Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 126: Empolgação

— Eu não suporto mais, Gordon… Não vou conseguir seguir com o caso se as coisas permanecerem assim.

Por longos doze minutos, a voz separada dele por milhares de quilômetros derramou suas frustrações incessantes e intensas, munidas de peso impossível de se carregar sozinho.

— Não dá para entender o plano daquele velho desgraçado… O que o Grazianni tá pensando?! Me colocar no caso, me dar esperança…! Só para depois passar e entregar nas mãos daquele outro maldito do Menendez?!

Na opinião dele, porém, era incrível o fato dela ter suportado por tantos dias.

— Ele tá maltratando aquela garota…! Quebrando a mente dela, enchendo de drogas pesadas…! Não tinha necessidade de nada disso! Sei disso, porque eu ia conseguir se me dessem mais chances de tentar…!

Ao se tratar de um sistema cuja corrosão do coração em nome do dever é prerrogativa quase máxima, o sofrimento daqueles que não se entregavam passava a ser garantido.

A maioria acaba se desiludindo nos primeiros dois anos de trabalho, após aprenderem que a CIA não se trata de “salvar a nação”, mas, apenas, de manter sua soberania plena.

— Nem sei mais o que pensar… Eu… tô completamente sem ideias. Pensar nisso o dia todo tem me destruído…

— Está tudo bem, querida. Fale o quanto quiser e com as palavras que quiser.

O mundo daquele casal, assim como o dos vários outros enviados em perigosas missões em torno do globo, envolvia, acima de qualquer coisa, a capacidade de sustentar mentiras.

— Recebi ordens para retornar a Washington e para valer, dessa vez. Vou ficar um pouco afastado das operações e quando acontecer, prometo que vou estar aí para conversar melhor, sobre esses e outros problemas.

No fim, a vontade dos superiores reinava suprema sobre ambos, moral e ética, e o poder exercido pela influência calava os argumentos mais sensatos.

Seriam ordenados a matar pobres crianças, caso a ordem venha na intenção de fortalecer o estado, e não fazer acarretaria em uma simples execução, mediante o tratamento de “traidor”.

— Sinto muito em precisar dizer isso, mas há um assunto importante do qual eu preciso cuidar com certa urgência. Compreendo não se tratar do que você queria ouvir de mim agora, mas…

— Não, não…! Tá tudo bem, eu entendo… Na realidade, eu também tô matando tempo do trabalho para te fazer essa ligação! Hehehehe!

— Oooh? Usando um bloqueio criptografado de sete fatores? — brincou. — Se bem que ele merecia mesmo ouvir aquele monte de insultos através do grampo!

— Hahahahaha! Ah…! É, ele merece! Enfim, chega de ficar reclamando. Vou te deixar trabalhar. Fica bem, querido. Te amo.

— Você também, meu amor. E quando puder, diz para as garotas que o papai está voltando.

— Ah, pode ter certeza que elas não vão dormir depois de saber dessa, “Sr. Pai do Ano”!

— Então não conte…! Vou fazer uma surpresa — pausou, dando uma leve bufada. — Amo você, Marylin. Fique bem.

O bobo sorriso no rosto do agente de grande porte logo se viu trocado ao guardar o telefone no bolso, quando, de repente, a bela voz de sua amada foi substituída por aquele monte de barulhos.

“É verdade. De tanto falar, quase me esqueci das minhas duas últimas ‘missões’ nessa cidade…”

O branco sem vida das paredes e luzes, somado ao som da rolagem das macas pelos enfermeiros e maqueiros criava um ambiente terrível e a sensação alienígena de se estar lá trouxe à mente um questionamento específico e nada corriqueiro:

— Como um lugar desses serve para cuidar da saúde das pessoas…? — murmurou baixo, visando não ser ouvido.

Algo tão frio e deprimente não merecia ocupar tal posição e a noção de desconforto só se amplificou ao dirigir-se pela segunda vez ao rumo do imenso elevador enferrujado.

“Me pergunto o que tá deixando ele tão preso nesta pesquisa…”

Pressionou o único botão e a caixa de aspecto ancião iniciou a descida rumo ao necrotério, quando mais detalhes fora de lugar saltaram à vista como nunca antes o fizeram.

“Por que as luzes aqui são amarelas? Não ilumina quase nada…”

O longo corredor, fétido a clorofórmio e água sanitária o conduziu à única óbvia entrada entre as macas pobremente organizadas.

— … Pryce…? — chamou, um tanto temeroso quanto ao que esperar. — É o Gordon… Agente Walker. A central me enviou para te checar e… 

As luzes azuladas e brilhantes do outro lado se encontravam acesas, porém a ausência de sinais de aproximação humana resfriou o sangue do profissional de terno.

— Pryce…! Abra essa porta! Precisamos conversar! São ordens diretas da sede central…!

Acabou falando mais alto que deveria e, por um momento, questionou se não poderia existir outra pessoa no necrotério, possibilidade felizmente desmentida pela nova ausência de movimentação.

“Eles me disseram que os relatórios ainda não tinham chegado…”

Colocou a cabeça contra a porta, em tentativa de verificar atividade do legista por trás das chapas metálicas e, a princípio, os sons produzidos pela maquinaria pesada se sobressaíram.

“... Mas ele nunca foi de se atrasar. Em todos os anos que conheço o Pryce, jamais deixou de dar ao menos alguma justificativa quanto ao… Huh?!”

O processo de habituação natural do cérebro logo o permitiu ignorar os roncos e vibrações e, no meio do trabalho dos motores, algo saltou à frente.

— … Eritrócitos próprios… Células secretoras de muco… Até queratinócitos…!

“Pryce?!”

— Incrível… Isso é incrível…! Ahahahaha! É lindo…! Lindo…!

Sem mais delongas, um único chute na porta bastou para torcer as finas chapas de aço e o permitirem irromper caminho no laboratório.

— Pryce! A base requer informações quanto aos seus atrasos na entrega dos relatórios, e…!

Pouco sabia ele, mas estar com a arma em punho se tornaria irrelevante perante a magnitude da revelação a ser descoberta.

— Pryce… — abaixou a arma quando os dedos tremeram, por puro medo de atirar acidentalmente. — O que significa… isso…?

Os olhos escuros do homem com dreadlocks apontaram fixamente à mesa de experimentos, onde uma pequena, porém notável massa de carne se movia de modo desordenado.

— Ah… Agente Walker…! Podia ter me chamado! Não precisava ter invadido desse jeito…!

A expressão empolgada do cientista propagou o congelamento dos dedos para o restante do corpo do combatente treinado. Pryce parecia alegre e, por algum motivo, isso não o cheirou bem.

— Ah…! Óbvio…! Perdoe minha indelicadeza…! — Dos ouvidos, o pesquisador tirou dois tampões e os colocou sobre a mesa. — De fato, eu não ia escutar nada…! Coloquei esses para barragem as interrupções de fora e parece que funcionaram até demais!

O excesso de humor distorcia a atmosfera dos modos mais errados e tentar relaxar mostrava pouca eficácia; ou ele descobria o que aquilo significava, ou talvez sequer dormisse à noite.

— Certo… — distanciou o dedo do gatilho, ainda tenso. — Bem, pode começar explicando o que aquilo na mesa…?

— Sem dúvida alguma, meu caro Agente Walker…!

O jeito quase saltitante lembrou o de uma criança empolgada pela descoberta de um brinquedo novo e animado, o doutor pegou a placa de petri, para mostrá-la de perto.

— Isto é algo nunca antes visto, Walker…! — anunciou, empolgado. — São células humanas com uma propriedade que pode nos salvar de muitas doenças, se descobrirmos como funcionam!

A massa de carne de diferentes cores gerava somente o nojo. Dispostas no plástico, as células em conjunto boiavam em um meio mucoso de sua própria criação, criando bolhas e sons.

De certo modo, parecia ser seu próprio tipo de ser vivo.

— Conseguem reverter ao estado de células-tronco e, com isso, se diferenciam em qualquer tecido que quiserem! Já vi se transformarem em tecido renal, hepático e até neuronal! E o melhor de tudo: não ocorre perda cromossômica ou acréscimo de senescência com o passar das gerações!

— E isso significa…?

— São células que permanecem jovens e operantes ao pico do metabolismo, independente de qual geração permaneçam! São o próximo passo da medicina regenerativa!

O menor aumento nas energias talvez o fizesse pular até a lua e até o maior dos leigos seria perfeitamente capaz de entender se tratar de uma ótima notícia.

— Câncer…! Doenças autoimunes que reduzem drasticamente a qualidade e o período de vida…! Seríamos capazes de curar efetivamente a qualquer coisa com essa inovação científica! — riu, olhando o teto. — Imagine só, Gordon! Você toma um tiro ou é esfaqueado em missão, e uma aplicação feita com suas próprias células consegue curar um ferimento potencialmente letal em questão de poucos dias…!

Os rodopios entre as plataformas e equipamentos o levaram ao canto da sala, de onde puxou um tubo de ensaio com um conteúdo conhecido.

— Tudo fruto desse sangue…! — gargalhou, quase maníaco. — Se desvendarmos os segredos desse sangue, a humanidade avançará vários novos passos de uma vez…! E, enfim…!

— E se for algo fora do nosso controle e der brutalmente errado?

A indagação paralisou o frenesi errático do homem da ciência. Num estalar de dedos, a leveza brincante do necrotério voltou ao profundo silêncio.

— Obviamente, se falarmos de ciência, todo o processo conta com seus percalços e potenciais falhas…

Mas nem isso retirou a profunda admiração pelo fluido rubro contido em vidro. Ao admirar, os olhos dele quase brilhavam, se afiando como se quisessem perfurar a barreira e nadarem no conteúdo.

— … Mas vocês nunca compartilham da empolgação de um cientista, não é mesmo? — bufou. — Sempre fazendo as perguntas importantes, enquanto descartam as possibilidades mais promissoras.

Deixou a amostra de volta no suporte, somada aos demais de sua espécie. Outra vez, a seriedade extrema o consumiu e a imediata mudança de postura promoveu a troca do tópico.

— Os relatórios estão prontos, só precisam ser complementados com as informações que eu obtiver da minha pesquisa com as células do [Ilusionista], e embora eu adoraria poder demonstrar um igual ânimo, temo dizer que não há nada de peculiar a respeito dele.

Agilizado pelos vários anos a fio no ramo, descartou as luvas e lavou as mãos, antes de acessar os arquivos em um laptop ao lado da última bancada.

— O que quer dizer com isso? O moleque consegue literalmente criar ilusões e…!

— É precisamente o que escutou, Walker — cortou, soando carrasco. — Não há uma única gota de sangue particularmente interessante em Mark Menotte, nenhuma célula ou sequência de nucleotídeos. É um adolescente humano normal, geneticamente falando.

Dados quase indescritíveis a olhos ordinários voavam a cada instante pela tela e confiar nos vários anos de profissão fez pouco para a compreensão do agente.

— Não vou duvidar do que diz, mas… e a alteração nos olhos dele?! Aquilo não é normal!

Em resposta, o pesquisador grisalho coçou a fina barba e suspirou.

— São alterações nas cadeias de feomelanina e não mais que isso — explicou, insatisfatoriamente. — É o mesmo processo ocorrido na garota, Lira Suzuki, gerado pela ativação de uma sequência de DNA fantasma existente em todos nós, desde antes de nos separarmos dos chimpanzés.

— E isso quer dizer…

— Que é estúpido focar nessa variável. Há coisas mais importantes a se avaliar agora.

A carência de detalhes e a atitude desinteressada irritaram Gordon; era como se Pryce estivesse sendo birrento, evitando oferecer os detalhes em retribuição por ter “cortado seu barato”.

Uma demonstração tão marcante de imaturidade não podia caber a um pesquisador tão renomado e vivido.

— Pessoas não têm olhos vermelhos, Pryce… Nem rosados! Sei que não tenho a propriedade de falar, mas… Não tem como isso ser uma variável estúpida…!

— Bem, boa sorte tentando descobrir o segredo, então — coçou o bigode, soando despreocupado. — Se as tecnologias de ponta não acenderam um alerta, continue confiando no seu achismo.

O modo azedo e irônico de rebater a indagação legítima evocaram certa raiva em Walker, em especial ao se considerar a próxima frase falada pelo legista.

— Enfim, não veio aqui só para atrasar minha importante pesquisa, certo? Veio pegar as coisas referentes à Agente Bauer — apontou para próximo dele. — Aí estão, do seu lado, nessa pasta de papel.

Tão logo terminou de falar, calçou duas novas luvas e pegou a “placa viva”, partindo direto para o microscópio, e como se ele não estivesse ali, sentou no banco e procedeu com a observação.

— Nem precisa se preocupar em perguntar. Todas as suas potenciais dúvidas estão compiladas aí, cada uma com sua resposta e… Incrível! Elas se diferenciaram de novo! Isso é bainha de mielina?! … Fascinante!

“Hunf…”

Cansado, Gordon pegou a pilha de papéis, notando estar mais magra do que o habitual, algo cheio de sentido, ao se analisar a mais nova obsessão do colega.

— Enfim, obrigado. Tenha uma boa pesquisa…

Hiper focado no estudo da monstruosidade, sequer se importou com a despedida.

“Algo tá muito errado…”

O compilado reservado sequer pesou nos dedos durante de volta ao espaço habitual de convivência e retornar do poço de morte e estranheza removeu boa parte da pressão no peito.

“Vou fazer um comunicado se aquilo progredir… Aquela coisa não me parece certa.”

Massas de carne não deveriam se mover sozinhas e tampouco evoluírem espontaneamente; seja qual for o projeto de Pryce, sérias consequências podem vir a nascer.

“Não temos o menor conhecimento do que é isso e ele já se empolga desse jeito… Não. É definitivamente errado.”

Sentou e ao puxar a primeira folha, pensamentos intrusivos surgiram a mil.

“Melissa…”

A missão foi um sucesso — alvo capturado, população mantida inconsciente da verdade — porém o terrível gosto da falha pessoal jamais deixaria de assombrá-lo.

O retorno para Washington viria amanhã e segundo as ordens de Grazianni, um novo agente da central seguiria com a segunda metade da operação, consistente em buscar o máximo de usuários dos tais “superpoderes”.

O foco é utilizar as informações conquistadas dos sujeitos capturados para chegar à teórica “rede de terrorismo” e apreender os integrantes. Tal missão marcava o fim da “Fase de Reconhecimento” e o início da ofensiva.

“O Menéndez vai ficar na liderança”, pensou, tentando manter-se atento à leitura dos registros.

Seria apenas o próximo passo lógico para o progresso da operação e a julgar de modo frio, as chances de sucesso seriam as maiores dos últimos cinco anos; somente boas notícias.

“O Menéndez, né…?”

O agente em questão se tratava de alguém tão capaz quanto ele, além de versado na arte da ação em campo. Nas mãos deles, a presença de grandes resultados seria questão de tempo.

“Hmmm…”

Ainda assim, seguro disso ou não, constante apreensão fervia de cada ponto na mente.



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