Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 145: "Diversão"
— Ah, mas que droga…! A minha cabeça não encaixa!
A jovem adulta de cabelos pintados em roxo jogou com força a faca usada para cortar legumes contra o chão, agarrando o próprio crânio pelas laterais e balançando para os mais diferentes lados possíveis.
O dia simplesmente não parecia certo, sensação essa iniciada desde o segundo em que despertou.
— Errado…! Tudo errado…!
Ao andar até a parede próxima, começou a bater a cabeça, de leve, contra a superfície rígida, na esperança de que as pulsações mecânicas contra o crânio fossem fazer alguma coisa por aquela sensação desconfortável.
— Deixa eu me sentir normal…! Deixa eu me lembrar…! Porcaria! Porcaria…!
Contando apenas a manhã, ela já tinha xingado mais vezes do que em três ou quatro anos inteiros; felizmente, ninguém estava lá para escutar.
— Por que a minha cabeça tá tão esquisita?!
As batidas renderam nada além de dor, só piorando sua situação. Frustrada, Abigail tomou uma cadeira do conjunto em torno da mesa e se jogou de corpo e alma ali.
— Tá tudo enevoado… Eu não lembro de nada… É como se eu não fosse… eu mesma…
As memórias restantes desde o horário do almoço da sexta-feira inexistiam para todos os efeitos, como se o final do dia em questão e o sábado após sequer houvessem existido.
E se a sensação de se acordar em um domingo qualquer, ausente de lembranças dos outros dias, não fosse suficiente, ainda existia essa paradoxal percepção de não se encaixar em si mesma.
Passar a manhã inteira não a deu chance de colocar em palavras a tremenda frustração de perceber uma desconexão entre mente e corpo, como se fossem duas coisas, por inteiro, separadas.
— Dá para sentir tudo…! O meu coração batendo, meus órgãos trabalhando…! Até quando eu me mexo, parece que é o braço ou a perna de outra pessoa, mesmo que seja eu controlando e eu sei disso…! — desabafou ao vento.
Ela não se lembrava do menor detalhe, passada a breve conversa com Rebecca.
— Talvez tenha sido aquele vazamento de gás…
Muitos estudantes e até membros do corpo docente reportaram sensações de esquecimento e náuseas ao fim do intervalo, e a posteriori, uma inspeção revelou um cano de gás com vazamento.
A rápida solução foi suficiente para abafar o caso como algo resolvido e as pessoas falaram pouco; uma simples bobagem.
— Hmm… — gemeu desconfortavelmente. — Tinha mais uma coisa…
Um conceito estranho e borrado batalhava para ganhar forma em sua psique, algo que ela deveria lembrar, mas tentar só re-exibia a incapacidade de fazê-lo.
Devagar, as peças desse quebra-cabeça se uniam, jamais o bastante para retornar à perfeição.
— Eu não consigo lembrar…!
Abigail sentia uma estranha necessidade, vinda do fundo de seu peito: um desejo por procurar, por perseguir.
— Não vem à mente de jeito nenhum!
Ela sabia existir algo que precisava urgentemente fazer.
— Eh…?! — De repente despertada pela súbita mudança no ambiente, admirou os cantos do cômodo, depressa tomando nota do que acabou de ocorrer.
A geladeira parou de funcionar e as luzes se apagaram; a máquina de lavar deixou de centrifugar e o LED do microondas cessou de brilhar. A energia, por algum motivo, sofreu um corte.
— Ah, não… — disse, o início do pânico a surgir. — Isso não!
[…]
— Bem, tá feito — disse o homem armado, para si próprio. — A desculpa perfeita.
Orgulhoso, o agente de campo admirou o trabalho como um artista dono da maior obra de arte. O segredo foi fazer parecer o mais natural possível, sob a forma de um cenário plausível.
— Só basta dizer que um veículo desgovernado bateu na torre de transmissão e isso causou a interferência no sinal. O pessoal vai comprar essa de boa, quer queiram, quer não queiram.
Pegou o rádio comunicador, usando do tempo para tomar um ar profundo. O fogo não se espalharia demais e resolver o assunto seria fácil, especialmente se tratando de comunidades inteiras.
— Primeiro passo resolvido — anunciou. — Dar início à operação, câmbio, desligo.
O caminhão cargueiro, colidido de forma estratégica contra a grande estrutura de aço precisou da ajuda discreta de explosivos embutidos em tanques de combustível para causar danos à fiação de transmissão.
Com a dispersão de energia, a estrutura se desestabilizou e os cabos romperam em alguns pontos, gerando um efeito dominó por toda a cadeia transmissora, deixando algumas comunidades sem eletricidade e sinal de telefone.
Agora, com os cidadãos impossibilitados de contactar outras pessoas ou gravar para a internet, a liberdade completa de agir caíra sobre as mãos deles.
“Agora eu preciso me juntar ao resto do pessoal.”
O combatente coberto em vestes táticas de cor preta correu em meio ao descampado de aspecto infinito, e visto não existirem quaisquer estradas grandes nas proximidades, ser visto não era problema.
O objetivo da curta corrida esperava perto, oculto em plena vista, na forma de um carro popular qualquer na cor cinza, sem destaque ao limite.
— Trabalho feito, pessoal.
Os outros quatro atiradores no interior o receberam com a missão já gravada em mente e ao saírem na estrada à frente, viram de longe a similar estratégia assumida pelos diversos companheiros de campo.
Helicópteros vinham deixar incontáveis agentes, que desciam por cordas em ritmo acelerado; ser visto compunha o fator a ser mais evitado nesse trabalho em particular.
Logo ao descerem, corriam para pontos determinados, em grupos de quatro ou cinco, até veículos padrão como o que estavam agora, para enfim seguirem em direção à cidade; helicópteros são eficientes, mas barulhentos, além de chamarem atenção demais.
Por motivos estratégicos, foram assumidas ao menos vinte diferentes rotas no perímetro de dois quilômetros e meio em torno de Elderlog.
— Informações acerca do sujeito foram repassadas pelas equipes Delta e Theta — falou o homem ao volante, manobrando na estrada. — É um indivíduo do sexo feminino, aparência adolescente, cuja capacidade aparentemente envolve manipular as estruturas do próprio corpo ao bel-prazer.
Nos bancos do passageiro e de trás, os ocupantes liam o repertório coletado de informações escassas por meio de laptops.
As pequenas telas exibiam filmagens do sistema do hospital, denunciando a movimentação do sujeito em questão, uma menina cabelos presos em duas metades nas laterais, de tom rosado.
— Não se deixem enganar pelas aparências, rapazes; essa mera garotinha massacrou a primeira linha efetiva por inteiro e fez isso completamente sozinha — disse ele, evocando máxima atenção. — Perdemos contato com todos os agentes no local, portanto assumam que estão mortos.
Mesmo ao ouvir de forma tão direta, acreditar plenamente naquelas palavras foi algo difícil, o que levou a questionamentos.
— Qual foi? Ela é imortal ou coisa do tipo? — perguntou o homem mais à direita, soando confiante. — Uma bala no lugar certo mata qualquer coisa!
O motorista o encarou através do retrovisor, enquanto suprimiu o desejo de discipliná-lo, mediante algo de tamanha seriedade.
Ao invés disso, ele só tomou ar, se recompôs e respondeu.
— A informação de maior credibilidade afirma que ela é imune a armas de fogo e métodos ordinários de dano físico, com informações de até destruição completa do cérebro por vários tiros a queima-roupa serem ineficazes.
A tensão subia, conforme o topo do prédio, aparentemente intacto por fora, aparecia aos poucos no campo de visão do condutor.
— Logo, para todos os motivos, o sujeito é, sim, imortal — falou, friamente. — E é por isso que não levaremos o nosso equipamento padrão.
O veículo parou a cerca de 300 metros da estrutura e a ordem de descida veio com o aceno de mão pelo comandante, gerando uma saída apressada.
— Peguem o equipamento no bagageiro e de pronto chequem por sinais de dano. Trazer essas coisas juntas em um espaço tão pequeno é trabalhoso.
As outras equipes chegariam em rápida sucessão. A entrada na construção se daria por moldes táticos, buscando chamar o mínimo de atenção.
— Mas… é estranho… — afirmou, atento ao sinal de satélite recebido em seu laptop. — Não houve uma única tentativa de escapar por parte de ninguém…?
O movimento nos entornos do hospital era inexistente; pessoas não saíam, não entravam e as vidraças quebradas na entrada serviam de único indicativo da existência de algo incomum, o deixando sem saber o que pensar.
“Ugh…!”
Ali, se desenvolveu uma situação ainda mais peculiar que em Elderlog High, cujas respostas só poderiam ser encontradas com a exploração a fundo.
“Eu não gosto disso…”
Ao fazer um pouco de exploração nos arredores com as imagens de alta definição, no entanto, ele percebeu algo peculiar.
— Huh…? Como assim?!
E, de repente, ficou simples entender a razão de ninguém estar entrando ou se aproximando da área caótica do hospital.
— Mas o que significa isso?! — exclamou em alto e bom tom. — Central…! Central! O que raios é essa porcaria aqui?!
A perda da compostura valia e zoom após zoom, os ânimos se afloraram mais, afinal, no meio da estrada, em pontos-chave do perímetro do hospital…
— … O que esse pessoal tá fazendo, fechando as ruas?!
Homens e mulheres armados improvisaram um cerco rudimentar em torno das ruas, agindo de forma hostil com quem tentasse se aproximar.
— Senhor, outros agentes adiante…!
“Huh…?!”
— Se aproximando! — disse um dos rapazes. — Estão estranhos, como se estivessem bêbados!
— Deixe… Deixe eu ver isso…!
Os cinco se juntaram ao lado do carro, se fazendo visíveis para o grupo de outros três — dois homens e uma mulher — de modos estranhos.
— Homens…
Ao vê-los, o pequeno grupo parou, como se analisasse as circunstâncias e a distância entre eles, mas ao invés de sinalizar ou tentar comunicação…
— ABAIXEM! PARA TRÁS DO CARRO!
Eles abriram fogo, avançando sem hesitação.
[…]
— Impossível… Impossível! O que você fez…?! Pandora…!
— Errado! Errou o meu nome de novo, Doutor! Eu já disse! Meu nome é Anastasia! A-nas-ta-sia!
Os pacientes não paravam de bater na porta, vítimas do fator sobrenatural incompreensível proveniente das células de propriedades incompreensíveis.
— Olha para isso! Não é legal? Eu também posso fazer experimentos, sabia? Pensei que fosse gostar desse!
— SAIA! SAIA DA MINHA CABEÇA…! — Ele arranhou os lados da cabeça ao gritar, puxando tufos de cabelo cinza.
— Ajuda…! — gritou um paciente, de jeito distorcido e desumano, ao bater na porta. — Me… ajuda…!
— PARE COM ISSO! — chorava, engasgado com as próprias lágrimas.
As batidas não paravam. Mesmo se tratando de golpes fracos, as dobradiças metálicas ameaçavam ceder.
— EU ME ARREPENDO! EU ME ARREPENDO! ME PERDOE SE TE CAUSEI DOR! NÃO FOI A MINHA INTENÇÃO! EU SÓ… EU SÓ ESTAVA CURIOSO…!
Ver uma pesquisa promissora descender a nível de pesadelo compunha um sentimento impossível de definir, mas se de algo ele tinha certeza…
— ME PERDOE…!
… Era a vontade de jamais ter feito acontecer.
“Todos os meus anos em busca de montar o meu nome… Toda a minha busca por valor…!”
— Socorro…! Ajuda…! — Cabeçadas na porta intercalaram as diferentes sílabas. — Ajuda!
“Eu não acredito que deixei ser tudo em vão… por conta de uma ambição…!”
O arrependimento não vinha da boca para fora e Pryce de fato acreditou estar mais próximo que nunca de ajudar a humanidade com um de seus maiores percalços.
— Eu pensei… pensei que podíamos vencer a morte… Pensei que estava perto de vencê-la…!
— Isso dói…! — murmurou uma entre as dezenas de vozes. — Socorro!
— Eu não pensei que ia acabar assim…! — exclamou. — Me perdoe… ME PERDOE!
De repente, o grande barulho se reduziu ao mais absoluto silêncio, deixando-o, por um momento, acreditar ter sido ouvido.
— “Me perdoe! Me perdoe!” vocês cientistas sempre dizem isso quando perdem o controle…
— Huh?! — Ele entrou em tensão, do topo à base, em um mero segundo.
Pryce sentiu aquilo rastejar por baixo de sua carne, descendo da cabeça, até o braço esquerdo.
— Eu aprendi isso assistindo vocês! Viu? Eu sou inteligente!
— Pare… PARE! PARE…!
— Eu assisti o jeito como eles olhavam para mim; de início eu não entendia e demorou para saber o motivo deles sempre fazerem aquilo…
— Não… Haah… Por favor… Não…!
— Eu queria entender o que era aquilo… o porquê eles me machucavam, me queimavam com choques elétricos, tiravam o meu sangue e me deixavam presa naquela sala fria… o porquê eles não conversavam comigo, mas só entre eles mesmos, com aquelas caras secas.
— Anastasia… Me perdoe… Me perdoe por tudo…! Eu não…! Eu não queria…! Então…!
— Mas eu entendi, um dia… Eu entendi o porquê e tudo ficou mais claro… Eles faziam porque era divertido! Não passava de um jogo para eles e eu era o brinquedo!
— UUUUUKH! HHHHHGHH…!
— Uma vez, uma formiguinha entrou na minha sala e esmagar ela com o meu dedo até vê-la quase morrer foi tão divertido…!
O bisturi afundou na garganta do velho homem, ondas de dor infinita ecoando da cabeça aos pés, conforme o sangue quente descia sem parar.
— Eles desenhavam símbolos no papel! Faziam desenhos bonitos em telas azuis brilhantes! Tudo sobre as coisas que eles aprendiam sobre mim! Eles faziam porque me achavam divertida! E saber disso…
— Pa…re…! Pa…re com… essa dor…!
— ... Me fez querer me divertir com eles também! Ahahahaha!
O braço esquerdo continuava apunhalando, abrindo buracos diversos entre estruturas nobres do corpo.
— So…cor…ro… Soc…!
— Não é legal, Doutor? Não morrer de repente não é tão ótimo? Poder sentir cada segundo, perder quanto sangue quiser, e ainda assim, continuar tentando respirar!
— Soc…! — A lâmina acertou a região da glote, impedindo-o de suplicar mais.
— Não é isso que você queria, Doutor? Não está se divertindo? Olha como foi interessante! Meu experimento foi um sucesso!