Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 147: Escolhas
— Esse lugar… Por que eu sinto que conheço aqui…?
Várias cachoeiras de cores escorriam em tons imiscíveis entre si, diferentes em gradiente e, no céu, tonalidades se misturavam e dividiam ao infinito, criando combinações de formas complexas.
— O que é para fazer agora? Por qual desses caminhos eu sigo?
O ambiente carecia de algo, como se existisse uma grande diferença, gerada por um evento não-ocorrido e essa impressão de “falta” o deixou um pouco desnorteado.
— … O que é isso…?
Em um gesto reflexo, tocou o olho esquerdo com a respectiva mão, suspirando em alívio ao perceber ainda estar em seu devido lugar, intacto. Por algum motivo, isso lhe foi estranho.
— Parece que eu vou ter que escolher uma e seguir em frente. Não tem mais nada para se fazer aqui… eu acho.
Na parede final do grande cômodo de cores, por trás da cachoeira central e do lance de glamurosas escadas, havia um conjunto de portas.
— Agora… qual será que eu escolho…? Ahh… de qualquer jeito, eu acho que posso só olhar e ver o que tem nas outras, né? Não tem para quê tanta cerimônia!
As portas existiam em quase todas as cores principais, brilhando; se ele demonstrasse sequer a mínima intenção de visitá-la, o cômodo se abria, fechando de volta ao perder o foco específico.
Uma ao lado da outra, se organizavam em único corredor infinito, esticado além dos limites do quarto, embora, de um mágico, capaz de caber lá dentro.
As escolhas eram várias, algumas óbvias demais, outras ocultas e invisíveis, mas para sair dali, essa escolha deveria ser feita, algo do qual estava ciente desde quando entrou.
— Eu só preciso escolher um caminho.
Ele andou até uma porta aleatória, de cor branca, destacada das demais pela falta de charme próprio, em um mundo onde as outras várias eram carregadas de personalidade.
— Eu só preciso fazer algo a respeito disso.
Design elegante, pintura robusta… essa porta não tinha; era básica, tolerável, qualquer.
— Mas é a minha escolha.
A porta se destrancou, e ele girou a maçaneta.
… … …
— Oh, os sinais vitais tiveram um impulso repentino! Um pico de adrenalina, talvez? Parece que o nosso convidado especial finalmente acordou!
“Ugh… Onde… Onde é que eu tô…?”
— Perfeito! Esperei bastante por esse momento e quero ser o primeiro a dar uma olhada na nossa linda captura! Ou devo dizer, nosso mais novo colaborador?
Os músculos do rapaz se encontravam presos em um estado de inexplicável torpor, diferente o bastante da fadiga por excesso de treino, mas debilitante para muito além.
“Eu não consigo mover nada…”
A menor contração parecia demandar mais do que era capaz de oferecer, e o próprio peso causava nele a impressão de estar afundando na estranha superfície macia.
“Também não tô me lembrando de muito do que aconteceu… Eu… eu queimei a casa… e…”
O impulso de adrenalina de pronto negou os efeitos sistêmicos bizarros, quando, em um baque único, as lembranças vieram à superfície.
— … Aquele tal de Menéndez…! Ele atirou em mim e…!
O grito ao topo dos pulmões o fez saltar da cama de base metálica, para se deparar com o novo e estranho cenário no qual se encontrava.
“Ah, caramba…! Então eu fui mesmo capturado…! Eu vim parar numa prisão!”
A pequena cela de paredes e teto cinza continham, para além da cama, uma mesa central metálica, um vaso sanitário exposto e uma pia com torneira; o básico para a sobrevivência, mas não menos hostil.
“Aquilo deve ter me dopado”, pensou, amargurado com a prospecção de futuro imediato. “Pensar que vai chegar aqui é uma coisa, mas viver isso…”
Mesmo estando mentalmente preparado, as coisas não seriam tão simples e até o melhor caminho imaginável só o conduzia à morte.
“Tem alguém chegando”, raciocinou ao ouvir passos. “Deve ser um dos responsáveis pelo lugar…”
A tranca da forte porta se abriu, mudando o foco da atenção e cortando o pensamento prévio, cortando o foco de tanta certeza.
— Ah, finalmente nos encontramos! É um prazer poder te ver em pele e osso pela primeira vez, [Quebra-Mentes]!
“Ei, ei…! De todo mundo, tinha que ser logo esse cara?! O presidente do país todo?!”
O pouco de choque se amplificou alguns segundos depois, quando, a seguir o homem em vestes formais, entrou na sala uma equipe de atiradores.
— Não precisa entrar em pânico — ressaltou. — Eles estão aqui somente pelos motivos óbvios. Sei que você entende.
Sem movimentos bruscos ou ameaças — dessa forma deveria ser a comunicação —; um jogo unilateral de perguntas e respostas, assim como já pensado.
— Não fique tão acuado assim! Eles não vão fazer nada demais, coloco minha palavra nisso.
— … E quanto é que isso vale…? A sua palavra… — Ryan respondeu, com toda a pouca coragem que foi capaz de acumular.
— Hahaha! — O presidente sorriu do jeito mais aberto. — Você é mesmo bem corajoso, assim como vimos nas filmagens coletadas na sua escola! É uma pena que aquilo tenha acontecido e saiba que tem os nossos sentimentos, mas… digamos que existem coisas mais importantes agora, não acha? Aquilo são águas passadas!
“Esse cara é tipo o Mark”, refletiu. “Ele só quer pagar de bom samaritano na minha frente e faz um péssimo trabalho nisso… certo que tem um motivo.”
Para a infelicidade dele, bancar o opositor o levaria ao caixão e os dez homens com seus rifles faziam questão de o lembrar de seu lugar. Quisesse ou não, abrir o bico e cooperar fazia a única saída.
— Não precisa fingir cordialidades e tentar conversar como se não tivesse acabado de me jogar numa cela — fez uma aposta arriscada. — Se quiser, só revela logo os seus objetivos e me deixa saber o que tem reservado para mim. Eu sei que tem os seus planos, e não tenho exatamente como me negar a cooperar, né…?
As peças começaram a ficar claras a princípio. Se fosse qualquer outro, ele não lançaria tal argumento, mas se tratando daquele homem com aquela posição específica no cenário global…
— … Mas eu também tenho uma exigência — disse, o encarando, desafiador. — Quero saber o que aconteceu com Mark Menotte e Lira Suzuki. Sei que você os têm, ou ao menos, tinha… Qual o seu plano com eles e o que fez?
O atirador à extrema esquerda aprontou a posição e se preparou para atirar, dedo no gatilho e mira pronta, em aguardo pela ordem de subjugar o moleque que julgou “arrogante”.
— Pare com isso, Zeta-02 — sinalizou o presidente, ao erguer a mão correspondente para alto. — Vai sofrer uma advertência de nível médio por desobedecer ordens expressas.
O agente coberto em vestes táticas retornou à posição com hesitação, repreendido pelo peso do claro julgamento por parte dos colegas.
— Esse nosso pessoal… Vou te contar! Eles precisam ser melhor disciplinados — escondeu as mãos nas costas. — Me diga, por simples curiosidade… Aqueles dois são seus amigos?
— A primeira pergunta foi minha — rebateu, seco.
O semblante dele reluzia com certo interesse, sem aparente importância ou percepção de ameaça e, se qualquer coisa, “entretido” talvez servisse para definí-lo bem.
— Gostei dessa sua personalidade! É um negociador honesto — afirmou. — Muitas pessoas pecam ao abrir negócios por esse exato motivo, sabia?
Descuidado, se aproximou da cama, até estar a quase dois metros do rapaz, em parte, entorpecido. Antes de ir, deu claros sinais de desaprovação quanto a ser seguido, fazendo-se vulnerável ao toque poderoso do Savoia.
— Elas não sabem o quanto valem e se negociam por qualquer coisa! — explicou, sorrindo ainda mais que antes. — Em quaisquer circunstâncias, o valor de uma pessoa detém de um componente auto-percebido, e é nisso que eu acredito.
A caminhada em ritmo lento pela área da sala acabou ao pegar uma das duas cadeiras metálicas e sentar-se, dirigindo uma encarada inquisitiva e profunda.
— Costuma-se pensar que a alma de tudo é o dinheiro; que é o dinheiro que dá poder, que quem o tem se dá bem… Mas sabe o que é mais importante do que isso? O valor a qual cada ser humano se atribui, não concorda?
“Parece papo de Coach”, pensou o jovem, impondo o máximo de esforço para não deixar o desprezo transparecer. “E ele parece ser do tipo que pode conversar sobre os próprios interesses por horas, para piorar. Aliás, esperar o quê? Ele é literalmente o político mais bem-sucedido!”
Não uma das grandes ou algo que o tiraria dali, mas fazê-lo tocar seu tópico de interesse foi uma vitória, afinal, quanto mais ele falar, menores as chances de morrer tão cedo.
“E maiores as chances dele revelar o que eu preciso. Por enquanto, é só continuar confirmando.”
Um ponto importante ficou claro com a reação à sua proposta: o de não haver interesse, ao menos momentâneo, em findar com a sua vida.
— … Quem se vende por pouco, se acostuma a ser tratado com pouco e, por fim, acaba até personificando essa escassez. Se no mundo há tanta miséria, é porque os miseráveis não se vêem em posição de alterá-la e manter o status quo se torna tão importante quanto respirar. Entende o que eu digo?
— Que as pessoas não progridem e crescem porque julgam a própria realidade como uma fração de si…?
— Exatamente! — vibrou, exilariado. — Uma mentalidade de crescimento leva a crescer inevitavelmente e portanto, poucas são as pessoas cujo potencial de mudar o mundo é plenamente explorado. Elas carecem de uma vontade, de um guia…! É bom saber que estamos na mesma linha quanto a esse entendimento, rapaz!
“Já dá para começar a perceber onde ele quer me levar com essa ladainha…”
A boa aceitação quanto às atitudes desafiadoras, o fato de não estar algemado ou acorrentado e até o ato de dispensar a total proteção da guarda armada, somado à propensão para discutir como “iguais”...
— As filmagens que nossa equipe recuperou nos provaram algo notável, senhor Savoia — usou o nome pela primeira vez. — Graças a elas, sabemos que você não é o cara ruim daquela história.
“É… Eu acho que tô entendendo, mesmo…”
— Então, eu gostaria de propor que conversássemos mais à respeito de sua trajetória… — Ele pausou, engolindo saliva. — Sei que essas condições são assombrosas e o processo de te trazer para cá foi traumático… Iremos devidamente compensá-lo por isso.
“É agora, né? Aí vem…”
— O [Ilusionista] e a [Lírio-Rosa] foram adquiridos por nossos esforços táticos, mas só vou revelar mais informação quando escutar de você — disse, enfático. — Afinal, foi você quem propôs que negociássemos!
A proposta clara contou com um pequeno sorriso de canto de boca, selando o contrato proposto e confirmando as suspeitas.
“Esse cara quer algo de mim, coisa que ele sabe que não pode só tomar… Já que vai ser assim, é melhor esperar qualquer coisa.”
— Bem, vou sair de cena por agora; eu tenho uma nação para administrar! — brincou um pouco, caminhando até a entrada. — Mas não se preocupe! Não vou ser tão cruel a ponto de te deixar sozinho.
Na porta, o homem velho se encontrou com uma mulher bem mais jovem, ainda não vista entre os vários atiradores. Ao se verem, os dois trocaram acenos breves, invertendo localizações na sala.
“Ela…” afiou a visão, cauteloso.
— Não o oprima demais, Bauer! O rapaz acabou de acordar — deu um leve tapa no ombro dela, antes de sumir de cena. — Conto com você.
— Pode deixar comigo! — disse a pálida mulher de longos cabelos pretos. — Eu e ele vamos virar bons amigos bem rapidinho!
Ao fim do anúncio — que mais soou como ameaça — os olhares dos dois se encontraram pela primeira vez, causando um afiado frio a cursar pelo corpo do Savoia.
— E aí! Tá curtindo as acomodações? Olha só, você tem até uma cama maneira! Tô vendo que foram generosos com você.
A porta foi selada por fora, deixando ela e a dezena de atiradores de um lado, contra ele, sozinho no outro, a mudança de pressão cada vez mais notável.
A presença daquela mulher trouxe outro significado muito mais sombrio para a captura.
— Eles me puseram aqui para te fazer umas perguntas… Sabe como é! Burocracia…
“Ela é quase a mesma coisa que o tal de Menéndez, e ainda assim…”
O braço esquerdo imobilizado pela tala fazia pouco para desarmar o senso de perigo e ele pôde dizer, no primeiro encontro de olhares, que ela não hesitaria em ordenar sua morte.
— Então, vamos dar uma conversada sobre os eventos que aconteceram na sua escola! — estalou a língua com um riso de canto. — E eu recomendaria responder direito, porque…
“... Dá para sentir como se fosse umas dez vezes pior…”
— Eu sou quem tá de autoridade aqui, seu moleque — apontou uma arma, braço repousado sobre a mesa. — Abre o bico, se não quiser passar a semana inteira gritando de tanta dor.
Sem prancheta ou bloco de notas, só a ameaça e o medo de sofrer um destino pior que a morte.