Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 154: Carne, Ato 1

“Isabella…”

Os passos de Emily compunham o único som do hospital sem energia, enquanto cortava pelo corredor escuro.

”... Por favor, fica bem…!”

Os piores pensamentos ficariam para depois e as palavras pesadas e cortantes daquele dia seriam, por enquanto, ignoradas.

No momento, Emily só desejava descobrir uma única boa notícia, no mar de tamanhas perdas e desgostos.

“Eu tô chegando… Por favor, esteja a salvo!”

Subiu as escadarias com agilidade, em virtude dos elevadores sem força. O caminho pareceu ser mais longo, muito mais opressor.

Ao passar por cada andar, as marcas de destruição ficavam mais claras, indo de simples vidro quebrado para uma poça de sangue.

Em um dos pisos superiores, ela até pôde ver o corpo destroçado de uma enfermeira, partida ao meio por algo: um monstro.

O peito da mulher, aberto ao meio como as metades de uma laranja, expunha os ossos e tripas, estourado de dentro para fora.

— Ugh…! — cobriu nariz e boca em desgosto, para segurar a ânsia de vômito.

Evitar de ver foi impossível; o corpo ficou jogado nas imediatas proximidades da escada e não houve como se evadir de olhar.

O andar cheirava a sangue fresco, tal qual um abatedouro, só que ao invés dos típicos cortes de carnes finas, deveriam peças humanas dilaceradas e…

BLUERGH!

Seus próprios pensamentos não a permitiram segurar, deixando uma grande marca amarelada no centro da blusa azul como prova.

— Ack…! — escarrou para desfazer o engasgo amargo. — Eu não posso parar… Eu…

Faltava mais um lance de escadas e firme, ela agarrou o corrimão metálico frio, navegando entre tremores.

— Eu tô chegando… 

Passo por passo, cada qual mais pesado, a fizeram chegar ao terceiro piso, para uma cena diferente do visto lá embaixo.

— O lugar tá cheio de fumaça… — murmurou por baixo, olhando os três caminhos possíveis.

A cena do andar em questão quebrou o padrão, pois o lugar parecia tranquilo até demais.

Podia até existir um pouco de vidro no chão e a sutil cortina de fumaça piorava a visualização, mas os corredores — limpos e desertos — não lembravam ser o mesmo lugar.

— … Isso tá… errado…

Ansiedade e pânico se instalaram ao compreender as circunstâncias e, desesperados, os olhos da Attwood buscaram nos arredores, em busca de referência.

— O que é esse cheiro…? Não é só fumaça… Isso é…!

As notas aromáticas ao longe foram quase imperceptíveis, mas as identificou sem sequer querer ou tentar.

A fina corrente de vento soprava em seu rosto o cheiro de carne queimada.

— Urk…! — trancou os dentes e cobriu a boca.

Emily pressionou a língua contra o céu da boca, travando a garganta, e andou na direção do local conhecido.

“Isabella!”

O Clube de Literatura jamais teria se tornado realidade sem a influência do último membro restante.

“Aguenta só mais um pouco!”

Ela pôde ter sido uma manipuladora egoísta e uma mentirosa desde o princípio, mas o impacto de sua existência foi maior.

“Eu vou te salvar daí, então… por favor…”

No fim, foi graças a ela que o ano escolar e a vida em geral evoluíram de um destino terrível para a melhor experiência de sua existência.

— Já é bem ali… — disse, de olho no grande número “17” ao centro do corredor. — Eu vou chegar… só mais um pouco…

As amizades mais fiéis, as discussões mais calorosas e as saídas depois da escola mais preenchedoras do coração…

A descoberta de seu próprio eu, de sua própria voz e autoridade pessoal, a vontade de determinar os próprios gostos e sorrir os próprios sorrisos…

— Isabella, eu tô aqui…! — tocou a porta entreaberta. — Eu tô aqui, então…!

Queira admitir ou não, se deram por conta da adolescentes de cabelos pretos, aquela que, apesar de tudo, era sua melhor amiga.

— … Então…

O silêncio avassalador dos próximos dez segundos refletiu o frio no coração dela.

— … Eh…?

O quarto estava coberto de sangue, ossos e vísceras.

O corpo de um atirador jazia em um canto, ao lado da maca e as marcas de dilaceração apontam ele como a origem.

Crânio estourado, intestinos rasgados jorrando vermelho infinito e pútrido…

Ahh… Ahh… — Emily caiu de joelhos, em choque.

… E a ausência de Isabella do leito, cujas marcas no tecido levavam a cogitar uma saída recente.

A presidente do clube chegou tarde demais.

GHHK…! — tentou vomitar, mas a ausência de conteúdo no estômago só fez ser mais doloroso.

De repente, tumulto passou a tomar ares irreais e a antes tão focada garota se perdeu na própria cabeça.

— … Por que eu…? Por que… eu…?

Por que ela precisa passar por tamanha dor? Qual a necessidade de colocar um ser humano por tantos testes?

— Por que eu…? Por que eu? Por que eu?!

Aquela cuja esperteza, inteligência e proatividade sempre foram elogiadas, caiu da graça por um deslize, por um dia ruim.

Aquela cuja vontade de crescer e ser feliz a levou a construir coisas tão bonitas, agora via todo o progresso ruir em meros dias.

POR QUE EU TENHO QUE PERDER?! POR QUÊ?!

Ela teve de passar mal no dia do discurso, precisou frustrar as expectativas de quem a viu subir até ali…

Precisou ficar doente e quase morrer quando suas amigas mais precisaram, deixando duas para morrer e abandonando a terceira para si mesma…

E agora, o destino a atrasou mais uma vez, por muito pouco.

Soava injusto, como se o mundo a usasse de exemplo para uma horrível piada…

Entregando coisas só para tomar depois, dando esperanças apenas para colher os frutos e levar o bosque junto, deixando-a sem nada.

Incompreendida, vazia…

— Aaaah…

E sozinha.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH…!

… … …

O grito de agonia irrompeu pelo terceiro piso, ouvido do início ao fim.

— … Eu não quero mais…

Jogada no chão, chorava sem controle, agarrada a si mesma em posição fetal.

— Eu não… aguento mais…

O chão frio fazia sua única companhia.

— Mamãe… Papai… Irmãozão…! Alguém fica comigo… por favor

Ninguém veio — e nem iriam —; a essa altura, esperar a existência de mais alguém vivo não passaria de um sonho de criança, mera fantasia.

Segundos se passaram, um por um, virando um excruciante minuto frio e quando chegou ao fim da desesperança…

Hmh-hm-hm! Hm-hm, hm-hmm…!

A cantoria no corredor veio acompanhada de passos ritmados, pequenos saltitos ágeis.

O som murmurado lembrava uma cantiga infantil e o jeito dos passos, brincalhão.

A pessoa tomou o mesmo corredor que ela, fato notado pelo barulho ficar mais alto a casa repetição.

Hmh-hm… Oh, a porta tá aberta! Deixa eu olhar aqui… Ah! Emilyzinha, é você!

“... Eh…?”

O chamado a arrancou do fundo do torpor.

— Uau! Que legal te ver! Olha, eu bem que queria conversar, de verdade mesmo! Só que eu meio que tô precisando ir agora, entendeu?

“... Espera…!”

A Attwood chamou energia para virar e olhar a figura, só para se arrepender depois.

A coisa — incinerada e destroçada — mal lembrava um humano.

— Até mais! — acenou, com a mão de apenas dois dedos.

“...!” faltaram palavras até na mente para responder o contato com tamanha abominação.

O ser sem roupas — uma garota, por aparência — tinha mais de metade da área do corpo queimada, com pontos onde ossos e vasculatura exposta saltavam em meio ao músculo chamuscado.

O lado esquerdo de seu crânio não apresentava cabelo ou pele, sendo possível contar os dentes; ausente de olho, a órbita vazia a encheu de terror.

A pele tremia e vibrava, tentando se conectar e costurar ao “normal”, agindo como um ser de instinto próprio.

De todo modo, aquela monstruosidade não tinha o menor direito de continuar viva.

A criatura puxava na mão uma espécie de corda fina e ao olhar mais de perto…

— Foi divertido, Emilyzinha! — falou de longe. — Eles até souberam brincar bem dessa vez!

Um pedaço de intestino humano, usado para pular corda e saltar enquanto murmurava cantigas; para ela, apenas um mero brinquedo.

Quis vomitar outra vez, paralisada pela dor de estômago gerada pela descoberta e mente fixa na trilha de gotas de sangue pelas paredes e chão.

— A gente vai conversar de novo algum dia! E quando formos, vou te contar todas as minhas novidades! E claro, eu vou querer saber das suas também.

A familiaridade na maneira de dizer as palavras amplificou a profunda náusea, e o mero questionamento sobre conhecer ou não a fez fraquejar.

— Sinto muito por ter saído mais cedo naquele dia! Fale para a Abigailzinha que eu gostei de conhecê-la!

A frase lhe gelou a espinha, garantindo uma injeção de pura adrenalina.

— … Espera…

A energia súbita a forçou a se reerguer e correr, seguindo as marcas dos impactos da “corda” no chão.

… Espera aí…!

Emily correu em velocidade máxima, atenta aos impactos dos saltos, mais próximos. 

Ela precisava saber.

— O que você fez…? ME DIZ COMO SABE DISSO!

Porém, ao virar à esquerda no corredor, rumo à única saída, as batidas pararam e, no centro do caminho, não havia nada, exceto o isolamento.

A escotilha no teto — entrada para o duto de ventilação — serviu de único sinal da fuga, de onde pingos vermelhos jorravam, sem parar.

[...]

— Não tem nada aqui! — Steve disse, deixando o eco do vazio levar o som até Ann. — Sem funcionários, sem acompanhantes… sem nem um mísero paciente…!

— É, aqui também não! — respondeu em igual tom. — Embora… eu acho que não tive a mesma sorte que você…

Os passos ágeis de Steve reverberaram pelas paredes de aparência abandonada. Em segundos, ele correu até ela, para próximo da recepção.

— Se liga no que eu achei… — apontou para uma sala, da qual nascia um rio de sangue. — É zoado… e demais.

Os dois entraram juntos e não precisaram procurar, pois a vista horrenda se expôs por si.

— … Mas que…! — O rapaz tentou falar. — Eu acho que eu vou… vomitar…

— Quem fez essa merda…? — A moça perguntou em voz baixa. — Será que foi trabalho dele…?

A jovem se aproximou para inspecionar o cadáver, o primeiro detalhe a chamar atenção sendo o crachá no jaleco.

“Dr. Rolland Pryce, Médico-Legista”... Tem mais informações aqui, mas é só o cadastro dele no Conselho de Medicina… Agora, a questão é, por que só tem ele aqui?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Ideias?

— Nenhuma…! — rebateu o usuário de chamas. — Mas, cara… Não dá nem para olhar na cara… disso.

— Real… E eu tô sem ideias, também.

Pryce foi mutilado das mais diversas formas. 

No corpo, vários tendões e ligamentos foram cortados com precisão, separando articulações e músculos de forma quase perfeita.

A pele da boca foi rasgada, para formar um sorriso de orelha a orelha, cortadas fora e postas na cavidade oral.

E os olhos, arrancados, repousavam ao lado, juntos dos respectivos nervos ópticos.

O doutor possuía diversos outros ferimentos fatais no torso. Pálido pela hemorragia, a certeza de ter havido tortura era inquestionável.

Mas o ponto mais fora da curva não era qualquer um desses.

— Ann… Ele tá… segurando um bisturi…

Os dedos da mão direita se mantinham fechados com firmeza, em torno da ferramenta cirúrgica besuntada de sangue.

— … E tem que cara de que os ferimentos foram causados por ele, também… — olhou para ele. — Steve, isso…

ANN, SAI DE PERTO!

A moça saltou para longe, movida pelos reflexos afiados.

SHIIIIIIIEK…! — A “coisa” fez um barulho desconfortável de ouvir.

Diversos tentáculos de pele e músculo escaparam dos orifícios no crânio e pelos ferimentos no corpo de Pryce, movimentando-o.

— Fica longe…! — Steve puxou a garota para mais perto de si. — Essa coisa tá controlando o corpo… como se fosse uma marionete!

O ser desconhecido controlou o cadáver de forma vulgar, seus movimentos grosseiros mais semelhantes aos de um zumbi dos filmes de terror antigos.

— A gente tem que sair da sala…!

“Pryce” balançou o bisturi  na direção dos dois, falhando em acertar. A lentidão das reações e respostas deu a eles uma oportunidade de fugir.

“Mas, antes disso…!”

Steve focou os poderes e aplicou sua atenção na figura distorcida do doutor, que já se reergueu da colisão com a parede, movendo o pescoço de jeitos anormais.

— Foi mal, doutor! — juntou as duas mãos, criando uma bola de fogo. — Mas deixa eu te tirar desse sofrimento…!

GAAAAKH! — O médico balançou o bisturi novamente, em uma investida na direção dele.

Pega essa…!

O projétil do tamanho de uma bola de basquete explodiu ao entrar em contato direto com a marionete de carne, incendiando a metade superior.

— Fecha a porta, Ann…! — saiu, usando o peso do corpo para travar a saída. — Me ajuda aqui…!

— Tá… tá bom…!

SHAAAAAAK!

A criatura flamejante bateu com toda força na porta, entoando barulhos carnosos, de clara dor.

— Fica segurando ele…! — Ann falou. — Eu vou caçar uma cadeira para fechar a porta!

— Beleza! — grunhiu, contendo uma investida. — Só vai rápido…! Tá meio difícil…!

GYAAAAAAKH!

Ann-Marie voltou depressa com uma cadeira quebrada da recepção, pondo-a sob a maçaneta.

Com o tempo, a intensidade das batidas e os gritos reduziram, até o ponto de cessarem por completo.

Ainda movidos pela imensa carga de adrenalina, os dois se entreolharam, pasmos.

— Ok, que merda foi aquela?! — Steve cuspiu a pergunta, fixado na companhia.

— Eu… Eu sei lá…! — rebateu Ann. — Eu não faço ideia nem de por onde começar a pensar…!

Ambos trocaram encaradas estarrecidas por mais um par de segundos, e quando se prepararam para falar de novo…

Aaaaaaaaaaaaah! — Um grito distante, mas conhecido, irrompeu pelos corredores.

A voz, mesmo longe, soou inconfundível. Depressa, os dois se forçaram ao “normal”, conscientes do significado.

— É a Emily…! — disse ela, atenta ao teto. — Vamos…! Ela tá mais para cima!

Abandonando a vigilância sobre a porta, o par correu na direção do lance de escadas, inconscientes de onde ela de fato estaria, temerosos quanto a ser tarde demais.



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