma bem-vinda, concluindo o raciocínio. — Não ia ser uma missão bem-sucedida sem ela!

— Falou e disse…! Mas, agora…

De volta ao ponto inicial da fuga, se depararam com uma zona limpa de aberrações. No chão, os restos transformados com sucesso em cinzas indicaram segurança.

— Eu sabia… Parecia bom demais para ser verdade!

Não passou de impressão; duas salas depois, de uma porta aberta, emergiu algo similar ao primeiro, possuindo o corpo de um novo funcionário.

— A… ajuda… Me… ajuda… — balbuciou o corpo, controlado como uma marionete, cordas móveis de carne pulsante e deixar os orifícios e saídas.

— Steve…

— Saquei — respondeu o rapaz, seco. — Esse cara não tem mais como ser recuperado… Eu sei disso.

— Me… AJUDA!

O que restou do funcionário começou um encontrão em alta velocidade em direção ao dois, ao menos sob os padrões da massa carnosa; descoordenados, os movimentos perdiam eficiência, tornando o processo lento e difícil de se assistir.

— Essa coisa tá zombando da humanidade dessas pessoas…

O fogo na mão esquerda do Evans se acumulou, aos poucos tomando forma, e a expressão em sua face, antes contemplativa e penosa, deu lugar a semblantes de raiva.

— Me… ajuda… ajuda…! Ajuda! — caiu no chão após ter desequilibrado, lutando para se levantar de novo.

O que há não muito tempo foi um humano agora rastejava, quase sem rumo, avançando centímetros miseráveis em direção a ele, aumentando a dor no coração de precisar presenciar tal cena.

— Eu vou acabar com isso… E vocês… vão poder descansar em paz. — apontou o fogo para a cabeça da “marionete”. — E depois disso…

O único tiro explodiu a mais de cinco metros dos dois, queimando vívido. O homem controlado jamais os alcançaria em quaisquer circunstâncias, embora seu clamor o tenha atingido.

— … Eu vou fazer o responsável por isso queimar…

O suspiro para si mesmo preencheu o ar de um novo peso, com o cheiro da carne incendiada. Ainda “vivo”, o organismo se esforçava para viver, perdendo mais e mais energia e matéria para as chamas, até desfalecer.

— Ali…!

A batalha, porém, estava longe de acabar, pois logo ao fim da exterminação daquele ser, um outro, ainda mais horrendo, surgiu logo em frente ao par.

— Caramba… — Ann deu um passo para trás, tentando manter alguma compostura. — Será que isso não vai ter fim…? É como se o hospital todo tivesse virado uma parte dessa coisa!

A abominação saída do duto se mostrou muito maior do que o antecipado pelos barulhos que fazia, além de capaz de proporcionar uma cena diversas vezes mais grotesca.

— Isso são… os corpos dos funcionários…?!

A massa gelatinosa e sangrenta consistia de uma imensa amálgama de numerosos tecidos com diferentes origens. No meio, a perna de um agente fardado e a cabeça de uma mulher se destacaram, junto de várias mãos, órgãos e olhos.

— Steve… Talvez a gente devia só ter fugido mesmo… — A voz trêmula irrompeu o ar pesado. — Isso… Isso aí já é demais…

Se locomoveu até ali como uma lesma, se espremendo devagar para caber no curto espaço do duto, ciente da trajetória como o ser racional que é.

Uma zombaria da vida e da natureza, tal qual do curso natural das coisas, pois, no instante em que as dezenas de pares de bocas se abriram, emergindo na superfície, o instinto natural os disse algo assombroso.

— Nos… ajude… Nos… ajude… Dói… Dor… muita… dor… só… dor…!

As pessoas moídas na aberração de proporções titânicas permaneciam vivas.

… … …

— Ann… Quando eu tinha cinco anos, eu matei o cachorro do vizinho com uma tijolada na cabeça.

A massa de carne deslizou devagar, deixando atrás um rastro rubro fétido, gerando uma resposta contrária na movimentação do garoto.

— Eu odiava aquele cachorro… Ficava latindo para mim, avançando… ele até me mordeu mais de uma vez…! Cara, eu só detestava aquele cachorro!

O coro humano de “me ajude” e “isso dói” batia contra as paredes das almas, e dezenas de membros dançavam em dor infinita.

— Aí, eu fiquei cansado… Um dia, eu peguei um tijolo que achei na rua e quando ninguém via… eu acertei o cachorro, bem no meio da cabeça… Até hoje eu lembro dos olhos dele saltando para fora… e do sangue… E o vizinho até hoje não sabe que fui eu quem matei o cachorro dele.

Logo, ficariam sem lugar para fugir, e uma mudança importante começava a tomar lugar na estrutura da massa orgânica humana.

— E aí…? Tem algum grande segredo para contar? Algo que nunca disse para ninguém… qualquer coisa…!

Os tecidos dançaram e um pedaço, devagar, começou a se destacar do corpo principal.

— É… Eu tenho… uma coisa…! — acompanhou a evasão, focada na cena horrenda. — Bem, não é como se ninguém soubesse, mas… Steve…

— O quê…?

— Eu… me sinto atraída por outras mulheres.

Tão logo a séria proclamação acabou, o pedaço destacado finalizou sua separação; contendo cerca de um décimo do tamanho do original, se mostrou muito mais móvel, usando um dos três pares de braços para apoiar sua massa e se locomover.

— Esse é seu grande segredo? Que você é lésbica?! — Os dois começaram a correr para longe. — Pensei que fosse ser uma parada absurda, tipo um assassinato ou ter atropelado alguém e fugir da cena!

— Ei! Para mim é grande coisa sim! Já é difícil falar isso sem te julgarem ou mudarem com você! Quase impossível!

Sendo perseguidos em alta velocidade, restava pouco ar para manter uma conversa.

— Se a gente sobreviver, eu peço desculpas direito, mas por agora… — estendeu a mão, criando outra bola de fogo. — Eu só te digo “foi mal”...! … Pega essa!

A esfera de fogo com o tamanho de uma bola de basquete colidiu em cheio, explodindo o amontoado em vários pedaços.

— Ali, um corredor mais na frente!

O caminho terminava em uma janela e se dividia a 90 graus em direita e esquerda.

— Chegando lá, vira para esquerda! — disse ela. — Lembra, esquerda! Nada de direita…!

Mas, um pouco antes de chegarem, outra surpresa tomou o caminho.

— Hein?! Se dividiu de novo?!

Outro amontoado de proporções similares ao primeiro apareceu, se colocando entre as duas saídas e impedindo qualquer movimentação adiante.

— Droga… E se a gente voltar, certeza que vão ter outros…! Ann… E aí? A gente foge ou vai?

— A essa altura, eu já nem sei…! — Os dois se distanciaram da criatura, aos poucos. — Qualquer caminho tem cara de morte!

— Parece que o hospital todo é isso… Eu não sei se vou ter energia para continuar queimando essas coisas… Na melhor das hipóteses, a gente pularia a janela, mas obviamente não é uma boa.

— Tá louco?! Aqui é o terceiro andar!

— Justamente, não é uma boa.

SHAAAAK… 

Os dois recuaram em resposta à lenta aproximação da bizarrice, que mais parecia “brincar com a comida”, escolhendo mover-se devagar de propósito.

— Vem…! Vem para cima! — Steve acumulou mais fogo ao redor do braço, sua respiração exibindo sinais de exaustão. — Vem, se quer morrer!

O blefe não podia ser mais óbvio e as chamas fracas, no máximo, só incomodariam um pouco. Focada neles, a criação distorcida decidiu parar de esperar, dando com o pé quebrado um largo passo.

— … Huh?

Ou, ao menos, foi o que tentou fazer, pois ao tentar, a sola sequer descolou do chão.

— Acerta logo isso! Vai, eu não consigo continuar pelo dia todo!

A voz vinda de trás ecoou com familiaridade, mas ao tentarem se virar, a viram com bastante dificuldade, pois seus próprios pés se recusaram a descolar do chão.

— Não fiquem me olhando! É difícil fazer isso! Anda, vai!

Era Emily. Vinda de um corredor adjacente, ela tinha as duas mãos em contato com o chão do andar, o forte brilho dos olhos verdes indicando estar com a habilidade ativa.

No chão, uma grande palavra escrita foi escrita em preto, seu efeito os dando uma última chance: “preso”.

— Eu não vou aguentar muito…! Corre com isso!

Um grande fluxo de sangue escorria de seu nariz, combinado com a face de dor para dizer que só teriam meros segundos para fazer a diferença.



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