Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 152: Labaredas
— Alvo identificado! Homens, obliterar cada célula! — O homem de vestes táticas, portador de um grande lança-chamas, exclamou aos demais.
— … Ehehehe…!
A menina de cabelos rosados saltou para dentro do quarto à esquerda em velocidade, para evitar a grande coluna de fogo.
— Que brinquedo legal…! Vocês destruíram as minhas células com ele, lá embaixo?!
O aspecto de êxtase se deparou com a invasão dos homens ao quarto de Isabella, ainda a murmurar, sem rumo.
— Neutralizem o alvo sem arriscar os pacientes! — exclamou, antes de mandar mais fogo. — Beta-2 e Beta-3! Direcionem a garota a um local seguro!
A labareda tornou a visibilidade difícil, o brilho alaranjado sendo quase cegante, intenso a ponto de fazer da janela transparente mais uma mancha preta.
Nenhum sinal da criatura se fez visível.
— Poxa, mas e se ela também quiser assistir?! A Isazinha é meu apoio moral!
Anastasia surgiu debaixo da maca, de corpo contorcido em proporções longe de humanas, mais semelhante a uma espécie demoníaca de aranha.
— Não vou deixar levarem a minha amiguinha desse jeito…!
Ela saltou sobre Beta-2, com o comportamento de uma besta selvagem, cujo corpo parecia bizarramente leve.
Ele não caiu ou se desestabilizou ao ter um corpo humano inteiro apoiado nos próprios ombros, em movimento.
— AAAAAGH…! — tentou se debater e se livrar do ataque no capacete tático.
— Ehehehe! Vamos brincar… do mesmo jeitinho que eu brinquei com os outros…!
Os outros combatentes ainda pensaram em se prontificar para sacrificar o colega em nome da missão e queimá-lo junto do monstro, mas os segundos de hesitação deixaram resultados.
— Vamos brincar do jogo da granada, onde eu me escondo…
— AAAAAAAAAAACK…!
Os demais assistiram horrorizados ao instante da invasão sobrenatural de Beta-2 pelo ser indescritível.
Ela entrou nele como um mergulhador entra em uma piscina — sem cerimônia — e se uniu a ele, como carne do mesmo conjunto.
— AAAAAAAGH! QUE DOOOR…! — caiu de joelhos, em espasmos pelo corpo inteiro.
— Agora… O momento é agora…! — gritou o líder, hesitante. — Apontem e quei…
— … e depois EXPLODO…!
SQUISH!
Sangue e vísceras do agente de campo se espalharam pelo quarto branco, cobrindo-o de vermelho ferroso.
— Hehehe! Não é divertido?! Quem vai ser o próximo?!
Besuntados em carne esmiuçada, os visores foram inutilizados, impedindo-os de enxergar com clareza a movimentação dela.
— Primeiro, vamos começar com isso… — Um barulho metálico ecoou pelo quarto de forma breve, seguido pelo grito de agonia de um dos enviados. — Acho que chamam de… Ah, sim! Bisturi!
— AAAAAGH…!
O comandante limpou a proteção do capacete como pôde ao identificar o som, mirando para frente, sem ver o suficiente.
— Sua abominação… morra!
O fogo brilhou entre a mistura a cair do teto, direto para onde ela se encontrava.
— HNNNGH…! GAH…!
O grito de dor simbolizou ter acertado, e com isso, o escolhido para liderar o grupo se colocou para pensar.
“Então o fogo é a fraqueza de fato…! E esse parece ser o corpo principal, a fonte do problema!”
— UUUURGH…! Ei, isso doeu muito…! — Ela disse, a bufar. — Nunca te disseram que precisa brincar direito?!
Separados por quase sete metros, os dois se encararam.
“Se eu conseguir causar um dano significativo…”
O fogo incinerou o braço direito da adolescente, expondo o osso em alguns pontos, a rendendo a um mundo de dor.
— … Eu não gosto desse jogo…! — cuspiu as palavras com acidez, as células de seu braço em recuperação lenta.
“... Então eu vou poder acabar com isso de uma vez.”
Tocou o gatilho para acionar a onda de fogo, percebendo ainda possuir bastante combustível; acabar com o monstro era mais que só possível.
“Se tiver o mesmo efeito que teve naquele bolo de carne viva lá embaixo…”
Os numerosos pacientes e acompanhantes pararam de atacar quando o monstro rastejante de carne foi destruído, resgatados por outra equipe, sem lembranças do ocorrido.
O grito de gelar o sangue, dado pela massa de tecido disforme ao ser destruída, porém, jamais seria esquecido.
— Então dá para matar — murmurou, apenas para si.
Ele acionou o gatilho do lança-chamas e, outra vez, abriu fogo.
[...]
— Eu vou comprar um sorvete; vai querer alguma coisa?
Como de costume, não houve resposta e, de fato, ela nem o olhou de volta, para confirmar tê-lo escutado.
— Certo. Eu vou comprar para você o mesmo que vou pegar. Não vou demorar demais.
O rapaz “de um olho só” ajustou os cabelos escuros, vaidoso, e em um piscar de olhos, sumiu.
— …
O parque no centro de Washington contava com bastante movimento em tal horário da manhã e, sentada no banco, na sombra de uma grande árvore, ela admirou.
Pais andavam com seus filhos, grupos de amigos jogavam conversa fora e faziam piqueniques; alguns outros, mais corajosos, praticavam corrida ou calistenia…
— …!
Mas uma coisa em particular não falhou em lhe chamar atenção.
— Voltei — disse ele, surgindo do mesmo “nada” para o qual sumiu, segurando duas casquinhas de baunilha.
Ela não expressou interesse; assuntos tão comuns e desinteressantes não se faziam suficientes, ao menos não a ponto de desviar sua atenção dali.
— Ah…! — Ele se colocou, sentado ao lado. — É sobre aquilo, não é? Aqueles dois, ali na frente… Entendi!
Os olhos rubros fixaram um ponto; ali, na frente de um pequeno laguinho, dois completos estranhos viviam as próprias vidas.
A moça parou a caminhada com o cachorro para tomar um pouco de água, enquanto o rapaz fazia alguns exercícios na sombra; dois perfeitos estranhos e uma possibilidade.
Enfim, ela o encarou.
— Faça o que quiser! — respondeu, casual. — Só não atraia atenção indesejada. Faça ser invisível dessa vez.
A jovem de franja castanha então fez um gesto com o braço esquerdo, elevando-o para frente em relação ao corpo.
— Você e seus caprichos…! — intrometeu, em risada. — O seu sorvete vai derreter… é melhor fazer isso logo!
A outra mão deslizou sobre o braço, assumindo a posição de um arqueiro…
— Ainda bem que pessoas normais não enxergam, ao menos que você deliberadamente queira…
… E uma flecha vermelha feita de luz se materializou, no mesmo tom de seus olhos brilhantes.
— … Ou elas iriam implorar para te ver fazer mais vezes.
O projétil espectral, já atirado, viajou sem impedimentos e acertou o centro do peito da moça, levando-a a saltar em surpresa.
— … — repetiu o processo outra vez, mirando o rapaz.
Os dois tiveram reações similares a serem atingidos — nenhum soube o que ocorreu ou sentiu dor, pois sequer puderam ver — mas a mudança mais importante veio poucos segundos depois.
… … …
— Ehh… Oi…! — A moça loira tirou os óculos escuros e os escondeu atrás do corpo, expondo um grande e tímido sorriso.
— Ah… Eh… E… e aí…! — O rapaz não reagiu muito melhor, evitando contato visual e parecendo estar ausente do que dizer.
Os dois se entreolharam com vergonha, evitando e buscando um ao outro, em intervalos cheios de sorrisos bobos.
E foi então que veio dele a iniciativa de tomar a coragem.
— Então… — tentou começar. — Eu… meio que te achei bem bonita e…
— É, eu também — respondeu a mulher, mais confiante. — E sim, eu aceito você me chamar para sair.
Nenhuma outra palavra foi precisa para os dois caírem nos braços um do outro, iniciando um beijo apaixonado.
… … …
— Ah, o amor…! — falou ele. — Eu imagino que você esteja satisfeita agora?
Novamente sem dizer uma palavra, ela tomou a casquinha de sorvete da mão dele para si.
— Eu vou tratar isso como um sim!
O novo casal mostrou estar no ápice de um amor profundo, trocando incontáveis gestos, mesmo com meros segundos de contato.
Presos em tanta paixão, ignoraram tudo ao redor: o rapaz deixou para trás a bolsa com os equipamentos de musculação, e a moça, seu pequeno cachorro.
Os latidos desesperados da criaturinha não importaram e só pôde assistir a dona que afirmou amá-lo, deixá-lo para trás, amarrado no banco pela coleira, de mãos dadas e altos sorrisos com o novo humano.
— Os contos de fadas e seus velhos ideais de “felizes para sempre”... Eu me pergunto como seria o mundo se coisas assim de fato existissem… Na minha opinião, seria bem chato.
O novo casal já se encontrava longe, tendo um primeiro encontro apaixonado no outro lado da rua.
— Olhar assim me faz até pensar que poderia acabar bem…
Juntos, eles riam, se tocavam, caíam em beijos e trocavam das porções de comida que pediram, em um amor puro.
— … Mas é até uma pena saber que esses dois vão acabar se matando eventualmente, por conta de ciúmes. Eu aposto em duas semanas, no máximo… Não, faça uma semana! Essa é minha aposta final.
Espanou poeira inexistente das roupas e levantou; era hora de partir.
— Vamos — chamou pela companhia. — Ainda temos algumas engrenagens para colocar no lugar, e além do mais, os passos tomados agora em Elderlog já foram suficientes, por agora.
Tirou um comunicador de longa distância do bolso do suéter preto e acionou um comando digital, deixando uma mensagem clara.
[...]
— Ehe… Ehehehe…! — Bastante machucada em função das rajadas de fogo, Anastasia buscava esconderijo pelos corredores.
— Não permitam que ela fuja…! — O líder exclamou, em seu encalço. — Aquela coisa não está mais se regenerando como antes! Estamos vencendo!
Na próxima encruzilhada de corredores, a menina cheia de queimaduras tomou a esquerda.
— Eu tô ouvindo vocês…! — exclamou em risos. — Não é legal ficar contando vitória antes de acabar o jogo!
A metade direita de seu corpo foi reduzida a carne vermelha e trechos ósseos expostos e, devagar, as células em reprodução acelerada tentavam mitigar o dano.
“Tô completamente sem energia…! Se eles me pegarem agora…”
Ao contrário de armamentos comuns, o fogo causava danos significativos, a ponto de ser chamado de “fraqueza” pela manipuladora do próprio corpo.
Regenerar um pequeno conjunto de células arrancado por um tiro tinha significado bastante diferente de reparar grandes trechos de pele, músculos e vasculatura.
A manhã havia sido longa e as lutas, um tanto exigentes; depois de tanto brigar, os níveis de energia em seu corpo atingiram níveis abismais.
“Mas isso só deixa as coisas mais empolgantes…! Se eu não me engano, é só passar aqui e…”
O caminho levou até um cômodo em particular: uma sala para guardar materiais essenciais.
“Obrigada, cérebro da Mary…!” riu, maníaca. “Graças às suas memórias, eu cheguei aqui!”
A porta aberta revelou um grande número de aparelhos de refrigeração, e entre os itens no interior das geladeiras, encontrou.
— Maravilhoso…!
Ávida pelo conteúdo, Anastasia mordeu o plástico da bolsa de glicose em soro, bebendo em poucos goles.
— Ah, bem melhor agora…!
— … Homens… FOGO! — O grupo chegou, fechando a única entrada.
— … Ahaha…! — gargalhou, um aspecto louco nos olhos.
A temperatura em ascensão cintilou em trajetória definida dentro da sala, em mira direta.
— Persistam! — insistiu, com enfoque. — Não parem com o fogo até estar morto…!
Logo, nada mais além de fogo se via dentro da sala, espalhado pelos aparelhos e paredes, iniciando um incêndio.
— Eliminem!
A ordem para destruição completa da sala levou a mais longos dois minutos de fogo em toda direção.
Organizados, os agentes incendiaram cada parede, pedaço do chão, aparelho e maquinário.
Sem janelas, a criatura não teria para onde fugir, e, no fim, só as cinzas sobraram, juntas de um corpo desidratado no meio.
— Está morto…
A forma humana vazava fluídos e gordura entre os buracos formados na carne sem pele.
— Acabamos com o monstro — mencionou com pesar, ao pensar nas vítimas. — Mas… terminem de queimar, só por precaução.
Ele se aproximou do ser desfigurado, exposto ao centro do odor horrível de carne queimada.
— Comunique a central! — ordenou ao mais próximo da entrada. — Afirme que a missão falhou em manter a discrição, mas que eliminamos o sujeito... Solicite reforço tático!
— Afirmativo!
O atirador puxou o rádio comunicador do colete à prova de balas e acionou o comando.
— Agente Beta-4 para base de operações! — iniciou. — Alvo neutralizado! Necessitamos de reforço tático!
Segundos se passaram sem resposta. Por um amplo momento, nenhum barulho deixou o rádio de mão, até que, enfim…
— “Alvo neutralizado”...? — respondeu uma voz desconhecida, em tom zombador. — Eu não te mandei aí para brincar, Anastasia. Faça o seu trabalho direito!
Tão logo a voz masculina cessou e os ânimos dos combatentes se alteraram, suas atenções foram capturadas por um fator externo: o som de vários passos, vindos de longe no corredor.
— … Santo Deus…
Beta-4 trancou a porta com agonia e pressionou as costas contra ela, trêmulo.
— O que houve?! — Perguntou Beta-1, tão apreensivo quanto. — O que tem lá fora?!
Contra as ordens, Beta-4 tirou o capacete, revelando um semblante besuntado de suor, e ao encará-los, só houve fôlego para mais três palavras.
— … São os pacientes… Eles… Eles voltaram…!