Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 142: Dessaturação
“Ugh…! Droga…!” Ann-Marie tentou se levantar, interrompida pelo novo chute de origem incerta embaixo de seu queixo. — ARGH…!
— Você é a manipuladora de insetos… Você foi quem não deixou as autoridades entrarem e impediu os estudantes de evacuarem!
Graças à invisibilidade, o único modo de mensurar a proximidade de Emily se tornou a sua voz. Atenta a isso, a controladora de insetos forçou o corpo a reagir depressa e atropelar a própria dor para ficar de pé.
— Eu já disse…! — rolou para o lado, se apoiando na posição de arqueiro. — A gente fez porque fomos forçados…! Não foi a nossa escolha!
— E eu repito…! — surgiu outra vez por trás. — É fácil demais sempre olhar as coisas desse lado!
A reação rápida dos joelhos em propulsão a lançou para frente por mais de um metro e ao cair, o firme contato dos pés no chão marcou um estado de aguçada atenção na lutadora mais experiente.
“Ela não vai me ouvir…! Não vai dar para passar dessa na base da conversa!”
Entre sons de folhas e a brisa do vento, os olhos brilhantes em ciano buscaram por qualquer sinal indicativo da movimentação da Attwood.
“Ela ficou invisível, mas é só isso. Não é como a habilidade dele”, pensou, em cálculo aguçado. “Eu ainda consigo escutar quando ela fala e o fato de não precisar necessariamente se materializar para isso me diz que…!”
As pedrinhas na terra, quase dois metros à direita, ativaram os alertas ansiosos dos ouvidos aguçados da garota.
— … Aqui…! — saltou para trás, evitando um golpe em cheio no meio do peito. — Antecipei…!
Ann continuou a correr ao topo da velocidade, tomando o máximo de distância de Emily, o que abriu uma grande brecha entre as duas.
— Huh… Esperta… — A Attwood de algum modo desativou o efeito da palavra e se fez plenamente visível.
— Ei, Emily…! Essa sua habilidade…! — Ann decidiu fazer uma aposta. — Como conseguiu ela?! Foi por causa de um cara com um olho coberto de cabelo?!
Medo fluiu pelas veias ao vê-la escrever mais uma palavra no braço esquerdo — “silêncio”.
— O jeito como eu consegui isso não te interessa…! — acionou novamente o poder. — Eu só sei que nunca vou me permitir cometer os mesmos erros que vocês!
“Merda…! Eu não tô ouvindo ela mais…!”
A aposta falhou e, para piorar, não era mais possível verificar sua posição por meio do barulho.
“O que eu faço…? O que eu faço?! Pensa, Ann-Marie…! Pensa!”
A menina de marias-chiquinhas deu partida em um novo ciclo de corrida e forçou a própria mente a operar no equilíbrio entre não perder tempo e ainda assim elaborar um plano efetivo.
“Ela ainda interage com o meio quando se move… De todos os pontos de vista, ser invisível não significa que ela não exista…!”
Criou um foco em fazer voltas rápidas e sem padrão em torno dos resquícios da velha casa; se Emily não puder determinar sua localização exata, ao menos nos próximos segundos de uma tentativa de golpe, uma mínima vantagem viria à tona.
“Eu preciso ganhar mais tempo para pensar em um jeito de combater eficientemente… e também…!”
A falta de barulho não negava o impacto de seus passos na terra, mas embora ficar na defensiva e cansá-la soasse como boa estratégia, seus próprios ferimentos viriam a ser sua ruína.
Uma vez passado o efeito do pico de adrenalina, profundas dores viriam dos golpes certeiros e a morte lhe seria certa.
“... Preciso expandir a minha área de busca…!”
Lidar com dor intensa e o gesto de correr atrapalhava bastante a concentração capaz de ser posta em sua habilidade; acima de tudo, porém, ela teve de tentar.
“Qualquer coisa…! Eu preciso chamar qualquer coisa…! Nem que seja só um montinho de mosquitinhos!”
— Não vou deixar…! — A quase um metro de distância do rosto dela, Emily se materializou.
— Ugh! — gemeu, ao desviar do golpe devastador por quase dez centímetros.
— Eu me segurei por tempo demais assistindo vocês dois… Sabe o que eu perdi naquele fogo?! Sabe o que eu passei nesses dias?! No que eu pensei?!
“Mais rápido…! Eu preciso de mais potência…!”
A raiva da Attwood ascendeu a níveis astronômicos e o próximo golpe seria certeiro.
— Eu só pude me perguntar se eu podia ter feito alguma coisa… PENSEI QUE SE EU NÃO TIVESSE DOENTE, PODIA TER SALVO AS MINHAS AMIGAS…!
O soco, dado pelo braço um pouco queimado pelo ataque prévio de Steve, se fechou com tremenda força, e no tempo lento do processamento mental, Ann viu trilhas de sangue descerem da palma.
Emily cravou as unhas na própria carne, de tão coléricos que eram seus motivos.
“... Ah, é verdade”, refletiu o alvo do golpe, em lembrança de algo. “As minhas razões são completamente incompatíveis com as dela… e as nossas vontades são alimentadas por forças diferentes.”
O discurso da presidente sempre se justificou em si próprio e isso o bastava, afinal, não foi Ann quem perdeu tudo o que tinha e teve de lidar com as consequências emocionais.
“Foi fácil para mim dizer. Foi muito fácil.”
Fato é que não saberia definir como reagiria caso fosse com ela, reflexão para a qual já não existia mais tempo.
“Droga.”
Fechou os olhos e se preparou para a pressão, pedindo para que, se possível, morrer não doesse tanto, e conforme o fez, acabou por ignorar o desespero crescente das criaturinhas por baixo do casaco.
… … …
— Ann, olha só isso! As abelhas estão me seguindo, como se eu fosse uma flor…! — O homem rodopiou, rodeado pela grande nuvem de abelhas sem ferrão.
“Que bom que elas não podem atacá-lo”, foi o que ela conseguiu pensar, um tanto pasma. “Se fossem abelhas ordinárias, já estaria morto.”
Foram pensamentos mórbidos para uma criança de apenas dez anos, em especial pela factualidade analítica neles presentes. Para alguém tão jovem, a capacidade de pensar tão objetivamente causava medo em alguns adultos.
— Eu sou rei das abelhas…!
“Heh”, riu de canto, se negando a admitir que as palhaçadas habituais feitas por seu pai eram, sim, bem divertidas.
Porém, a coisa mais interessante em ver um sujeito louco correndo pelos campos, em círculos, não foi o gesto em si, mas o conteúdo por trás dele, até porque, mais cedo, o ponto foi levantado na mesa do café.
— Abelhas sempre seguem e protegem a rainha de suas colméias, Ann — disse ele, soando entusiasta. — Se a rainha for levada para qualquer lugar, as demais vão com ela, e a depender da espécie, podem ser bem agressivas quanto a garantir sua segurança.
… … …
— ARGH…! — Irritada pelo súbito ataque-surpresa, Emily parou. — De onde veio isso?!
A dezena de abelhas ocultas nas dobras internas e bolsos do casaco de couro atacaram, sacrificando suas pequenas vidas para salvá-la da situação de perigo, tal qual fariam por sua rainha.
“É a minha chance…!”
Emily não seria tão atrasada assim; humanos não-alérgicos podem sobreviver a centenas de ferroadas e para além de dor e um pouco de inchaço local, nada de mais grave viria.
“Preciso aproveitar essa brecha…!”
Sem perder tempo, ela tomou o máximo possível de distância com três saltos para trás, se afastando a quase oito metros da oponente mortal.
— Ora… sua…! — Os insetos sentenciados à morte batiam asas pelas últimas vezes, após darem o máximo de si.
Na oponente, em junção à raiva e a clara vontade de matá-la, alguns pequenos ferrões de peso inútil no combate pendiam, sem efeito; apenas o esperado de alguém tão poderoso.
— Vai precisar de mais que isso para acabar comigo! Muito mais!
Ela se preparou para escrever outra palavra na palma da mão, uma gota de suor a escorrer da testa. Em tal momento, compreendeu um fato importante, crucial para ganhar mais tempo.
— Consome bastante energia, né? Eu sei…! É como se estivéssemos nos exercitando.
O anúncio súbito desestabilizou a garota de aparente vantagem, um tanto brava por ter sido desmascarada; manter a invisibilidade, em conjunto com tantas outras palavras ativas, roubava bastante energia.
— … Tá, mas e daí…?! Eu só vou precisar de uma palavra para acabar com isso! — retrucou. — Depois disso…!
— O que vai fazer depois disso? Nos matar?
Uma trilha de sangue deixou o nariz da lutadora e, junto disso, os sons nas redondezas ficaram mais claros. Os olhos dela brilharam em azul-esverdeado, mais intensos que nunca.
“Essa sensação…”
As pontas dos dedos relaxaram em um estranho estado de calma; um segundo, e o calor da empolgação e da quebra de limites se viu sobrepujado, transformado e moldado em algo diferente, mais quieto e contido.
Porém, nada ruim; até preferível ao estado prévio, por diversas vezes.
“De onde… De onde vem…?”
Algo passou a apoiá-la a partir de tal ponto, e como se uma ponte houvesse sido magicamente erguida entre duas montanhas, o impossível se tornou simples de alcançar.
A partir de então, sentiu-se e se enxergou capaz de qualquer coisa.
“Eu vejo… Púrpura.”
A explosão de cor fez seu corpo se mover sozinho, em ação por puro reflexo, repleto de inexplicável euforia.
A percepção de tempo se esticou, e com a elevação do indicador direito, veio o maior ataque vivo desde o atentado.
— Hkkk…! — Emily se atentou a todos os lados, escurecidos pelas partículas voadoras vivas e prontas para arrancar pedaço por pedaço de sua pele.
— A minha manipulação se conecta com todos os artrópodes presentes em uma área de dois quilômetros, Emily! Normalmente, é bem difícil movimentar grandes populações deles e controlar cada um demanda tanta energia que nem chega a ser divertido…!
Nela se lia uma expressão indescritível e complicada de tentar definir, posto que, embora trocassem olhares, a percepção que se tinha era a de que Ann via através dela.
— Quando eu chamei todas aquelas mariposas e abelhas para Elderlog… O meu cérebro só faltou explodir…!
A garota ficou fora de si e a força misteriosa a transformou em uma observadora presa na própria carne, capaz de somente contemplar a onda de estranho impulso por tomar uma ação, até então, impensável.
Ela iria tocá-la; essa era a única coisa em mente.
— Não dá para descrever essa coisa que eu tô sentindo agora, mas…
A nuvem de seres vivos envelopou o corpo de Emily em uma única saraivada de pequenos corpos. Um a um, em seus milhares por segundo, coisas a variarem de meras moscas a aranhas e baratas escalaram sobre cada canto de sua pele.
— … Se é o que ela me diz para fazer, é o que eu farei acontecer…! — As duas trocaram o mais penetrante jogo de olhares, até então.
No meio do tom variante entre azul e verde, ela viu algo conhecido — estava ali, quase imperceptível entre as oscilações luminosas, mas definitivamente presente —, firmes traços de roxo.
Foi impossível não pensar nele ao se deparar com tamanha semelhança, mista de tão grande diferença. O atípico olhar foi a primeira coisa que lhe saltou, no quesito das sensações provocadas nela.
Aquele roxo não compartilhava a mesma composição de antes, ainda assim, a impressão causada a atingiu de um jeito familiar.
Incapaz de se mover, graças ao peso da massa viva, o contato da mão inquieta de Ann foi inevitável, e quando a frieza nas pontas dos dedos abriu o caminho entre as paredes firmes do subconsciente, ela teve certeza.
“Eu… já senti isso antes.”
Pouco a pouco, a sensação ao longo de seu corpo se perdeu e o peso da existência se reduziu ao zero, até o ponto onde acreditou estar flutuando, por mais que os pés ainda estivessem firmes no chão.
O mundo dessaturou até perder o último filete de cor, e quando os formatos de tudo foram apagados ao branco infinito, ela piscou.
— Huh…?
Várias estantes de livros voavam no ar ausente, presas no tempo. Delas, os livros pendiam e, às vezes, até tomavam rumo próprio no meio do nada.
— Eh…?
Uma mesa de madeira flutuante estava rodeada por quatro cadeiras. Sobre a mesa, jogos de chá e um bule bem-decorados se dispunham, ao conforto dos ocupantes.
Um ser tomava seu espaço entre o caos organizado e foi quem a chamou para mais perto, sorrindo para ela, mesmo na ausência de uma boca.
— Perdão por antes! — falou, um tom andrógino e indecifrável a fugir dele. — Precisávamos conversar o quanto antes, e não tinha outro jeito de estabelecer essa ligação!