Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 141: Sobrevivência

— … E eu não vou só deixar passar em branco… Tudo isso que vocês dois fizeram…!

O par de luzes verdes brilhou com fúria descontrolada, condensada nos limites do punho trancado a máxima força, pronto para colidir com o chão.

STEVE, DESVIA…!

Diante de tamanho desespero, os dois caídos rolaram, cada um para um lado, agilizados pela súbita liberação de grandes cargas de adrenalina.

— A gente vai ter que brigar… — Ann falou, em pânico puro escrito em cada pedaço de suas expressões. — Vamos ter que sair na mão com ela, Steve…!

— Ah, tô vendo que pelo menos vocês entenderam!

Emily chamou pelo próprio poder, o que deu origem a uma onda de ansiedade; a agilidade e potência absolutos do ataque prévio não a permitiram ver do que se tratava a habilidade da mais popular.

“Super força?! Ela tem atributos a mais?! Eu tenho que descobrir mais! Preciso assistir com atenção!”

Tomada por incertezas, a única base sólida da qual detinha vinha da sensação instintiva a queimar no peito: Emily Attwood era perigosa a níveis criminosos, a ponto de levá-la a questionar quaisquer chances de vitória.

— … Eu estive observando vocês dois… Escutei uma conversa, uma vez só, quando usei o meu poder para escutar melhor… A partir de então, eu só passei a ter uma coisa em mente…

O pequeno marcador preto fez contato com a pele clara e o segundo seguinte deixou fácil a compreensão. Emily escreveu uma palavra em si mesma e no preciso instante, o efeito se materializou.

A raiva arrasadora no olhar gelou a alma de Ann-Marie e o coração saltou uma batida ao, enfim, perceber a larga distância percorrida entre as duas.

“Ágil”, foi a palavra lida na pele do braço esquerdo da mais popular.

Uma fração de segundo e o bafo quente da respiração pesada da atacante soprou contra o suor frio e o espírito despreparado da manipuladora de insetos, que tentou ao máximo uma defesa fajuta.

FAZER VOCÊS PAGAREM POR ARRUINAREM MINHA VIDA…!

O soco pesado e impulsionado pela súbita aceleração acertou quase em cheio o estômago da menina, cuja alma por pouco não separou do corpo, mediante a absoluta potência.

— URGH…! AAARGH…! — Ann rolou pelo chão, a voar por quase cinco metros no ar.

O golpe perfeito a fez voar como uma boneca de pano atirada para longe por uma criança birrenta, caindo de rosto no chão.

— ANN…! — Em julgamento por não ter agido antes, Steve decidiu não perder mais tempo. — EI…!

O rapaz fez ferver o sangue de suas artérias, puxando para fora o máximo de si. Em um choque, o verde-esmeralda colidiu com o alaranjado das chamas.

“Ah, então foi você mesmo”, ela pensou, focada no brilho ígneo.

A explosão das grandes labaredas cobriu o braço direito dele, de alguma forma sem causar dano às roupas e, alimentadas pela determinação de ajudá-la, cresciam mais de dois metros acima do Evans.

— Segura essa…! [Bola de Fogo]!

Num piscar de olhos, o fogo se condensou em uma esfera, contrário à própria natureza e veio na direção dela, em trajetória direta.

— Então a culpa foi sua… né…!? — Ela murmurou, em meio a tantas memórias em constante invasão.

O calor e o brilho, aumentado a cada fração de segundo, jamais conseguiria superar a amargura de relembrar daqueles ótimos momentos.

Ava… Olivia…!

Um ano inteiro de reuniões do Clube de Literatura passaram em repetição diante de seus olhos e, no momento, nada mais podia ser tão importante.

Elas eram as minhas amigas…! EU AS AMAVA!

Emily fervia por dentro, a ponto do fogo, localizado da pele para fora, não significar mudança.

— … Huh…? — Os olhos de Steve dilataram, estarrecidos pelo feito além de qualquer limite humano realizado por ela.

POR QUE TEVE QUE SER COM ELAS?!?!

A grande bola de fogo não mais existia. Do jeito mais simples — e quase como se aquilo fosse a coisa mais habitual do mundo —, Emily socou o grande projétil.

“Eh…?”

As potentes labaredas fizeram quase nada, deixando o braço só um pouco irritado, dotado de uma vermelhidão tão superficial que sequer podia acreditar.

“Ela… Ela contra-atacou o fogo… DE FRENTE?!”

O alaranjado, antes tão unido e comprimido num formato coeso, se espalhou no formato de um círculo ao redor da Attwood, a deixar um centro vazio, onde nem a menor fagulha ameaçava invadir.

“Eu tô morto…”

Quis correr, fugir para algum lugar seguro, tal qual sempre costumou, quando as coisas ficavam difíceis, se deixando ser tomado pelo velho sentimento horrível de se sentir impotente.

“Eu…!”

Steve Evans começou a se questionar: por qual motivo ele pensou que seria tão fácil?

Só mudar a perspectiva não alterava os fatores reais ou negava suas existências; fingir ser corajoso ou ir contra a própria natureza, em virtude de passar a imagem de disposição…

Desde quando ele se deixou levar pela fantasia de que a correção dos próprios erros viria de um caminho tão limpo? E, principalmente…

“Eu não consigo me mexer…”

O punho fechado de Emily criou pressão no ar ao redor. A essa altura, não poderia fugir, nem na presença dos reflexos atléticos ensinados por Ann.

“Eu só não queria ter que passar por mais problemas… Por que eu fui arrastado para isso…?”

Imagens tomaram os últimos fragmentos de segundo antes do encontro fatídico com a morte, e dentre as cobranças de seu pai, o cuidado excessivo de sua mãe, memórias de Stella e da infância de isolamento e mediocridade…

“Eu sou só um cara normal…!”

— Haah… Eu já sabia que era você, mas, olhando de perto, parece que a ficha só caiu de verdade agorinha.

Em desespero, fechou os olhos, pronto para o impacto, mas, ao contrário do imaginado, a coisa que veio não foi um soco.

“Eh?!” abriu-os, surpreendido pela ausência dos pés no chão.

No meio da confusão mental e dos próprios sentidos, Steve demorou para perceber a firme mão aberta da garota em torno de seu pescoço, a erguê-lo.

— Eeeeeh?!

— Me agradeça — disse ela, fria e amarga. — Porque, no fim das contas, eu consegui pensar direito.

— WOAH…!

As costas dele tocaram o chão em um baque violento e, embora o impacto tenha doído, não foi próximo do necessário para nocautear ou sequer causar algum dano. 

Paralisado pela dor, não teve como reagir ou tentar fazê-lo, diante da suprema agilidade na manobra seguinte.

— … Então é melhor você ficar fora do meu caminho… ao menos, por enquanto.

Emily escreveu na testa dele a palavra “Sono” e ativou o poder com um toque.

— Agora é a sua vez.

Ela deixou o corpo caído do manipulador de chamas onde o próprio caiu. De pé, a Attwood olhou de cima, fazendo questão para que a oponente visse a frieza em seu rosto.

— Você ainda tá consciente depois daquele soco? Hmm… Ah, é verdade! Você tinha bloqueado.

— Urgh… — Ann se pôs de pé com cautela, as dores no corpo se fazendo visíveis. — O Steve… Você…

— Relaxa. Com ele, eu não fiz nada de mais.

A controladora de insetos tomou cada passo com cuidado extra, temerosa quanto à possibilidade de ter quebrado algo.

“Ela bateu para matar”, pensou. “Então, se eu não tivesse bloqueado…”

O impacto amortecido pelos braços e o curto salto no último milésimo — só para cair melhor — a pouparam da potencial morte por hemorragia visceral.

Graças ao pensamento rápido, escapou com leves escoriações pelo atrito no chão.

“E o meu braço esquerdo…”

Ao invés de dor, uma estranha anestesia a impedia de sentir a maioria das coisas. Além disso, musculatura não funcionava corretamente e meras tarefas como esticar ou fletir os dedos ficaram quase impossíveis.

“Eu não tô sentindo agora, mas… isso vai doer para caramba depois… se eu viver, no caso.”

— Eu queria, sabe…? Eu queria amassar a cara dele até virar um bolo de sangue… Mas eu não fiz… Não fiz, porque me lembrei de uma coisa…

As veias saltaram no punho fechado da Attwood, selado com tamanha força que se causava a tremer, e conforme a raiva de novo adentrava o tom de voz, um novo alerta de perigo, maior, a alcançou.

— Só que… essa coisa que eu ouvi naquele dia…

“Droga, droga, droga…!”

A queimação ansiosa no topo do estômago serviu quase de antecipação ao que viria depois.

— Não dizia nada a respeito de você…! — Emily mostrou os dentes, furiosa.

Terror absoluto guiou o sangue até o rosto e o aperto no coração diante das remotas possibilidades de sair viva tirou-lhe boa parte do ar.

Ann não possuía a menor noção do que fazer em seguida.

“Eu preciso pensar em algo… Alguma coisa… Qualquer coisa…!”

Ela podia lutar e perder, ou fugir e perder — ambas terríveis —, opções realistas; Emily era poderosa demais e só bastava um leve olhar para compreender o tamanho verdadeiro do monstro.

“Não vou conseguir lutar desse jeito… Preciso pensar em outro jeito!”

Viu ela fazer algo para desacordar Steve e assumiu estar de certo relacionado com o seu poder. Nos poucos segundos de consciência, não pôde observar muito, porém, isso trouxe uma ideia.

“Eu tenho que comprar tempo…!”

— Alguma coisa para falar antes? — perguntou, com o marcador empunhado na destra. — Se tiver últimas palavras ou uma desculpinha, é melhor abrir o bico!

“Espera… Ela não machucou o Steve de verdade… Então…!”

Na luta para se levantar e tomar o mínimo de ar, escutou um pouco da conversa breve e unilateral dos dois, com atenção a postura de irônica piedade.

— Emily… Por que poupou o Steve…?

A pergunta saiu do jeito mais sério possível. Ann esperava fazer um impacto, por mais mínimo possível, e se for possível gerar uma abertura, por mais breve.

“Talvez eu possa até fugir…”

A lógica soou fria, mas ela não teve como se importar, pois se Emily não matou Steve quando teve a chance, talvez não o fizesse também em sua ausência.

“Mas eu não gosto de trabalhar com dúvidas.”

— Haaah?! — Ela indagou, soando incomodada.

— É…! Por que poupou ele?! Ele também tá envolvido no massacre…! É um tratamento injusto! Você nem tá ouvindo meu lado!

— …

Puro silêncio veio da adolescente agora de cabeça baixa. Diante do argumento, Emily passou a encarar o chão em cheio, com olhos cheios de conflito.

Ao notar ser uma estratégia eficaz, Ann reuniu o máximo de coragem e continuou a pressionar.

— Eu também tô nas mesmas circunstâncias que ele! Nenhum de nós dois fez isso porque queria, sabe?! Fomos obrigados! A gente não precisa fazer isso, Emily…! Me ouve! — anunciou, em alto tom. — Se é vingança que você tá caçando… tá pegando as pessoas erradas!

A argumentação ganhou tons mais confiantes e assertivos, a ponto dela estar quase gritando sem nem perceber e, incisiva, continuamente cavava na mente em busca de pontos a mais para adicionar.

— Eu e o Steve fomos colocados lá para servirmos de iscas… Eles nos queriam para dividir a atenção! Nenhum de nós sabe o que eles pensaram de verdade ou concordamos de plena vontade em participar dessa bagunça…! 

Mais argumentos, mais tempo ganho e na passagem completa dos segundos, Emily ouviu a cada palavra com atenção.

— Só fizemos o que nos foi ordenado… e só porque não tinha outra escolha…! — gesticulou agressivamente ao falar. — Eu sei que quer nos culpar disso e tudo bem, por mim…! Mas… só pensa…!

Em prova do próprio ponto, Ann deu um passo adiante e a fitou nos olhos obscurecidos pelos cabelos, sem reciprocidade.

— A gente do mesmo lado, Emily. Não somos os seus inimigos…! A gente não tem que lutar por isso! Juntos, ficamos mais fortes e podemos consertar as coisas…! Podemos pegar os verdadeiros culpados, trabalhar para fazer as coisas voltarem ao normal e…!

Verde frio travou-lhe a garganta ao fitá-la no fundo da alma.

— “Fazer as coisas voltarem ao normal”...? — repetiu, em óbvia sátira, se contendo para não derramar de vez o imenso ódio nas palavras quebradas. — Sabe, eu prestei bastante atenção em você, na sua conversa com ele.

Segurou mais firme no marcador e Ann saltou para trás como reação.

— As coisas são sempre tão simples ao seu ver, não são? Tudo é do jeito que é e cada coisa acontece por um motivo… Não adianta chorar sobre o leite derramado e o importante é seguir sempre em frente…! — acrescentou ao tom, até quase grunhir. — Ah, como eu odeio gente desse seu tipo…!

— Emily…! Não foi isso que eu quis dizer…! Eu…!

— Não pôde fazer nada porque foi forçada…! Concordou em matar pessoas porque não tinha outra opção melhor…! É claro…! Afinal, quem concordaria em deixar a própria zona de conforto e ainda correr o risco de acabar morrendo?! Não é tão lógico?!

A presidente do finado clube estendeu o braço, apagando uma palavra dele: “Ágil” e no lugar dela, escreveu outra.

“Porcaria!”

Suor escorreu de imediato ao notar os efeitos da nova palavra. Agora, ela sequer sabia para onde olhar ou de que forma defender, pois o termo escolhido inviabilizou qualquer esboço de plano.

— Então me diz o que acha disso… — ouviu de trás, bem perto. — Me diz como um ser humano pode ficar “invisível”!

— GUH…!

O soco no canto do rosto fez seu mundo girar; “conversar” não era mais opção e “lutar” ou “fugir” se condensaram em algo único: “sobreviver”.

A questão, no fim, era sobre como fazê-lo em tais circunstâncias.



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