Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 124: Cortes da Alma, Ato 1

‘Cortar’.

A cenoura se dividiu e despedaçou em duas metades iguais, cortadas longitudinalmente. A ação espontânea — sem interferência direta de suas mãos — se fez imediata.

— Hmm… — observou, claramente desagradada com o resultado. — … Talvez seja porque não é específico o bastante…

A palavra antes escrita no vegetal havia desaparecido, uma vez concluída sua função. Logo, ela agilmente escolheu uma das metades e escreveu uma frase com o pequeno marcador preto.

‘Cortar em vários pequenos cubinhos’... É, isso deve funcionar!”

Os lábios da garota de olhos verdes se partiram em um sorriso largo e mais uma vez ela cavou fundo em sua cabeça, em busca da ainda tão estranha fonte do mais novo talento.

Explicar em palavras seria impossível e dar vida às mesmas vinha com um viés instintivo. Antes, ela fazia por acidente, muitas vezes de modo indesejado, mas, aos poucos, essa tendência diminuiu.

“Será que vai dar certo?!”, comemorou consigo mesma, afinal, seria a primeira vez que testaria com uma sentença completa.

Ali estava — a força na ponta do indicador —, e ela tocou e deslizou pela superfície dos caracteres grafados.

— … UCK…!

— … Emily…! — A outra presença na cozinha entrou em alerta. — Filha…! O que aconteceu?!

Alissa pegou uma cadeira e a posicionou em velocidade recorde, amparando a adolescente que mais parecia ter acabado de sofrer uma tentativa de assassinato.

— Emily…! Oh, meu Deus…! Uma toalha…! Eu… preciso de uma toalha!

O blusão, antes branco, ficou besuntado de rubro vivo, vindo na forma de um jato potente pelo nariz.

— FIlha… me diz que tá tudo bem…! Emily…!

Ela só ficou na mesma posição, observando o rolamento do marcador para debaixo da mesa, em catatonia.

“Não funcionou.”

Uma gota de sangue residual cedeu sobre o jeans dos shorts, a despertando para a realidade de barulhos, luzes e, em especial, a perfurante dor de cabeça vinda de dentro para fora.

— Urgh… —tocou o rosto. — Eu… eu acho que eu tô bem… Eu…

— Não, você não , Emily! — repreendeu a mulher, secando o vermelho do queixo dela. — Ainda tá escondendo alguma coisa? Lembra do que nós conversamos, né?

É claro. As relações entre os membros da família Attwood se alteraram consideravelmente ao passar daquele fatídico dia.

— Eu não tô escondendo nada, mãe, eu juro! — retrucou, com foco. — Eu… nem sei o que aconteceu…! Só veio e… boom! Eu não senti nada antes!

As mudanças em transparência representaram o mais significativo. Ali, entre o abraço de seus pais, citou as pragas de sua alma e os pensamentos que, por anos, assolaram sua jovem mente.

— Eu tô falando a verdade!

Porém, por mais confiáveis e amorosos que fossem os maravilhosos pais que tinha, nenhuma família tomaria com normalidade um de seus membros terem desenvolvido superpoderes.

— … Bem, se você diz, eu vou confiar na sua palavra, minha filha… Dessa vez!

Além do mais, não é como se fosse algo ruim ou torturante, como os sentimentos engarrafados e impressões erradas presas no coração; tal capacidade era incrível e não explorar seria um crime.

E parte de qualquer processo de exploração consistia em descobrir até onde se podia ir.

— Se acontecer de novo, eu te digo, mãe. Não precisa se preocupar! Já tô me sentindo novinha em folha!

Emily sorriu amplo, acalmando os nervos aflorados pelo nervosismo da mais velha.

— Bem, se você diz… — dobrou o pano tingido por quase inteiro, devagar. — Vou deixar a minha fé nisso! Mas eu sou sua mãe; não dá para não se preocupar!

— Tá bom, tá bom…! — fingiu impaciência, chutando o ar ao revirar a cara. — Mas se precisa de provas, olha só essa aqui!

Partindo de uma manifestação assombrosa de energia e vitalidade, Emily enfatizou seu brilho habitual ao girar como uma bailarina, finalizando com o gesto deliberado dramático de tocar o peito e apontar para cima.

— Viu? Eu tô com tudo em cima…! — inclinou o corpo para agradecer à “plateia”. — Obrigada…! Obrigada!

— Hahaha…! Um espetáculo e tanto! — Alissa aplaudiu. — Se é assim, não vai ter como eu refutar…! Ok, você tá livre por hoje, Emily. Vai lá para o seu quarto e… faz o que você faz lá! Só toma um banho e troca essas roupas!

Como jogadores de basquete em um jogo decisivo, Alissa passou a bola de pano para a filha.

— Qual é…! Desse jeito, parece que eu tô chefiando um grande esquema criminoso de dentro do meu quarto…!

— E não está? Até agora quero saber o que são aquelas pilhas de palavras desconexas que eu achei na sua gaveta. Me conta, é o código de vocês ou alguma coisa assim?

— Mãe…! — agarrou a maçaneta, envergonhada. — Eu já disse que eu mesma vou organizar o meu quarto…!

— Mesmo? E quando vai ser esse evento de chocar o mundo?

— … Quando eu estiver preparada de mente e coração…!

O travar da porta ecoou pelo andar de baixo, mais uma vez as dividindo e, sozinha, a mais velha das damas da casa não pôde evitar de começar a pensar demais, em busca de preencher o novo vazio.

“Emily… Por que eu ainda acho que não está sendo completamente honesta?”

A cenoura partida ao meio expunha algumas letras, impossíveis de reconhecer graças ao aspecto deformado. Começando dali, a enorme trilha de sangue formava uma linha reta na parede.

“Aquele monte de palavras sem sentido… as páginas rasgadas dos livros que você cuidava tão bem…”

Quando se viram obrigados a forçar a entrada e resgatarem sua garotinha, os dois pais preocupados não esperavam ver tamanho caos.

À princípio, chegaram à conclusão de ter sido culpa do bizarro rapaz com a prerrogativa de “visitar”, porém, bastou observar mais um pouco para a conclusão se tornar inviável.

Ele não teve o tempo, tampouco a fineza de detalhes para criar uma destruição tão calculada e assombrosamente específica.

“O que foi aquilo, Emily?”

As folhas foram divididas palavra por palavra, rasgadas manualmente.

“O que é isso, filha…?”, perguntou por dentro, fincando os dedos na cenoura.

Imaginou que a conversa franca e as lágrimas poriam um fim naquela história macabra, mas o comportamento continuou — menos agressivo, mas continuou — e ao invés de papel rasgado, passou a ser escrito.

Vez ou outra, achava termos desconexos nos cantos da casa, amassados para não chamar suspeita; até tentou juntá-los, mas não fizeram sentido algum.

Algo acontecia com sua filha e o fato de desconhecer o quê passou a assombrar os dias da mãe de família, e se ela não podia ajudar, algo — alguém — mais teria de fazê-lo.

— Emily, acabei de me lembrar de uma coisa…! Tá me escutando?!

— Tô sim…! — A voz dela se sobressaiu entre a queda d’água no chuveiro do banheiro. — Pode falar!

— É que eu me encontrei com a mãe da Isabella mais cedo! — anunciou tão alto quanto pôde. — E ela disse que as visitas no hospital vão ser liberadas a partir de amanhã!

[...]

— Oh…! Olá! Por favor, se acomode como bem quiser! 

A porta fechou com uma batida só, separando o lado de fora e o tráfego de estudantes ansiosos, do espaço que mais parecia pertencer a um estúdio de Pilates.

“Sem chance que isso aqui é para onde eu vou ter que ir duas vezes por semana se falhar…”

O cheiro de lavanda dispersado pelo infusor de incenso, os móveis e paredes excessivamente brancos e o frio absurdo eram só o começo daquela representação irônica da loucura.

“É um pesadelo.”

Estantes de livros estufadas com títulos motivacionais, cheios de cores vibrantes… uma mesa feita de vidro, cheia de docinhos e outras miudezas coloridas… 

E sem falar nos quadros abstratos, espalhados por cada canto e brecha, poluindo o horizonte visível da sala relativamente pequena. 

No geral, os fatores se combinavam em algo sem estética e até traumatizante, porém, o problema principal ficava ali, no centro do território.

— Ryan Savoia, não? Não precisa ser tímido…! Venha, tem um lugar aqui pronto para você! Vamos nos conhecer um pouquinho melhor!

Era ela, a tal psicóloga escolar.

“É o que eu tô pensando, né…?”, pensou, admirando a imagem da mulher jovem. “É definitivamente o que eu tô pensando.”

Ficar parado ali não faria bem nenhum, então, ele tratou de engolir as impressões e sentou no lugar determinado, ação essa que pareceu trazê-la alguma empolgação.

— Ótimo! Podemos começar agora! — aplaudiu ao sorrir, como se elogiando os esforços de uma criança pequena. — Eu sei que não nos conhecemos ainda, mas isso vai mudar! Por isso, tente se sentir o mais confortável quanto possível! Quer um doce?

A animação da moça em oferecer um pote cheio de jujubas serviu apenas para consolidar a noção prévia já quase garantida desde o início das aulas.

“Eu tô ferrado”, concluiu. “Da cabeça aos pés, ferrado!”

Em primeiro lugar, a semelhança com a diretora era como comparar vidro e plástico, à vista. Usava os mesmos óculos, mantinha quase o mesmo corte de cabelo… a única diferença real era a idade.

Entender isso o trouxe medo, afinal, se um esquema de família serviu para ceder o posto de trabalho, qualquer coisa deveria ser esperada do profissional em questão.

“Ela com certeza entrou aqui por causa da Thompson.”

E em segundo, a postura hiper amigável, combinada à óbvia jovialidade, denunciavam ter acabado de sair da faculdade. Ryan podia não ter certeza, mas seus olhos não a deram mais que 24 anos.

— Não precisa se segurar! Pode pegar quantas quiser — balançou o recipiente, fazendo os doces dançarem.

“... Ela não sabe o que tá fazendo…”, processou, o rosto a se distorcer em desgosto. — Ah, não… Tá tudo bem. Eu… não quero estragar o meu apetite.

O argumento foi verdadeiro, a ponto de surpreender até ele próprio.

— Ah… certo…! Entendi — colocou os doces de volta. — Mas sabe, você podia ter vindo um pouquinho mais tarde! Almoçar é importante!

“É, e eu preferia não ter que estar aqui de jeito nenhum, senhorita”, falou por dentro. — Tá tudo bem. A gente não vai precisar demorar muito com isso, né? Quer dizer… Até onde eu sei, sou perfeitamente normal.

Thompson foi bastante clara quanto à obrigatoriedade dos procedimentos e em um cenário onde a melhor — e basicamente única — escolha é ceder, Ryan concluiu que poderia entretê-la um pouco.

“Mas só enquanto eu não passar nisso… Depois, nunca vou precisar pisar aqui dentro de novo.”

Portanto, qualquer que fosse o tal teste a ser aplicado, se colocou a obrigação de passar, seja mentindo ou não.

— Hmm… Eu também gostaria de acreditar nisso, sr. Savoia, mas, o seu histórico não é muito inspirador, se me permite dizer…

O nível de animação caiu de forma gradual a cada papel retirado da pasta azul. Ao inspecionar, ele notou se tratar do histórico escolar modificado por Eastwood.

No documento, várias datas e apontamentos saltavam no campo de observações, indo desde coisas simples, como faltar aulas, até acusações graves, como assédio e violência.

“Tch…!”, estalou a língua, indignado.

De cara, ficou óbvio o rancor guardado até o túmulo, por sinal, talvez se tratando da mesma mesa que usou para eternizar tamanha calúnia.

— … Dito isso! — A súbita recuperação do humor prévio o assustou. — Eu prefiro acreditar no melhor das pessoas e na possibilidade de crescerem por dentro na presença de bom apoio! Logo, sr. Savoia, não precisa se preocupar! Estou aqui para te ajudar e nada mais! Vamos confiar um no outro, okay?

“Algum milagre, por favor, me arranque daqui de dentro…”

— Então, por que não estreitamos os laços? Tanta conversa e eu nem me apresentei! — estendeu a mão, a sorrir. — Srta. Grace Thompson! É um prazer! Pode me chamar só de Grace…! Posso te chamar só de Ryan, também?

“Eu me arrependo…”, refletiu, vazio por dentro. “De tudo… eu me arrependo.”

No tempo de meio segundo, passou pela mente do rapaz o filme de sua curta vida.

“Não imaginava que ia tudo se acumular nesse ponto…!”

Cada briga e discussão, vez em que chamou atenção ou transformou alguém na piada da escola… Esses momentos o cortaram como um relâmpago, guiados em linha reta até ali.

“Ah… caramba…!”

Quis explodir, mas ter o diagnóstico de “psicopata” ampliado por esganar a psicóloga não soou como a escolha inteligente e, em consequência, se resumiu a puxar o máximo de ar e confirmar.

— Certo… Ok, Grace. Pode ser assim.

Precisava “jogar frio” mais que nunca na vida e fingindo igual animação, costurou um sorriso decadente e aceitou o cumprimento.

— Perfeito! Com isso, a apresentação já acabou!

— Uh… como é? Não vai ser hoje? Tipo… agora?

— Ah, não! — balançou a mão. — Hoje foi só para a gente se conhecer, Ryan! Sabe… conversar um pouco, estabelecer as expectativas… Tem alguma coisa que queira me perguntar?

— … Então qual dia vai ser?

— Vai ser definido nesta semana! — bateu palmas. — Tão logo for, eu pessoalmente vou te buscar na sua sala!

“Então a sala toda vai saber disso…? Não que eu ligue, mas…”

A saliva da ansiedade desceu áspera pela garganta, pois, embora os demais saberem não seria problema em si, sua fraca reputação em Elderlog e redondezas poderia correr riscos.

“Nem duvido que comecem a espalhar rumores sobre mim por aí…”

Ninguém ali ia com a cara dele e os olhares de desgosto e crítica eram sentidos sem nem precisar olhar para trás; alguns daqueles estudantes fariam o máximo para vê-lo longe e tal abertura seria significativa.

“Hunf… Eu e meus problemas, né?”

De qualquer forma, já era hora de acabar com aquilo e no topo disso, o horário do almoço também já havia quase chegado ao fim.

— Foi uma boa conversa — mentiu. — Espero que essa situação toda se resolva da melhor forma possível. Foi um prazer, Grace.

— Ué, mas já…? Ah, o horário do almoço! — estapeou as bochechas, surpresa. — Te segurei por tempo demais! Vá, vá! E tenha uma boa tarde!

— Igualmente.

O primeiro passo fora da sala aromatizada marcou o retorno amplificado da sensação de gravidade sobre os ombros.

“Caramba…”

Inconsolado, Ryan fez o caminho até o refeitório, dando atenção quase nula à comida, antes de ceder em um dos cantos vazios do ambiente relativamente vago.

“E assim começa a minha vida como gente normal… Precisava começar tão mal assim?”

Fincou o garfo no macarrão, de alguma forma incapaz de coletar um mero fio — prospecção de seus futuros dias em Arrowbark High e, com amargor, sua vida inteira dali em diante.

“Se tiver algum ser aí, no alto, que esteja recebendo os meus pensamentos…”

Focado em excesso no próprio interior, deixou de notar o eco metálico da bandeja posta em frente à dele.

“... Me explica o que eu mereci para passar por isso.”

Sem fome, engoliu a saliva e foi quando, enfim, notou.

— Eu não me enganei… É você mesmo!

“Eh?”

Os dois travaram olhares e o tempo quase parou; ele conhecia a figura, afinal, o evento emblemático que compartilharam deixou profundas marcas.

O fragmento de segundo gasto no partir dos lábios correu quase infinito, conforme a memória dela o invadiu como um baque, ao início do sorriso.

— Tô tão feliz de ter te achado…!

Foi como levar um corte fundo na alma.



Comentários