Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 148: Uma Missão

— … e eu acho que isso é tudo, pelo menos até onde eu acho. A verdade é que nem eu mesma posso te contar com tanta exatidão de como essa situação vai evoluir, mas eu te contei o que sei.

Emily e Hannah compartilhavam o espaço de outro cenário, criado a partir das memórias da primeira — um respiro mais fundo —, distantes da frieza do quarto de hospital.

A Savoia reconstruiu a praça da cidade com perfeição, incluindo pássaros a cantar e até o fluxo de pessoas cujas quais era comum ver nos horários mais breves de cada manhã.

A simulação de ventania e o balanço de folhas das árvores não abria espaço para imaginar se tratar de um local irreal e a impossibilidade de separar “criação” e “realidade” chegou a assustar, a princípio.

Até o céu permanecia consistente com o visual de eterna solidão perpetuado por Elderlog, onde o sol subia devagar, tímido, na linha do horizonte.

Foi ainda mais perfeito em comparação a quando ele fez, e a escolha de lugar ideal para se discutir assuntos tão pesados.

— Então… alguma coisa para dizer depois dessas revelações bombásticas? Eu queria ouvir da sua boca, Emily. Não estou lendo a sua mente agora.

Ouvir Hannah citar tamanhas barbaridades com tanta convicção fechou quaisquer espaços para questionamentos ou indagações e sob a força daquele olhar afiado, duvidar ficou impossível.

Foi como se ela viesse do próprio futuro e estivesse contando a maneira como as coisas se seguiriam dali em diante, com soberba riqueza de detalhes e teorias que não soavam como meras especulações.

De seu jeito mais torto e maluco, os pedaços unidos fizeram sentido e a compreensão de tamanha verdade a aterrorizou.

— … Eu não sei o que pensar sobre isso.

A madeira realista dos bancos rangeu ao movimento, fruto da inquietação. As crianças brincando no parquinho ao lado quebravam o silêncio, seus risos e graças fazendo ficar um pouco mais fácil de digerir.

— Eu… Eu não sei nem por onde começar a processar esse mar de… doideira…!

Parte das crianças parou ao ouvi-la gritar, segurando a própria cabeça em agonia; mesmo de mentira, pareciam preocupadas de verdade, adicionando ao senso de bizarrice presente no Espaço Mental.

— Tá tudo bem! — Hannah as espantou com um gesto carinhoso. — Eu estou com ela. Não precisam se preocupar!

Os garotos e garotas agiram em compreensão, acenando, antes de voltarem às atividades regulares e brincadeiras, fato que só fez ficar mais absurdo, pois Hannah não precisava daquilo.

Um estalar de dedos e aquelas mentiras ambulantes desapareceriam… A dúvida do “por que” não fazê-lo ganhou mais força, tal qual a confusão de não saber interpretar.

— Saber que você tá basicamente me dizendo que tudo isso faz parte de um esquema… que tudo é parte de um plano nojento… — Emily engoliu a saliva acumulada, amarga em sua boca. — Quer dizer que a morte das minhas amigas não passou de uma casualidade a mais…? Um “sacrifício necessário” para o avanço dessa loucura…?

— Essa é a minha teoria atual no assunto — respondeu. — Quando eu entrei na sua escola, me deparei com o sujeito por trás disso tudo, e posso te afirmar categoricamente que só olhar para ele já me contou mais de metade do que precisava saber. 

Múltiplas informações foram compartilhadas no breve intervalo de tempo, desde o início, até o teórico final, e em meio a tanto, sobrava o “meio”: a zona mais repleta de incertezas.

— As ações nessa cidade são deliberadas… Elderlog é um interior, um lugarzinho esquecido. É óbvio que faria sentido — disse, não tão confiante nos fracos argumentos. — E seja lá qual plano ele tenha, está bem mais avançado nele que qualquer um de nós gostaria de pagar para ver.

De repente, as coisas fizeram mais sentido do que nunca; as presenças de Steve e Ann, o pânico generalizado e o golpe às estruturas do Estado… ficou simples compreender o único motivo por trás.

— Ele quer criar um caos sem precedentes… Algo tão intenso e avassalador que fuja de seu próprio controle — disse Hannah, fixa na adolescente. — A intenção dele é destruir a humanidade em seu estado atual e criar algo novo… e Elderlog não passa da zona de teste.

— O quê…? — Ela se reergueu, ambos intrigada e assombrada com a teoria da Savoia. — “Zona de teste”…? Mas como assim…?!

— Não precisa pensar muito para ver isso na prática — rebateu, sem bambear. — Emily… quando você encontrou o envelope branco e resolveu abri-lo, foi por puro acaso, não foi?

— Hmm… É, foi sim… — pensou em voz alta. — Começou a chover forte, a luz caiu e aquela coisa enganchou no aro da minha bicicleta…

— Significa que você não foi escolhida. A sua infecção com aquela coisa foi puro acidente… Em suma, era para você estar morta agora e outra pessoa teria se beneficiado no seu lugar.

A menina de olhos verdes engoliu com barulho, relembrando as memórias dos dias sofridos no quarto de hospital, cheia de dores e sangramentos de aparência infinita, como se fosse um poço sem fundo de sangue.

— A coisa naquele envelope não tinha compatibilidade natural com você e iria destruir os seus tecidos até não poder se aguentar mais, por causa das adaptações falhas que o seu corpo não seria capaz de compensar naturalmente.

— … Então, você me injetou o seu sangue… — Ela interferiu na explicação, soando incrédula.

— … E modifiquei a estrutura do seu DNA, para que você pudesse aguentar e se adaptar com sucesso — finalizou. — De certo modo, foi uma aposta, porque nem mesmo assim era uma garantia perfeita.

Foi impossível não notar quando a jovem congelou de terror ao entender a revelação, e ao perceber, Hannah decidiu ser apropriado continuar.

— Existem três tipos de pessoas quanto aos poderes — levantou três dedos e pegou o indicador. — Um, aquelas mais comuns, que não possuem propensão natural para a sobrevivência e são intolerantes ao meu sangue. Essas pessoas simplesmente morrem quando são afetadas, não importa o que eu faça, e como já deve ter imaginado, são a maioria.

Pensar que até a estranha epidemia de “Síndrome X” estaria correlacionada com a loucura nas ruas fazia as teorias da conspiração mais famosas parecerem um tanto mais plausíveis.

— E então, temos o segundo tipo, pessoas como Steve e Ann — segurou o segundo dedo. — Esses são os naturalmente compatíveis, que não precisam da minha interferência. Essas pessoas costumam apresentar a forma mais leve dos sintomas e até se recuperam em casa em alguns casos; para eles, respirar aquela poeira causa só uma gripe bem ruim, e logo os poderes aparecem.

Só sobrou o terceiro dedo, o qual ela já sabia o significado.

— E existe você, Emily, o terceiro tipo… sem compatibilidade natural ativa, mas que pode ser despertada quando exposta ao meu sangue; são pessoas de incrível potencial, mas que não o apresentam de cara, não sei o exato “porque”.

— … Quer dizer que eu tinha 50% de chance de ter morrido, mesmo com o seu tratamento…? Quer dizer… você não sabia dizer se eu viveria ou não?

— Eu preferi ser positiva e acreditar que sim, você viveria! — sorriu de leve. — E olhe só! Parece que eu estava certa. Você reagiu bem ao meu sangue, Emily; somos muito compatíveis!

A existência de uma “seleção” para pessoas capacitadas a desenvolver habilidades se tornou em uma ideia mais mastigável após a conversa, embora não menos horrível.

— … Esse cara andou escolhendo pessoas para participar naquele massacre… — rangeu os dentes, repleta de raiva. — Ele… coagiu com promessas de poder… com ameaças…!

Ann e Steve não são inimigos, mas pessoas como ela, tão vítimas das circunstâncias quanto, e embora isso não significasse que deixaria de responsabilizá-los por tomar parte em tamanha brutalidade…

Quem ele pensa que é…?! Zombando de tantas vidas… DE TANTAS HISTÓRIAS…?! — exclamou, borbulhando em ódio. — É porque é engraçado…? Divertido…?! Ah, se eu ver ele…!

— Ele é poderoso demais.

A calma voz serena da mais velha serviu de parede para os pensamentos da outra e a trouxe de volta para a realidade.

— Ele é muito forte, talvez até mais do que eu — afirmou. — Naquela luta, eu senti o peso da morte de perto; se ele não me matou, foi porque não quis, por conta de simples e puro capricho.

Tranquila, Hannah se levantou do banco à frente e relaxou a mão sobre o ombro de Emily, e olhando por trás dela, falou em bom tom.

— Antagonizá-lo diretamente só vai te fazer um cadáver. — As palavras sérias caíram em peso. — Não importa quantos, ou se todos vocês se juntarem, porque não vão fazer um arranhão nele se o irritarem o suficiente, portanto, desista dessa ideia maluca.

Sentindo a tensão sob sua mão morrer, a enfermeira a deixou de lado e esticou os braços em um gesto cansado.

— Meu tempo com você tá acabando… — bocejou ao falar. — Preciso voltar para a minha capacidade cerebral plena… 20% de uma mulher não é lá tanta coisa assim…! Sem falar que o Steve tá arrastando a Ann e a distância deixa isso mais difícil…

— Espera aí…! Eu…!

— Ah, é mesmo! Antes de ir, eu tenho uma missão para você, Emily. É uma coisa até simples, mas que eu não posso cuidar agora… posso confiar em você para isso?

— Tanto faz…! Tá, eu faço, mas…!

— Ótimo! Então, o que você precisa saber é…

— UGH…! — A presidente do Clube de Literatura caiu de joelhos, tomada de surpresa pela tamanha dor em pontada na parte da frente de sua cabeça.

Durante dois longos segundos, um prego metafórico foi martelado contra o próprio cérebro da moça, invadindo-a com informações diversas sobre um tópico a mais, não discutido na conversa.

— Me desculpa por isso! É só que assim ia ser mais rápido! Vai passar logo, eu prometo.

Dito e feito, a dor nauseante desapareceu em um piscar de olhos, e a nova informação se consolidou.

— Ei, isso foi golpe baixo…!

Frustrada, se reergueu, espanando a poeira falsa das roupas por um breve instante. De pé, Emily a encarou nos olhos e, tentando esconder a pequena raiva, fez a pergunta final.

— Naquela hora, na memória do hospital, você disse que não podia confiar em mais ninguém para falar disso e que precisava ser eu… Por quê?

O vento cortou o espaço entre as duas e o corpo de Hannah começou, aos poucos, a desaparecer.

— Não é óbvio? Porque você é a única em quem eu posso confiar para saber.

A começar pelos pés, a figura da mulher negra perdia cor e se desfazia em cinzas, levadas embora ao inexistente.

— Mas isso não responde nada…! — insistiu. — Vai, me dá o motivo real! Anda…!

— Ai, ai… Tá bom, tá bom…

O corpo semi-desfeito se aproximou da garota e a tocou na testa com o único braço restante, gentil.

— É porque você foi aquela que ele aprovou, Emily.

Os dedos se ajeitaram em uma posição certeira, juntos um do outro para o último gesto.

— A sua mente não vai lembrar dessa conversa, mas o coração vai — disse, quase por completo desfeita. — Essas palavras foram gravadas na sua alma, junto com a minha missão. Não se preocupe! Vai saber o que fazer, basta seguir sua intuição feminina!

— Ei…! Espera…! Hannah…!

Emily sentiu o corpo voar para trás, impulsionado pelo pequeno empurrão da mão em sua testa e a praça falsa tomou distância em um mar de branco infinito, criando uma sensação semelhante a de se cair em um sonho, ampliada.

Antes que o branco se tornasse escuro e os olhos fechassem de vez, os lábios da Savoia se moveram e ela os pôde ler.

“Obrigada por ser a primeira amizade do meu irmão, Emily.”

… … …

“Urgh… A minha cabeça… Parece até que eu fiquei de ressaca ou algo assim…”

A terra sob suas mãos e o cheiro um pouco molhado do chão foram as primeiras sensações recebidas ao despertar. Desorientada, a luz forte ofuscou-lhe a visão, contribuindo para seu sofrimento.

— Essa dor de cabeça…

Para ela, o desmaio em questão foi um nocaute completo.

— É mesmo…! Ah, aqueles dois…! A gente lutou e…!

Suas memórias tinham um grande buraco, que impulsionou a dor de cabeça e a fez saltar para ficar de pé, despertando sentidos e instintos à força.

— Ugh… — Separados por quase cem metros, trocou olhares com o manipulador de chamas.

Ele reagiu com extremismo ao fato de vê-la em pé, se apressando para levantar com uma postura de combate, mesmo dali sendo visível a tremedeira e a falta de confiança.

— Ah, esquece…! Não vale a pena.

Identificou o formato desfalecido de Ann com certa dificuldade, desmaiada ao lado dele e logo veio a conclusão.

“Ele preferiu não tentar me matar.”

Pensamentos cheios de ironia a tomaram no breve segundo de contemplação, ao perceber que o ódio ardente pelos dois, em função das coisas que fizeram, se reduziu a meras brasas.

“Não vale a pena. Só… não vale a pena, eu acho…”

Resolveu que o toleraria e que ataques só viriam se ele atacasse primeiro. A pouca paz interior, porém, durou pouco, quando voltou os olhos para a cidade e um mau-presságio apertou-lhe o coração.

— Isso foram balas…?



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