Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne

Revisão: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 155: Carne, Ato 2

— Pelo amor de…

Ann voltou para trás, diante da visão horrenda no meio do segundo piso. Do teto, pedaços de vísceras desciam de uma saída de ventilação como serpentes sangrentas.

— Ugh… Steve, é melhor a gente correr com isso aqui. Eu não sei quanto tempo dá para ficar aqui sem ter pelo menos um mês de pesadelos…!

A jovem cobriu a boca com a própria mão, em marcha retrógrada para escapar da mera possibilidade das entranhas ganharem vida e saírem atrás dela.

— Um mês?! — Steve falou de longe, sua voz ecoando pelos corredores fechados. — Isso aqui é material para uma vida toda de trauma!

Os dois se reencontraram nas proximidades do acesso por escadas, em frente ao ponto de reserva dos prontuários. O espaço não lhes foi agradável desde o princípio, mostrando um prelúdio do que achariam, de cara.

Duas enfermeiras tinham seus corpos esparramados sobre a bancada a qual comumente usavam para referenciar os acompanhantes; tais quais os outros vários, os requintes de crueldade deixaram os cadáveres em estados irreconhecíveis.

Uma delas sequer tinha um rosto, sua ausência deixando jorrar rios de sangue e massa encefálica pelos registros e bancadas.

Pelo bem de suas próprias sanidades, a estada ali haveria de ser curta.

— Sem nenhum sinal da Emily — disse Steve, encarando os arredores com terror. — O grito não veio daqui… Foi mais de cima.

A falta de sucesso da garota a levou a não querer adicionar nada à discussão e, também igualmente desconcertada, resolveu mudar o foco da breve conversa.

— Eles não vão conseguir esconder isso aqui… não como fizeram como a nossa escola.

A destruição dessa vez, por mais que menos massiva e até incomparável em extensão com o ocorrido em Elderlog, não veria um escape dos olhos da mídia e das pessoas.

— Eles expuseram as caras demais e, dessa vez, a bagunça não foi planejada… Olhando agora, dá para ver que isso aqui foi só fruto da vontade caótica de alguém que quis fazer muita besteira, sem se preocupar com as consequências… — citou, com pesar. — Ao contrário da Elderlog High, isso aqui não teve um pingo de cuidado.

Ambos lembravam bem da arquitetura de plano elaborada e praticamente sem furos, criada pelo sujeito sem nome.

— É quase como se o responsável não tivesse intenção nenhuma…

O ataque à escola consistiu de uma série bem-agrupada de movimentações, o resultado sendo um caos controlado; Steve foi responsável por trazer alvoroço aos estudantes e Ann, por isolar o local, impedindo entradas e saídas.

Em contraste, pensar na iniciativa em essência perfeita fazia o massacre do hospital soar diversas vezes mais bárbaro.

— Mas, não… Não é isso… — pensou em voz alta, levando a mão ao queixo. — Eu… sinto que teve um motivo… precisa ter. Mas, no fim…

A manipuladora de insetos foi arrancada de seu transe pelo barulho atrás de si, de repente notando de forma mais ampla o mundo de fora de seus próprios pensamentos e, o motivo, foi Steve.

— Agora não é hora de ficar pensando, Ann… A gente precisa subir! A Emily com certeza tá lá em cima, e não dá para se certificar de que ela tá bem.

Ela olhou de volta para a entrada das escadarias, onde o viu, parado, acenando com a cabeça para que fossem depressa.

— Vem — chamou, suave. — Ficar aí embaixo, no meio desse sangue todo, já tá me deixando enjoado, também…

Foi apenas então que ela sentiu a profunda tensão a escalar até as pontas de seus dedos.

— Tá — confirmou, hesitante. — Beleza… É o que é melhor mesmo… A gente pensa depois. Agora… é a hora de ação.

Os passos pesados e instáveis necessitaram de grande concentração. Não notou até tal ponto, mas a ansiedade acumulada atingiu níveis astronômicos.

“Parte de mim não quer saber o que tem lá em cima…”

Porém, ela insistiu, dando passos lentos até o lance de escadas, consumida pelo profunda tensão a contaminar cada músculo e torná-los rígidos como rochas.

“... Mas, eu tenho que ir… E não dá para continuar me protegendo atrás de pensamentos eternamente.”

Estratégia e sistemas mentais só a levariam tão longe; há o momento em que a maioria do trabalho precisa ser feita por mãos e pés, ao invés de pela mente, e aceitar isso significou, para ela, um salto de coragem.

— Esse hospital é até grande — disse a menina, tocando o corrimão metálico. — Se ela tiver chegado até o quinto piso ou o sexto, a gente vai demorar de achar.

Os dois iniciaram uma nova subida ágil, cada passo acompanhado do grande eco criado pelos impactos nos degraus pesados.

— Mas, se dividir é uma péssima ideia — assertou, saltando de um ponto a outro de uma vez só. — Eu não sei o que rolou com aquele doutor, mas meu pensamento me diz que ele não é o único.

Os dois alcançaram o terceiro piso, se deparando com a mudança súbita de cenário.

— Fica atento, Steve… — olhou de um lado para o outro, perdida no universo branco. — Eu tô com um pressentimento muito ruim desse andar aqui…

— Nem precisa mandar — trouxe os dois punhos para perto do rosto, em sinal de alerta. — Qualquer coisa aparecer, eu incinero… Mas e aí, a gente se separa e cada um vai para um lado?

— Nesse aqui não — respondeu quase de imediato. — Esse aqui… Huh?

O silêncio do ambiente vazio foi, aos poucos, substituído pelo singelo barulho de pequenas batidas contra uma superfície metálica.

— Steve, fica atento…! Tem mais alguma coisa aqui em cima… Até a gente não descobrir o que é…!

O som ficou mais alto de repente, ao passo que adquiriu uma origem clara: o duto de ventilação bem acima de suas cabeças.

ANN, SE ABAIXA!

Em um tempo de reação recorde, o manipulador de chamas agarrou a jovem pelos braços e se jogou com ela o mais distante para a esquerda quanto possível, a pouco mais de três metros da saída de ar.

— Ah, caramba…! — A voz de Steve saiu trêmula. — É sério isso…? Ah, por favor…!

“Ugh!”

O impacto inesperado da queda a roubou alguns segundos de entendimento quanto ao ocorrido, porém, antes mesmo de recuperar o foco completo e poder se reajustar, ele puxou de novo, tentando levá-la para longe.

E foi nesse instante, ao ter o corpo virado para trás e a visão mirada na escadaria, que surgiu o verdadeiro pesadelo do dia, pela segunda vez.

— Aquela coisa sobreviveu…! — exclamou o rapaz, enquanto a levava para mais longe. — Agora nem tem cara de gente mais!

Apenas a metade de baixo do corpo do médico permaneceu como semblante da humanidade prévia que antes guardava o mar de tentáculos grotescos e carne pulsante.

Em algum momento, o horror sem definição conseguiu deixar sua contenção e os seguiu, causando o coração dela a congelar, diante da descoberta de se tratar de um organismo inteligente.

Os caçou a distância completa até ali e, em face do objetivo, não os deixaria ir até serem tornados em extensões de si.

— Eu vou ter que derrubar esse bicho de uma vez por todas, seja lá que diabos essa coisa seja!

O Evans a deixou no canto da parede com cuidado e, sem perder tempo, chamou pelo poder no âmago de seu ser.

Tão rápido quanto possível, puxou para si o máximo de ar capaz de caber nos pulmões, dando a ela um último aviso:

— Ann, se prepara…! Vai ficar meio quente aqui!

[...]

“... Que… merda…”

A atenção presa ao chão, Emily fitava as manchas de sangue, terminadas em um ponto qualquer.

— Que… merda… foi aquilo…?

A imagem do humano destruído por chamas e — de alguma forma — ainda vivo não saía de sua cabeça; os órgãos expostos, os pulmões respirando, as costelas, os dentes, a lateral do crânio, a ausência de um olho…

— O que tá… acontecendo…?

Parecia tudo um sonho — um pesadelo o qual rezava e implorava para ver um fim— longo e terrível demais para ser confortável o bastante.

Ela só queria acordar na cama em um dia ensolarado de sábado e perceber que dormiu demais, devaneando por ter consumido algum conteúdo de terror.

Haah… Haah… — olhou de um lado para o outro, repetidas vezes. — Fugir…

Mas não era esse o caso. A abominação foi real, falou com ela e, além de tudo, pôde senti-la.

— Eu preciso sair daqui… Eu preciso sair… Eu…

O cheiro da carne ficou mais forte conforme se aproximou, azedo e pungente, e os fluídos corporais da coisa, derramados nos azulejos, a faziam querer vomitar só de serem vistos.

Nada sairia; graças às terríveis visões nos andares de baixo, seu estômago se encontrava vazio demais para se livrar de mais algo. Emily só queria ir para casa e se trancar no quarto de novo.

“Eu nunca devia ter saído… Eu devia ter ficado lá… Eu… Eu quero a minha mãe…”

O carinhoso abraço, as piadas ruins e os sorrisos dela a garantiam meras fagulhas insuficientes de esperança, logo levadas pelo tempo e oprimidas pela avassaladora tensão de estar ali.

“Eu não consigo sair…! Tô com medo demais para me mexer…! … Pai…!”

Lágrimas caíram volumosas dos olhos verdes. O serviço de telefonia se encontrava fora do ar, logo, nem que houvesse trazido o celular poderia realizar uma chamada, embora, ao menos, teria uma lanterna.

— … Eu não quero ficar sozinha nesse lugar escuro…

Logo ao dizer, um grande barulho cortou um corredor à distância: o som de uma poderosa explosão.

— Huh?! — Imensa surpresa atropelou a sensação de terror, ao perceber a grande cortina de fumaça escura a surgir ao final do caminho à direita.

— … eu digo “foi mal”...! — exclamou uma voz conhecida. — Pega essa!

“São eles…!” Emily raciocinou. “ Quer dizer que… eles vieram atrás de mim…?!”

Por um segundo, quis se sentir indignada, mas o alívio de encontrar outros humanos relativamente ordinários falou mais alto.

Ansiosa por falar alguma coisa aos dois, a jovem se levantou do chão frio, e quando o fez, sentiu o coração pesar, congelado pelo puro medo do que presenciou a perseguí-los.

— Eh…? — levou uma mão ao peito, incrédula com o que seus olhos captaram.

— SHIEEEEEEEK! — Um emaranhado de carne viva parecia exclamar de dor, perdendo pedaços de si mesmo para a labareda em torno de seu “corpo”.

O ser, formado por dezenas de tentáculos, os movia nas mais diversas direções, seguindo-os por meio de duas destruídas mãos humanas. Incendiado, o monstro realizava sons inquietos, buscando com desespero pelas vítimas.

— … Caramba…

Uma bola de fogo veio de um ponto não-visível do corredor perpendicular, acertando a entidade — mais semelhante a algo retirado de uma narrativa de horror cósmico — de forma certeira, explodindo em contato.

BOOM!

— Ali, um corredor mais na frente!

— Chegando lá, vira para esquerda! Lembra, esquerda! Nada de direita…!

A fumaça aos poucos cedeu, revelando um ponto queimado nas paredes e chão, onde vários pedaços da carne chamuscada repousavam, ainda pulsantes.

— Hein?! Se dividiu de novo?! Droga… E se a gente voltar, certeza que vão ter outros…! Ann… E aí? A gente foge ou vai?

— A essa altura, eu já nem sei…! Qualquer caminho tem cara de morte!

Um agudo som metálico cortou o espaço; característico, o som de um objeto a ser retorcido entregou tudo: uma passagem do tubo de ventilação foi aberta à força.

Nesse instante, as vozes de fora se tornaram mudas e os sons de combate em meros barulhos de fundo, para os pensamentos da Attwood.

“Os funcionários estão todos mortos, os pacientes também…” apertou os punhos, ao tempo em que cerrou os dentes com força, até sentí-los doer. “E a Isabella… sumiu.”

A coisa aparentava estar focada neles, por serem os que de fato a atacavam; Emily pensou estar agindo puramente em auto-defesa.

“Não tem mais nada para eu fazer aqui, e eles dois estão distraindo aquela coisa… Então, se tem uma hora em que dá para sair daqui, essa hora é agora…”

As escadarias para o andar de baixo deveriam estar livres e, contanto que não chamasse atenção, desviar o risco e fugir seria fácil; ela até poderia usar uma de suas palavras para escapar.

“Se eu escrever ‘invisível’ ou ‘furtiva’, nada de ruim deve acontecer…” pegou do bolso o pequeno marcador. “Então, sendo assim…”

Admirou o objeto nas próprias mãos trêmulas e evocou o foco máximo sobre si, vindo de dentro, assegurada da própria decisão.

—... É isso mesmo que eu vou fazer.



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