Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 125: Cortes da Alma, Ato 2
— Uhm… Eu estive procurando por você… Ryan.
O contato ocular calou as vozes e barulhos lá fora e no interior da barreira invisível, o tempo quase parou.
— Quando te vi no corredor, passei o dia me perguntando se foi mesmo você. Não deu para pensar em mais nada…
Azul oceânico e púrpura noturna, mistos em um composto já conhecido; os olhos dela faziam promessas grandes demais.
— Que bom que eu ‘tava certa… Que bom que é mesmo você…!
A felicidade nas finas expressões colidiu contra as barreiras internas da alma dele; ao compará-la às demais ocasiões, afirmar se tratar da mesma pessoa de agora se tornava difícil.
— Finalmente, eu consegui te encontrar…!
O sorriso satisfeito cabia nela milhares de vezes melhor que o medo ou a tensão gerados por Jacob. Ter de acabar com algo tão belo seria uma pena.
— Okay. Você me achou — citou, frio. — Ele não vai voltar, então, pode ir embora agora.
A encarada sem ânimo balançou os ânimos da garota com os cabelos tingidos. O desconforto se estampou nos lábios unidos, ignorado no próximo esforço de se fazer ouvida.
— Ah, é que… Primeiro de tudo… Eu só queria mesmo te agradecer… Sabe, você foi lá e…
— Não tem pelo que agradecer. Não foi minha intenção te salvar.
Embora tentasse esconder, qualquer um tinha como afirmar o quanto a resposta, tão seca e imediata, a abalou.
— O Jacob tá morto. É isso. Vai viver a sua vida, fazer seja lá o que tu normalmente faça. Me deixa sozinho.
Ele pegou a bandeja metálica de conteúdos revirados. Nenhuma garfada foi dada e não se incomodou com o fato, afinal, sequer sentia fome.
Com tantas facadas metafóricas o serrando por dentro, ficava impossível sentir algo mais.
— … De qualquer jeito…! — Abigail levantou, o interceptando. — Eu quero agradecer…! Eu, Abigail Halsey, quero te agradecer por ter salvo a minha vida naquele dia…! Fosse a sua intenção ou não!
O nojo advindo de olhar para aquela comida sequer beirava o desconforto de precisar ouvir as palavras dela.
— O Jacob me perseguiu por muito tempo… — começou, levando a mão ao peito. — A gente tinha um relacionamento abusivo e… eu tentei me separar dele… mas nunca dava…! Aí, ele enlouqueceu daquele jeito e…! Olha, você me salvou de um cara que com certeza ia me matar! Como eu posso não querer te agradecer direito?!
As proclamações emotivas e em alto tom atraíram uma pequena comoção crescente. Ao longe, alguns alunos e funcionários se acumulavam, curiosos pela resposta do novato.
Alguns até gravavam a cena, comparável a algo tirado de um roteiro de novela. Ali, uma belíssima garota derramava sentimentos para um rapaz desconhecido, desafiando a própria vergonha.
Entre esses, uns poucos até se perguntavam se ela não se tratava de uma atriz ou algo do tipo, de tão vívidas e luminosas que soavam as potentes palavras.
— Eu passei meses tendo medo do Jacob… Meses…! Ele me ameaçava e eu não tinha como contar para ninguém…! Ele já me forçou a fazer coisas… coisas que eu não queria…!
As cerejas no bolo — lágrimas —, escorreram abundantes dos lados da face dela. Ali, no meio de tantos, ela não tinha como se importar menos.
— Então… obrigada… Obrigada por ir lá e resolver aquela… loucura… Mesmo não sendo a sua intenção, eu… Eu não podia deixar de te agradecer… por aquilo…!
Os sentimentos precisavam sair; as ideias, os ensaios dentro da mente sobre o que dizer, a procura ávida pelas ruas de Elderlog…
— Fiquei tentando te achar por dias… Em casa, não tinha outra coisa na minha cabeça… Nem o Jacob, nem a escola… Eu só tinha que te achar e…
Ele precisava ouvir o quanto o ato heróico, no centro de tanto caos, conseguiu ser tão significativo.
— … Te dizer que você mudou a minha vida para melhor e… que foi um herói de verdade para mim naquele dia. Quer dizer, eu não ia estar viva se não fosse por aquilo e…
— Por que caralhos tá me contando isso?
O eco grave e oco resfriou os ares aquecidos pela emoção e diante de tão nociva e frígida sonoridade, qualquer reação foi prontamente arrancada de seu peito.
— … Huh…? — Confusa, Abigail paralisou no lugar. — Eh…? Eu…
— Eu não me importo — anunciou, antes de virar as costas. — Igual eu disse antes, a minha intenção em acabar com a raça do Jacob não foi te salvar, então vê se para com isso de uma vez. Tá só passando vergonha, por nós dois.
Os demais assistiram-o se desfazer do almoço por inteiro, sem poupar um fio de massa, antes de repousar a bandeja sobre a bancada erguida para recebê-las, deixando Abigail destroçada.
— Mas… Eu…! — tentou alcançá-lo, esticando a mão para chamar atenção. — … A questão disso é que…!
— É, eu entendi o que você tá dizendo, garota, e deixa eu te falar uma coisa: você não é tão especial assim quanto tá pensando. Qual foi? Veio aqui só para me contar da sua historinha de abuso com o Jacob? Expor a sua vida para geral te faz sentir melhor ou algo assim?
O eco do ódio fervoroso da platéia soava irrelevante, pois quanto mais longe ela estivesse, maiores seriam as suas chances de sobreviver. Mentiras e ofensas eram só o peso razoável a se pagar.
— A gente não vai falar sobre isso. Esquece que eu existo e vai viver a sua vida, e se quiser palco para chorar mais, procura por alguém que vá se render a te ouvir!
Ao se aproximar da parede humana formada pelos frequentadores, a salva de ofensas foi imediata.
— Seu filho da puta…!
— Como falou daquele jeito com ela, idiota?!
— Ah, vontade de quebrar esse cara na porrada lá fora…!
“Tá tudo bem”, pensou. “Contanto que sejam eles me odiando, eu vou conseguir lidar com isso.”
A platéia se abriu em desgosto, alguns tentando cuspir em seu sapato, e rodeado pela miríade de vozes indignadas, mais baixas a cada passo, sobraram ele e seus descontrolados pensamentos.
“Eu não quis isso… Eu… Eu só queria viver a minha vida… Eu…”
Os nervos à flor da pele tornam os passos pesados e o susto vindo do súbito sabor de sangue amargo em sua boca o avisou para parar de mastigar a língua.
“Mas eu tentei… Eu tentei… Eu… Eu tentei… Eu…”
Virou o primeiro corredor à esquerda, rumo aos corredores mais isolados da instituição.
“Eu tentei… e ainda assim… eu só dei um jeito de ferrar tudo… quando mais importava…!”
As cenas do massacre se fizeram vívidas e o cheiro do sangue de tantos se agarrou às narinas.
“Se eu tivesse sido mais rápido…!”
Os relatórios oficiais falavam em 87 mortes, contudo, o número bruto de corpos espatifados sem dúvidas passou da primeira centena.
“... Se eu tivesse sido um pouco mais forte…!”
Instantes de pura euforia e plenitude; de flutuar nos ares e sentir, pela primeira e única vez, o mundo como parte de seu domínio particular.
“Esses malditos sonhos… Qual o significado…?”
Uma pessoa sem face arrancou o próprio olho e o pôs em sua mão; a parede roxa no meio do céu sangrava com rachaduras densas.
“Que merda é essa?!”
Alcançou o rosto dele e puxou a carne fora da órbita; a parede quebrou e inundou o mundo branco com o puro roxo.
Poder absoluto para moldar e mudar, antes o afogando da cabeça as pés, agora em fuga, por entre os dedos desesperados, ausentes de algo a ganhar.
O assombravam ao fim de cada noite, o próximo mais críptico e sombrio em relação ao predecessor.
“E pensar que, antes dessa bagunça… Eu só queria saber…”
Passos velozes reverberaram pelo corredor à distância, depressa crescendo em proximidade, até estarem quase ao lado dele.
— … Quem caralhos eu sou.
… … …
— Abigail…! Não volta lá! Aquele cara é maluco! Ele… Ele pode tentar alguma coisa…!
— Tá tudo bem comigo… Eu vou lá sozinha.
— Sozinha?! Tá ficando maluca?! E se aquele merdinha fizer alguma coisa?!
— Eu vou sozinha — enfatizou, determinada. — Preciso resolver isso.
Abigail empurrou com sutileza o centro do peito da outra garota, antes de dar o primeiro passo corajoso ao local quase vazio.
— Por favor, vai embora — disse, séria. — É entre nós.
— Quê?! E ele?! E se ele…!
— Por favor, Carrie — enfatizou ao pisar firme no chão. — Só vai. Eu não vou mais pedir.
Os ecos — tap-tap-tap-tap — vibraram dentro de sua cabeça, deixando para trás o vácuo ao cessarem de forma tão súbita.
— … Ryan… Me desculpa… Eu entendo que você não quer conversar sobre o assunto…
Andou até ficar a quase dois metros dele. Na escuridão, a pele clara refletia a pouca luz, dando destaque ao sorriso tímido.
— Então, a gente não vai discutir aquilo… Nunca mais. E, se você quiser…!
— Isso não é brincadeira, garota! Se ficar perto de gente do meu tipo, você vai MORRER! O QUE É TÃO DIFÍCIL ASSIM DE ENTENDER?!
O sobressalto vibrou pelas paredes vizinhas. Por um segundo, o desgosto no ar quase o fez impossível de respirar.
— Você não faz ideia do que tá acontecendo agora! Não faz ideia de quanta merda o mundo tá passando… E não faz ideia do quanto lidar com isso tá sendo difícil…!
Fracos risos deixaram a boca entreaberta quando ele cobriu o olho esquerdo com a palma da mão, e ao fim dos segundos de silêncio, retornou algo quebrado; a coisa mais horrível já ouvida por ela.
— Ah, é claro… — gargalhou. — É claro que não saberia, afinal de contas, você é normal…! Os seus problemas são estúpidos, fáceis de solucionar e comuns! Nem dá para começar a explicar!
— Abigail…! — A voz no fundo do corredor se aproximou. — Não chega tão perto!
O pequeno grupinho de quatro pessoas se juntou em torno da adolescente, alguns a gravarem o absurdo estado de aparente loucura do aluno novato.
— Não sabe o sentimento de olhar no espelho e ver que foi tudo sua culpa…! Não sabe a inadequação de ver os outros sendo incríveis, enquanto você não fez nada por cinco anos…! Não sabe o que é mentir, dizendo a si mesmo que fez o seu melhor… QUANDO SÓ DEIXOU TANTA GENTE MORRER! Isso aqui tem cara de ser história de super-herói?! É algo para se sentir grato?! Hein? Me responde… Me fala…!
Bateu a cabeça na mão fechada e soltou uma baforada afiada.
— Ava importava para ela; em um mês, ia ser o aniversário dela… A mãe dela falou na TV… e eu a deixei morrer.
De cabeça baixa, deu passos em direção à multidão.
— Olivia teve fé que eu conseguiria; ela confiou em mim, sem nem me conhecer, e se usou para livrar o meu caminho até o Jacob… e eu deixei ela ir, ciente do que ia acontecer.
O grupo se partiu em dois e Abigail foi puxada para o canto, mantida quase refém pelas mãos cautelosas segurando-a pelos ombros.
— Ashley era importante para mim. Quando ninguém mais ia falar comigo, me achavam estranho ou zoado por ser um novato entrando quase no meio do ano, ela foi a única que tentou se aproximar…
As paredes internas de seu frágil julgamento começaram a ruir, e de trás, veio o mais destilado sofrimento.
— … Ela fez o melhor para tentar me incluir, para me mostrar que eu não precisava ficar sozinho… e eu… eu matei ela — estremeceu, pedaços de um riso ameaçando fugir. — Fui eu…! Eu não quis ver! Pela minha maldita garganta… ela morreu!
O humor cabisbaixo deu uma volta completa no próprio e em poucos segundos, lá estava ele, rindo como uma criança cujo pai acabou de dar um presente.
— Não é só do Jacob esse sangue nas minhas mãos e antes fosse, porque eu não me incomodei nadinha…! Se eu pudesse, esmagaria ele de novo, e outra vez, e mais uma vez…! A sensação foi incrível…! EU FIQUEI NO TOPO DO MUNDO!
Ele levantou os braços para o teto e em veloz resposta, o grupo solidificou um muro humano em torno dela, elevando e tornando física a enorme parede existente entre eles.
— Viu?! — perguntou Carrie, indignada. — Eu disse que ele era maluco…!
— Eu sujei minhas mãos…! — Eufórico, a exclamação esmiuçada se espalhou. — Sujei, para tentar limpar a sujeira que já existia nelas…! Pensei que dava para consertar e a sensação foi MARAVILHOSA!
E tal como se iluminou, num piscar de olhos voltou ao normal; o tom, antes maníaco, voltou ao grave profundo e os gestos, loucos e cheios, se contiveram entre os tecidos do casaco.
— Hunf… Para dar uma resumida nisso aqui, eu não tenho como te proteger. Eu não pude fazer isso antes e não posso fazer agora, depois de ter… quer saber? Esquece! Você não tem que saber dos detalhes.
Ele se recusava a olhar e, mesmo sem compreender, a razão de fundo para argumento se estampou clara.
— Fica longe disso. Seja o mais feliz que você pode, sem a pedra “Jacob” no teu sapato, porque amanhã… — prosseguiu, em passos lentos. — Pode acabar perdendo tudo.
O Savoia fez seu caminho para longe, desacompanhado, onde nem a profunda vontade de descobrir mais se fez capaz de vencer a enorme melancolia advinda da percepção da realidade.
— Abigail… tá tudo bem? Ele não te machucou?
A mente dela corria a mil, incapaz de compreender corretamente a magnitude das várias novidades cuspidas em tão poucos segundos.
— Abigail, fala comigo!
As vidraças quebradas… Jacob… as palavras de ordem e a súbita entrada heróica e o fragmento de combate, tão corajoso…
— Abigail…!
Ela viu tal fachada quebrar como um copo de plástico ao ser pisoteado.
— Pessoal, ela não tá bem…! A gente precisa de ajuda!