Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 127: Palavras, Apenas
— Uhm… Bom dia…!
A tentativa de soar confiante borbulhou pelo espaço aberto e se propagou como o estouro de uma bomba, destacada pela escolha vibrante de cores tão diferentes do azulado vestido pelas enfermeiras.
— Ah, oi, menina — A atendente na recepção se alertou. — O que deseja? Fala logo.
— Eu… quero fazer uma visita…! — gaguejou, forçando uma compostura cômica. — Isabella Clarks… Eu soube que ela aceita visitas agora e…
— Quarto 193, enfermaria 17 — interrompeu a impaciente moça, um tanto carrasca. — Pode subir. Os registros liberam visitas, sim.
A sensação foi um tanto inesperada; antes, somente os livros a deixaram conhecer situações assim, mas jamais imaginou que seria tão simples e ao mesmo tempo amargo na realidade.
Personagens de livros são, quase sempre, educados e comedidos nas ações. Eles falam “bom dia”, te cumprimentam com exclamações e parecem estar a todo instante realizados com o serviço.
“... Talvez eu tenha lido demais…? Ehhh…”
Agora, plantada como uma palmeira, Emily Attwood encarava a triste realidade de se precisar respirar fora de um mundo de páginas.
— Vai continuar plantada aí, menina? Não vê que mais gente vai chegar e você vai atrapalhá-los? Não tem mais nada para te dizer.
— Ah, certo…! Certo! — Um tanto encabulada, saiu do meio da futura fila a ser formada. — Desculpas…!
Os olhares dos demais na recepção se dividiam em vários, e enquanto uns achavam graça, outros fingiam não ter visto,, embora ela pudesse jurar que faziam o mesmo.
“Ela não precisava ter sido tão grossa…!”, apertou os punhos, tentando esconder a expressão emburrada.
O elevador foi bem veloz, trazendo um bom presságio para a pequena viagem; deixar algo tão mundano arruinar o objetivo de se estar ali seria inadmissível.
“Como será que ela está…?”
Precisaria ser forte para encarar a realidade, pois, por mais controlada e até satisfeita que pudesse aparentar, a mente da adolescente de olhos verdes jamais viu dias mais difíceis.
Ontem, recebeu as mensagens finais da mãe de Ava. De acordo com a própria, a família vai se mudar de vez de Elderlog, pois ficar só traria de volta as dores a cada vez que olhassem pela janela.
“Eu… tenho que mostrar compostura… Preciso ficar feliz por ela… e não triste pelas outras…”
Amigos se apoiam em seus momentos mais difíceis e abandonar Isabella em virtude de algo passado seria o maior dos pecados.
“... Ela vai precisar de mim… e mais do que nunca.”
A caixa metálica atingiu o andar designado. Confiante, ela pisou, penetrando os corredores de puro branco, quase vazios, dada a hora da manhã.
“... E eu posso mudar ao menos isso.”
Corajosamente traçou caminho entre as fileiras de cadeiras, inabalada pelo ar gélido, desnecessário a uma cidade tão fria quanto Elderlog.
“Eu vou consertar o quanto puder, Isabella… Eu…”
Estufou o peito, puxou o máximo da bravura e entrou na sala com uma grande janela de vidro central. De imediato, os olhos focaram numa inconfundível cabeleira negra.
— Huh…? — A figura a olhou, e no curto tempo, pareceu se encher de brilho. — Emily… é você…
Emily Attwood se permitiu derramar em um turbilhão de incontroláveis emoções.
— Isabella…! — correu, indo de braços abertos ao leito único. — Isabella…!
Nenhuma combinação de palavras bastaria para descrever o quanto desejou abraçá-la, ao ponto de puxar do corpo a alma da pobre garota coberta em gesso.
— Isabella! — chorou, incontrolavelmente. — Hic! Hic!
As proteções da frágil rocha branca, em torno de cada junta, tornaram impossível corresponder ao tamanho carinho.
— Eu senti tanto a sua falta…! Fiquei tão feliz quando soube…! Hic!
Mas os empecilhos cirúrgicos pouco importam, afinal de contas, seus ossos estavam tão destruídos que não poderia mover um dedo na ausência dos mesmos.
— Eu vou te consertar, Isabella…! Eu…!
Do bolso, arrancou o marcador preto — único parceiro de descobertas nos últimos dias — e depressa procedeu a escrever uma palavra.
— Emily… O que você…
— Eu vou te salvar, Isabella! — proclamou, em alto e bom tom. — Só… olha!
As explosões de emoção contrastavam a melancolia profunda da adolescente quebrada. Paciente e um tanto curiosa, Isabella a assistiu escrever em sua pele pálida, incapaz de sentir o pincel.
— Isabella, presta atenção nisso…! — Emily começou, soando empolgada. — Eu sei que vai parecer esquisito… Eu também achava, mas…! Mas, eu acho que pode dar certo! A gente tem que tentar!
No novo mundo onde quase todas as coisas assumiram tons de cinza, ela era a única coisa cujas cores insistiam em reluzir.
— Te explico mais tarde…! Mas agora, eu preciso te salvar daí!
O ânimo, o modo como se portava diante das maiores dificuldades e o desejo de sempre progredir em função do próprio coração a soavam como a palavra gravada em sua carne:
“Perfeito.”
— Isso vai dar certo… Eu só preciso de um pouquinho de concentração… Calma, Emily… Calma… Você vai conseguir. Só precisa manter a calma…
Vê-la tentando recuperar o controle dos próprios sentimentos de modo tão teatral trouxe o mais leve riso aos lábios ressecados da jovem sem esperança, e se tivesse que embutir em uma palavra…
“Lindo…”
O contágio da animação a preenchia com o calor de um verão suave, guiado pelo suave toque dessa que admirava com cada célula de seu defeituoso ser.
“É lindo, Emily.”
A jovem em frente a ela só podia ser chamada de deusa — uma que, para sempre, adoraria —, merecedora do pico da felicidade e todas as coisas boas oferecidas pela vida.
— Um pouquinho de foco e… — Os olhos brilharam em verde, cavando o mais fundo no grande poço de si. — Huh…?
E como tal, precisar ver, em primeira mão, a dor a pintar o cenho de quem tanto apreciava significava levar milhares de flechadas no peito.
— … Por quê…? — As mesmas esmeraldas, cheias de empolgação, voltaram-se ao desespero. — Nada… Não aconteceu… nada…
Isabella se recusaria a viver em um mundo onde Emily não pudesse ser feliz.
— Eu… Eu tentei…! Era só… Era só uma palavra…! Por que não funcionou?!
— Emily.
O som do chamado irrompeu entre a confusão de cores, formas e barulhos na mente da presidente do clube de literatura. Do leito, sua melhor amiga sorriu de canto, fazendo um único pedido.
E o tempo entre os movimentos da boca e a produção dos fonemas se esticou ao quase infinito.
— Me mate.
Seu único e mais legítimo pedido, algo tão detestável e egoísta.
— Eh…? — A amiga a encarou, incrédula. — Isabella…
— Não, Emily. Você não ouviu errado — repetiu, suave. — Eu quero morrer. Por favor, me mate. Se for para te ver triste assim, eu prefiro…
— NÃO ME DIZ ISSO…!
As ondas de teimosia manifestaram-se na forma de um brilho ainda mais forte. Agora, Emily mais lembrava uma jóia rara, cintilante sob o sol.
— EU VOU TE CONSERTAR! E A GENTE VAI CONTINUAR SENDO AMIGAS!
Lágrimas caíam sobre o gesso e novas palavras brotavam ao longo do seu braço — “consertar”, “remendar”, “refazer”, “reparar” — e, tão diligente, repetia o processo com cada uma.
O dedo indicador, trêmulo, corria pela escrita, fazendo-a sumir na pele, absorvida. No mundo concreto, todavia, efeito nenhum se dava.
— Eu… Eu não entendo…! Era…! Era para funcionar…! Eu…!
— Emily…
— Eu preciso tentar…! Outra palavra… Outra palavra…! Qualquer uma…
— Emily, tem uma coisa que eu preciso te contar.
— Não…! — negou veementemente com a cabeça, chorosa. — Não vai me pedir para te matar, Isabella…! Sem chance!
— Os doutores disseram que as minhas articulações nunca vão voltar ao normal, Emily. Eu nunca…
— PARA! — gritou. — SÓ PARA DE FALAR!
— … nunca vou andar ou me mexer de novo… — ignorou. — Inclusive, eles estão discutindo me submeter a um processo experimental de morte assistida e…
— CALA A BOCA!
— Eu não quero mentir para você, Emily. Não tenho muito tempo, e antes que eu me vá…
— ISABELLA…! — bradou, furiosa. — PARA COM ISSO! EU VOU TE SALVAR!
A Attwood caiu de joelhos, inconsolável. À porta, algumas enfermeiras pararam para checar, somente para irem embora à compreensão da situação, sem repreensão ou sequer um alerta.
Profissionais ou não, impedir alguém de se despedir seria um gesto de pura maldade.
“... Por quê…?”
As gotas salgadas desciam como riachos, manchando o chão limpo com as dores dela.
“Por que não tá funcionando…?”
Cresceu com a noção de que “palavras têm poder” e, nos últimos dias, o mero ditado se converteu na maior das verdades.
“... Então… Então…!”
Palavras resumem qualquer coisa, podem fazer rir, chorar, se emocionar e instigar. São as representações das realidades tão mirabolantes, frutos da criatividade.
“... Por que não dá…?!”
Serviram de blocos, pontes e escadas, para o que estava e não estava. Nos belos mundos, formavam base e estrutura; ramos infinitos se esticando para preencher o branco do papel.
— … Por que agora…? Por que me deixaram agora…?
Por anos, coloriram seus sonhos, pavimentaram caminhos, promoveram oportunidades e foram, dentre cada fruto da realidade, as frações mais leais.
— … Quando eu mais preciso… — murmurou, quebrada. — Quando é mais importante…
Teria sido o trajeto até ali um lance de pura sorte? Coincidências agrupadas de modo aleatório, para só dar o aspecto exterior de a terem favorecido? Não, porque palavras são forças imparciais.
— Emily, ficar do seu lado foi a coisa mais importante da minha vida.
Elas não escolhem lados, nem beneficiam um ou outro, estampando as leis da natureza sem qualquer desejo de determinar seus cursos.
— Criar o clube de literatura, conhecer as garotas… Foi o grande evento da minha vida, aquele que vai ficar comigo até o último dos meus dias.
São meros componentes estruturais, sem magia ou simbolismos profundos. Uma palavra é apenas si mesma, uma marca de tinta no papel, um grupo de caracteres de um texto digitado…
— E eu queria que você soubesse de mais uma coisa, antes de eu precisar partir de vez. É algo que eu já venho querendo te dizer há muito tempo, mas nunca tive a coragem de contar diretamente.
Fitar o monte de fios e sondas emaranhadas a deixava tonta, e as náuseas de ouvir o “bip-bip” do maquinário queimavam e dilaceraram sua alma.
— Então… você vai me ouvir, Emily?
Palavras nunca antes foram tão irrelevantes. Seja lá o que fosse, não teria um fragmento de sua atenção, fosse um pedido de morte, uma última solicitação, ou até…
— Eu te amo, Emily. Eu sempre te amei…
Mais e mais palavras.
— Não como uma amiga, não como a vice-presidente… Eu te amo, Emily… de verdade, eu te amo.
Eram só mais palavras.
— Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo — repetiu, enfática. — Te amo, Emily… Te amo tanto que é como se o meu coração fosse explodir.
Os barulhos das rodinhas nos corredores pareceram parar e um novo universo tomou espaço entre as duas presenças, isolando-as do resto.
— Eu amo demais — continuou, sorrindo. — Amo o seu jeito, o seu cabelo, os seus olhos, a sua voz… Amo o jeito como você fala, como me chama, como me trata como alguém tão importante… Eu amo… e isso dói.
A mão direita estremeceu em leves espasmos, e senão pelo cotovelo reduzido a farinha, tocaria o centro do próprio peito.
— Amo a sua personalidade vibrante, amo sua energia, amo a empolgação com qualquer pequeno assunto, amo o profundo cuidado que você tem com tudo… Eu te amo, e esse sentimento aperta a minha garganta… de um jeito que nem dá para descrever.
A menina de longos fios escuros tentou se mover, sem o menor sucesso e inquieta, deixou tremer a língua a queimar de tanta raiva.
— Eu sempre te amei…! — riu, errática. — … Durante todo aquele tempo… todos aqueles meses…! Eu. Te. Amei, Emily Attwood…! Todos aqueles anos… E VOCÊ NUNCA OLHOU PARA MIM DO JEITO QUE EU TANTO QUIS…!
Os poucos segundos fizeram ceder desgosto sobre a moça aparentemente tão tranquila e o veneno a vazar entre as declarações profundas passou a jorrar incontrolável.
— Isabella…
A receptora de tamanhas declarações sequer soube como reagir quando o pronunciamento evoluiu à mais decadente manifestação da face mais oculta de sua melhor amiga.
— Não, agora você vai me escutar…! — cortou, rindo de forma quase incontrolável. — Vai ouvir tudo o que eu tenho para te dizer, minha Emily…! Vai saber o quanto eu te amo e o quanto eu detesto quando você olha para mim desse jeito…!