Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 146: Espaço Mental
— Ah, caramba…! E agora?!
A partir do ponto alto propiciado pelo morro, Steve viu o movimento coordenado de helicópteros pretos em torno do perímetro da cidade. Talvez, nem fosse necessário ter poderes para compreender o significado dessa ação.
— Não podia ter rolado em uma hora pior…! Vamos, Ann! Acorda…!
Ele tentou acordá-la por várias vezes até tal ponto, todas sem o menor sucesso de arrancá-la do estado de aparente sono profundo, intocável até pelo calor do fogo.
— Eu não posso ir lá sozinho… não sei o que tem lá, mas sei que tá com cara de que eu vou morrer se tentar bancar o herói…
Os punhos dele tremiam, e os dedos frios chegava a doer, por conta da apreensão; ele não conseguia tirar os olhos do centro distante de Elderlog, nervoso.
— E eu também não posso deixar aqui… Não perto dela.
Por mais distante que estivesse, ainda podia ver Emily, caída na vizinhança dos restos da casa incendiada, e ciente da possibilidade de ela acordar a qualquer segundo, tomar a sorte soava pouco confiável.
“Eu posso acabar com isso agora, mas…”
O rosto dele se contorceu, diante do pensamento de queimar Emily enquanto ainda estivesse inconsciente, pois, embora ciente de serem oponentes, não havia motivação para sujar as próprias mãos.
“Eu não vou virar um assassino.”
Com a certeza em mente, a única coisa restante a se fazer seria observá-las e se forçar em proteger Ann, no caso de ela não ser a primeira a acordar.
“Eu vou ter que lutar”, apertou os punhos, fincando as unhas na carne. “E, de algum jeito, eu vou ter que vencer.”
O impossível foi feito mais de uma vez, ambos em Elderlog e nos dias mais recentes, e ele só podia contar com essa chance tão absurda de fazer as coisas funcionarem.
— É isso o que ele faria no meu lugar! — proclamou, em tentativa de se motivar. — Vou, de algum jeito, virar as chances do jogo para o meu lado… igualzinho você fez naquele dia!
Steve agarrou a mão de Ann, transmitindo o mais fraco calor pelos dedos gelados — gesto mais para si, do que para ela — e enrijeceu as expressões, pronto para o que viesse.
— E seja lá onde você estiver agora, vê se não desiste de lutar também, Ryan!
[…]
— É um lugar legal, esse que você tem aqui! O chá é bom, os livros também, e o que dizer desse senso de estilo? — A figura sem forma falou. — Se pudesse dar uma nota de zero a dez, eu…
— O que é você?
O tom sério, seguido da encarada afiada, cortou o espaço branco de estantes e livros, flutuantes ao infinito e o preenchendo com um pesado senso de ameaça, tornando o silêncio ainda mais pesado.
Sem filtro, as joias verdes expressaram rasgar a figura branca e sem características como o mero recorte de papel que aparentava ser, vontade essa reforçada pelos punhos levantados em frente ao rosto.
— O que é esse lugar e por que eu também estou aqui?! — Emily perguntou em tom ríspido. — Me responda!
Em meio à sensação de ameaça, ela tentou ativar os poderes, apenas para ser surpreendida por sua incapacidade de usá-los.
“Huh?! O quê?!” desarmou um pouco a postura combatente, de confiança abalada.
O instinto de ameaça tomou polaridade contrária de imediato, estando as posições de “presa” e “predador” trocadas. Incapaz de reagir de modo próprio, a jovem sentiu o corpo travar.
… … …
— Ah, me desculpa! Eu acho que esqueci de novo… — A figura disse, com gentileza paradoxal ao cenário. — Acontece com uma certa frequência… Hhhhgh! Eu ainda não aprendi perfeitamente como dividir a minha consciência em mais de quatro partes…!
A forma andrógina e desprovida de contornos característicos repousou a xícara na mesa flutuante, se “levantando” da cadeira, também flutuante, e indo em direção a ela.
— Sinto muito por te assustar! Não foi a intenção… Essa minha forma não significa nada demais; é só o modo como a maioria das psiques interpretam a minha presença, se eu não fizer nada a respeito.
— Huh…? — Os olhos de Emily cintilavam em pura surpresa, embasbacados com a mudança quase instantânea de aparência da coisa.
— Agora podemos ter uma conversa que preste, sim? Entre as duas belas damas que somos! — piscou, antes de explodir em um belo sorriso. — Que bom saber que tá tudo bem com você, Emily… Digo isso de coração!
“Ela…”
A ausência geral de feições desapareceu tal qual uma folha papel de presente é rasgada para revelar o que tem dentro; por baixo do branco, surgiu uma pele marrom-escura, cheia de detalhes suaves.
As unhas ganharam curtas unhas, pintadas em um rosa sutil e cabelos cacheados espessos caíram sobre os ombros, seu rosto revelando um maravilhoso sorriso de lábios carnosos, abaixo do fator diferencial e mais importante:
“Os olhos dela…!”
Um par de enigmáticas e encantadoras irides em púrpura, cujas presenças marcaram oposição perfeita ao verde-esmeralda que nelas batia, de profundidade incompreensível.
Mais importante, eram tais quais os olhos dele.
— Eu sei que você tem passado por tempos muito difíceis, Emily. Eu queria estar lá antes, acredite — disse, empática. — Também sei que as minhas palavras podem não significar nada agora e que você vai interpretá-las como se eu estivesse falando besteiras, mas… saiba que são os meus reais sentimentos.
O comentário a estremeceu por dentro, por ser a mais pura verdade. Em meio ao ódio, seu primeiro instinto foi pensar em como rebater a tentativa de empatia vazia e não-requisitada.
Para a Attwood, não importava o fato de ser uma enfermeira ou sequer ter cuidado dela; o mero ato de se atrever a pensar que a entende plenamente e diminuir suas impressões…
— Ei… — chamou, lábios presos em raiva. — Você tá lendo a minha mente, né…? Isso aqui… esse lugar…
A mulher sorriu de volta, um pouco mais seca.
— Pois é. Estamos dentro da sua cabeça agora, Emily Attwood, e isso aqui se chama [Espaço Mental] — explicou, devagar. — Esse, especificamente, é o seu.
A enfermeira deu alguns passos no meio do infinito, antes de esticar o braço e pegar o livro flutuante mais próximo, aberto em uma página aleatória.
— Aqui dentro, eu tenho acesso a tudo, desde suas impressões daquele grãozinho de areia no chão, até seus pensamentos, desejos e impulsos mais complexos… Tudo, nas minhas mãos.
A escrita em si não passava de caracteres desorganizados e sem qualquer sentido, mas para ela, os termos fluíam como uma inestimável fonte de informação, em seu estado mais inalterado.
Através dos olhos roxos, coisas inexplicáveis adquiriam sentido e objetivo, ordem e fluxo, agrupados e categorizados dos modos mais indecifráveis às vistas comuns; um poder aterrorizante.
— Hannah… Esse é o seu nome, né? — parou, sem se recompor. — Se você faz isso, significa que…
— Ah, o meu irmão? De jeito nenhum! — abanou a mão frente ao rosto em resposta, desviando o foco do livro. — Existe um mundo de diferença entre o que eu e ele podemos fazer e, cá entre nós, eu sou a mais experiente por um bocado!
O livro voou no vácuo ao ser solto, tomando infinita distância em velocidade constante, seguindo um rumo único, até ficar menor que uma formiga no horizonte.
— Ryan não consegue enxergar um quarto das coisas que eu enxergo, encontrar um décimo das coisas que eu encontro e nem ir um quinquagésimo tão fundo quando eu posso ir ao penetrar a mente humana! — sorriu. — Claro, uma parte disso foi exagero, mas é por essa linha!
— Então isso significa que você pode fazer o que quiser comigo e eu não posso fazer nada para impedir, enquanto estivermos aqui dentro…? E, espera aí…! Por que resolveu não me interromper dessa vez?!
— Porque você pensa que é chato quando eu faço! — Hannah apontou com uma piscadela. — Mas, brincadeiras a parte, embora eu possa fazer, não vou por conta de uns probleminhas externos… Certo que eu só podia socar toda essa informação na sua cabeça de uma vez só e ficaria por isso mesmo, mas…
— “Mas” o quê? — A adolescente questionou, sem mais um pingo de paciência. — Eu não posso guardar segredos de você, então não guarde segredos de mim…! Eu quero justiça!
— Ah, não é segredo nenhum! É só que a estrutura da sua mente é bem peculiar, sabia? Chegar aqui foi mais difícil do que eu pensei e isso é considerando que ambas você e a Ann tem o meu sangue circulando!
— Espera aí, o quê?!
Ao contrário de Hannah, Emily continuava sendo afetada pela geral ausência de gravidade no local, fato provado quando ela tentou agarrá-la com um pulo.
— Uuuuh?! Aaaaah…! — A jovem de olhos verdes entrou em pânico ao perceber ter perdido a estabilidade com o “chão”. — Faz parar…! Aaaaah!
Nem balançar os braços e simular voo ajudou; solta no vazio, ela voaria pelo infinito, levada aos confins do próprio inconsciente.
— Te peguei! — Hannah surgiu de repente atrás dela e colocou a mão em suas costas, fazendo peso surgir de um instante para o outro.
— WOOOOOOAH…! — As duas caíram por um breve instante, pousando em uma estante errante pelo caminho.
A presidente do Clube de Literatura fechou os olhos por reflexo, mas o impacto com a madeira nunca veio, e ao se deixar ver novamente, foi agraciada com a surpresa de estar flutuando a quase meio metro do objeto.
— Tá tudo bem agora — confirmou a enfermeira, sem mais tocá-la. — Você é tão imaginativa que nem gravidade tinha aqui! E conseguiu replicar as condições perfeitamente.
— Eu… Eu li num livro uma vez…! — Ainda defensiva, a menina pisou em “chão firme”. — Foi só questão de elaborar mentalmente…!
— Saquei tudinho! — confirmou, mesmo já antes ciente. — Então foi por isso que as suas lembranças voltaram quando ele tentou suprimir daquela vez; a sua cabeça foi literalmente demais para o meu irmão! Ahahaha!
Quase por automático, memórias do dia vivido na casa abandonada invadiram a mente da moça, e em especial, do instante quando Ryan tentou apagar a verdade exposta por acidente.
— A sua mente tem tantas linhas de defesa que até alguém que já viu poucas e boas não consegue operar tão fácil. Isso é um motivo para se orgulhar, eu diria! — riu com leveza, encarando diretamente. — Mas não é sobre isso que a gente precisa conversar, Emily. Melhor parar de tomar o tempo de nós duas, mas primeiro…
A Savoia bateu duas palmas e, num piscar de olhos, o cenário mudou por completo, relevando um ambiente frio, de luzes baixas, cuja única coisa consistente com o infinito branco era, em exato, isso.
— Eh? — Emily olhou ao redor, surpresa pela incapacidade de determinar se tratar de apenas um cenário falso.
— Foi aqui que eu decidi que você ia ser necessária para proteger esse mundo e, por consequência, ajudar o meu irmão.
No leito de hospital, ela viu a si mesma naquele período horrível; descabelada, pálida e com olheiras fundas, inconsciente e ligada a máquinas que não paravam de apitar e sinalizar.
— Eu tive a opção de não te salvar; sem a minha intervenção, você iria morrer em poucos dias, logo, eu tomei a escolha um tanto egoísta de te manter viva. Não vou mentir, foi sim por interesse próprio.
As portas se abriram e a enfermeira paramentada da cabeça aos pés entrou de forma furtiva, checando as portas mais de uma vez, para se certificar de que ninguém viria.
E, então, ela tirou uma porção do próprio sangue, injetando na garota.
— Mas, antes de me julgar, eu preciso que me escute, Emily. Você pode fazer isso por mim?
A brecha entre pergunta e resposta ocupou diversos segundos, e ela continuou a se observar no leito, vários instantes após aquela versão de Hannah já ter saído.
Nesse período, diversas coisas aconteceram, e na opinião dela, nenhuma delas boa o suficiente para compensar o fato de ter sofrido tanto.
— Doeu… sabia…?
O sangue fervendo, ganhando vida e rastejando sob sua pele… Os orgãos, gritando por um semblante de sossego ao serem esmagados por dentro… Os nervos, esticados e retorcidos, corroídos e esfolados…
— Doeu tanto… tanto…! Doeu tanto que eu só queria morrer…! Queria fazer parar!
No entanto, nenhuma dessas dores venceu o sofrimento advindo da maior perda naquele tempo.
— Ficar presa aqui… incapaz de ver elas… sem poder ouvir as vozes delas pela última vez… DOEU!
— Eu sei.
— É CLARO QUE SABE…! — Com lágrimas pesadas escorrendo, Emily gritou com toda força. — VOCÊ SABE DE TUDO! O TEMPO TODO! É DA MINHA CABEÇA QUE A GENTE TÁ FALANDO…!
— Eu sei, mas não por essa razão, e é por isso que eu não quero que se repita.
A encarada luminosa de Hannah revelou um peso súbito, invisível até então, e, devagar, cortou o curto espaço entre ambas, até menos de um metro as separarem.
— Não é o Steve, não é a Ann, nem um daqueles outros dois… precisa ser você, Emily. Eu preciso de você para isso, porque você é a única com quem eu posso confiar, estou sendo séria aqui; é do futuro de tudo que estamos falando.
Os sons das máquinas serviram bem para cortar o espesso silêncio, fazendo a atmosfera confortável justo o bastante para o questionamento final.
— E por isso, eu pergunto de novo… Emily Attwood, estaria disposta a me ouvir?