Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 121: Imprudência

— Fim da aula. Estão liberados.

O sino tocou, animando os espíritos da sala entediada, os fazendo sumir em um frenesi veloz pelos corredores, guiados pelo único e supremo desejo de cair fora e curtir uma hora de parada.

Para o primeiro dia como um estudante desconhecido, a experiência podia ter sido pior.

“Eu? Pensando assim? Agora é saber quanto tempo vai durar. Vai piorar, eu sei.”

Depois de só sobrar ele e o professor na grande sala vazia, o rapaz forçou a se despertar, arrumando pobremente os livros debaixo da cadeira.

“Esse clima me dá sono.”

Deu o primeiro passo rumo ao lado de fora e o já antecipado aconteceu. Ciente que não iriam deixá-lo passar em branco com tanta facilidade, parou ao eco da rouca voz do professor. 

— Já sente que vai conseguir se adaptar, sr. Savoia?

A obrigatoriedade de decorar nomes só servia em ser um porre, então guardou a característica mais proeminente do homem já corroído pelo tempo: seu excessivamente bem-cuidado bigode branco.

— Sem reclamações até agora, senhor — piscou, dando as costas para o docente.

O silêncio tomou ares pesados e em poucos segundos, o barulho da tosse forçada se propagou grosseiro pelo meio parado.

— Bem…! Espero pelo melhor aqui na Arrowbark! Imagino que o incidente tenha sido bastante traumático, então, se precisar de qualquer coisa…

“Hunf… Eu entendo que ele tá tentando ser empático e tudo mais, é só que…”

O excesso de atenção recebido no prazo de poucas horas transbordava qualquer outra situação vivida antes pelo adolescente.

— … Se estiver se sentindo excluído ou para trás na turma, nós não hesitaremos em apoiá-lo, sr. Savoia! — falou animado, como se pronto para assumir o maior compromisso da humanidade.

“... Eles estão querendo saber demais.”

Por mais bem escondidas que fossem as bandagens, os pequenos cortes cicatrizados no rosto e o invólucro branco em torno da mão esquerda atraíam os olhares curiosos dos demais.

Por baixo, ficavam se perguntando coisas variadas sobre o incidente e, o pior de tudo, demonstrando pena não-solicitada pelo recém-chegado.

“Ugh…”

De certo modo, escutar os tais comentários se assemelhava ao menosprezo, e por mais que tentasse ignorar, evitar ouvir os cochichos de poucos metros para cada lado virava tarefa impossível.

— Quero que não se acanhe em nos comunicar qualquer coisa. Sabemos os detalhes do que houve e…

— Tudo bem, tudo bem — interrompeu, encarando-o com firmeza. — Agradeço o apoio, senhor…

— Wattson. Me chamo Wattson.

— … Senhor Wattson — completou. — Se alguma coisa aparecer, eu te comunico. De novo, agradeço.

Sem mais palavras, Ryan saiu pela porta da frente, levando consigo somente o celular e alguns poucos dólares no bolso.

“Falando nisso, eu tenho que olhar qual é a do dinheiro que a Hannah deixou na gaveta… Tomara que não esteja entre a roupa íntima dela… Huh, coisa idiota de pensar.”

Soou cinquenta vezes mais engraçado antes de vir ao mundo, até notar que estando lá ou não, seria irrelevante; ler tantas memórias alheias formou uma blindagem natural contra tais detalhes.

— Como será que ela tá?

Encostou na parede e selecionou o contato no celular novo — substituto da agora parte da pilha de cinzas —, sendo o único adicionado, para além dos números de emergência.

— E aqueles dois? Me pergunto o que estão bolando…

A tentativa de chamada se prolongou por longos dez segundos, durante os quais, alguns dos alunos de passagem o deram migalhas de atenção, mudando de tópico para falar sobre o banho de sangue.

Do outro lado da linha — o único relevante de verdade para ele —, sem resposta.

“Até imaginei”, guardou o dispositivo de volta no bolso do casaco, um pouco frustrado.

Desceu para o térreo e no caminho, pensamentos quanto ao par “desaparecido” iam e vinham.

“O que rolou com eles? Quer dizer… nenhum dos dois apareceu entre a lista dos mortos, mas…”

No fundo, ele sabia haver algo de errado no modo como as coisas passaram a se encaixar, pós-tragédia.

Foi um baque saber da morte de Olivia, quem tanto se esforçou para fazer escapar viva. De acordo com as reportagens, a garota foi encontrada na ambulância e, aparentemente, tomou a própria vida.

“Foi um deles. Ainda tem gente como o Jacob solta por aí… gente que nós não enfrentamos.”

As digitais presentes no pescoço marcavam o mesmo padrão da mão esquerda da menina, indicando a impossível hipótese de auto-asfixia por estrangulamento.

“E podem estar em qualquer lugar… quantos ou quem são, é o mistério.”

Os últimos dias o ensinaram que se preocupar em excesso deixou de ser coisa de gente emotiva e virou obrigação. 

Sem poderes, as possibilidades de ação caíram e a chance de morte iminente alcançou o maior ponto desde o segundo quando pisou no chão pela primeira vez.

“Algum deles já devia ter tentado entrar em contato.”

Ele até se esforçou e tentou lembrar de cabeça algum dos números dos dois, mas os resultados sempre incorretos o direcionaram a becos-sem-saída e, ocasionalmente, linhas erradas.

“Os dois são fortes; mais fortes do que eu nunca fui enquanto ainda tinha os meus poderes…”

O ritmo acelerado da descida o fez dar de cara com o salão aberto, pouco menor em relação ao presente na Elderlog High.

“Mas, em comparação, a inteligência monstruosa que dizem ter só existe da boca para fora.”

Consumido por resíduos da ansiedade vivida naqueles minutos de aparência infinita, o Savoia tomou os múltiplos detalhes do grande amontoado de mesas e cadeiras do espaço para alimentação.

Ele podia ver, pelos cantos, paredes e tetos, as várias manchas sangrentas da grande pilha de cadáveres que impossibilitava a visão do chão.

“Sabendo quem são, já teriam encontrado um jeito de me perturbar há um bom tempo, e para o Mark ainda não ter jogado uma pedra com papel enrolado pela minha janela…”

O discurso ofertado pela realidade deixava espaço aberto a múltiplas interpretações.

— … Ei, ‘cê viu aqueles caras parados na frente da nossa escola? Devem ser do FBI ou coisa assim, né?

— Que bom! Pelo menos eles vão caçar o pessoal por trás daquela bagunça na Elderlog! Morro de medo de algo daquele tipo acontecer por aqui!

— Nem me fala! Já me arrepio toda só de precisar pensar!

“Autoridades… A gente chamou muita atenção para a cidade. Agora não dá para fazer praticamente nada sem chamar atenção de um batalhão inteiro.”

As novas novas “Medidas Emergenciais para Combate e Supressão ao Terrorismo”, lançadas no último fim de semana, detalhavam um agressivo processo investigativo, visando capturar os transgressores responsáveis pelas várias perdas.

Entre os pontos aprovados, estaria o reforço do Departamento de Polícia local com mais de mil agentes treinados em abordagem tática e cercos militares.

“... Merda… Será possível que eles se deixariam ser levados?! Droga, eu não tenho o endereço de ninguém! Não dá nem para tirar a prova…”

A caminhada lenta tomou o rumo oposto da grande fila em frente aos refratários de comida, o conduzindo para fora, onde o céu brilhava azul, mesmo estando tão frio.

“Vou buscar saber deles… O quanto antes.”

Correu um pouco e pulou o primeiro degrau da arquibancada, dando vaga atenção ao movimento dos outros caras, passando a bola de basquete de um lado para o outro.

— Se der certo da gente se reencontrar… Eu digo o quê? Duvido eles engolirem essa história de “perder os poderes” de primeira e a Lira vai fazer meu coração de pudim na primeira negação.

Um cara muito alto acabou de marcar três pontos e assistiu o deu uma ideia.

— Huuh… Será que eu me daria bem num esporte?

Já se preparava para negar em voz alta e justificar como um simples pensamento tolo, mas foi impedido pelos barulhos de passos somados ao bradar estridente ali próximos.

— Ali ele! Eu sabia que não tinha sido só outro cara aleatório! Conheço a cara desse aí até cego!

“Beleza, talvez não seja comigo. Vamos só ignorar e…”

— Ei! É contigo mesmo que eu tô falando, olho roxo! Não vira a cara para mim, não!

“Puta que pariu…”

Subiu na arquibancada uma trupe mediana, aos menos em dez, segundo o desinteressado Savoia. 

“O que raios será que eles querem?”, perguntou, murchando de imediato com a continuidade do avanço. “Se for para encher minha paciência…”

Juntos, o ritmo ditado pelo líder seguia quase unânime, como um grupo de caçadores preparados para outro dia no mato.

“Espera aí… Eu conheço aquele cara.”

Qualquer pessoa precisaria de muito pouca capacidade cerebral para compreender o contexto; baderneiros, prontos para trazer emoção desnecessária ao dia cheio de marasmo em Arrowbark.

— É ele mesmo! Sem confusão.

Sete caras estúpidos cheios de confiança e umas três garotas, arrastadas com a promessa de serem “impressionadas” — eis o fruto da afiada análise.

— Hmm? — Ryan se manteve calmo, e ao levantar a sobrancelha, perguntou o básico. — Querem o quê comigo?

O grupo ficou de canto enquanto o líder chegava mais perto. De longe, as conversas em forma de cochicho soavam claras e abordavam um tópico singular a seu respeito.

— Os olhos dele são diferentes mesmo!

— Será que eles brilham, que nem o Vincent falou?

— Eu não botei fé, mas quem sabe seja verdade?

“Huh… entendi. Então é por isso que essa galerinha tá aqui.”

O desejo de entretê-los faltava tanto quanto a capacidade para tal e mesmo que pudesse chamar por seus poderes, alimentar rumores só faria pior por sua frágil reputação.

“Além do mais, chamar atenção é implorar por problemas.”

O mal nessa decisão, porém, começava quando os outros não compartilhavam da mesma visão.

— Savoia…! Já faz um tempo que a gente não se vê! — gargalhou, malevolente. — Fiquem de olho, galera. Ele vai mostrar já!

Exagerado, amassou o ar entre as mãos, socando uma na outra. Bastou esse gesto para lembrá-lo o bastante.

— Ah! Espera, eu acho que te conheço sim… Era o Videl… Vance… Uh…

— É Vincent, arrombado — rosnou. — E daqui tu não sai. Vou te amassar hoje, filho da puta.

Ryan permaneceu parado e afirmar estar impressionado seria mentir muito.

— Vincent…! Lembrei! Charles Vincent! O mesmo teve um surto de amnésia na frente da escola toda e ainda por cima teve um surto de ansiedade? Como esquecer…!

As garotas do grupo riram, frustrando o valentão que, depressa, mirou um soco no queixo do novato.

— Tu não vai querer fazer isso, Vincent.

Segurou o soco no ar. Alerta, Ryan encarou além do ombro do mais alto, sinalizando algo com a cabeça.

— Fica esperto. Tem uma galera do corpo docente de olho ali.

— E o que eu tenho haver com isso?! — socou pela segunda vez, dessa vez acertando em cheio na bochecha. — Heh! Vale de nada e quer se achar para cima de mim!

O olhar recebido de volta conteve nada além da mais pura indiferença.

— … Já se divertiu? Veio aqui, deu um murro na minha cara, falou besteira para caramba e tá se arriscando a tomar mais uma suspensão…

Ryan nem ao menos tremeu ao receber o golpe e a postura relaxada carregava a máxima intenção de ser irritante, como se o comparasse a um mero mosquito ao picar.

— Vem cá, não foi só para isso que tu veio aqui não, né? Desembucha. Qual foi a mentira que tu contou para essa trupe toda?

— Tch…! 

A reação fria abalou o mais alto, reação essa escondida nos limites do impossível, para não abalar o frágil respeito conquistado com a história que criou.

— Tá com medinho…! — riu, apontando. — Admite, vai, Savoia…! Tá com medo de apanhar, por isso não quer sair na mão aqui, agora!

— Hunf… — bufou, em resposta. — É claro que eu não vou sair na mão contigo, Vincent…

A situação tinha de progredir e por mais que quisesse, enfiar a mão na cara do maior incômodo desde o fogo na biblioteca não contava como uma boa ideia na lista de “planos brilhantes”.

“Ou eu faço ele desistir, ou quem sabe o que vai rolar daqui a pouco…!”

As primeiras impressões deixadas pela diretora o disseram o bastante: caso fosse pego em outra confusão, as chances de sofrer punições grandes eram praticamente garantidas.

Logo, entre evocar mais a raiva de seu mais novo inimigo e sair com a semi-inexistente reputação cheia de cicatrizes, soube de imediato qual escolher.

— Não — citou, sem emoção. — Eu não vou brigar contigo. Desiste dessa ideia… e eu tô falando com vocês que vieram junto também.

— Uuuh! Que medinho! — satirizou, balançando os braços. — Tu só sabe latir, Savoia! Qual foi? Tem medo de chegar na Diretoria?! Cai para cima! Responde se tu for macho!

A nada impressionante demonstração de estupidez o levou a puxar tanto ar quanto possível, de uma vez só.

— Olha, cara… — parou e suspirou, exausto por dentro. — Faz o que tu quiser aí, espalha a história mais maluca do mundo sobre mim ou sei lá…! 

O menino de olhos violeta ficou de pé, acabando por se tornar “mais alto” graças à vantagem do degrau. De cima, ele travou visão com Vincent, neutro a ponto de parecer desinteressado.

— Faz aí o que tiver que fazer, mas desiste. Não tô afim de cometer o meu primeiro crime inafiançável hoje… Não contigo de vítima, entre todas as pessoas!

A declaração fez a plateia se somar em um grande “ooh!”, e os ânimos aquecidos acompanharam as lentes a gravar, ansiosas para captar o primeiro soco.

— Então, partiu! A gente pode se falar melhor depois — acenou, dando as costas para o assediador.

— Ah, não vai ficar por isso não…!

Visando aproveitar o instante de profundo descuido, Vincent tentou agarrá-lo ao dar uma investida.

— Eu disse…

“Huh…?!” Surpreso ao segurar somente o ar, sentiu cada fração de sua consciência se ampliar.

— … a gente pode se falar melhor depois — escutou, vindo de longe.

Ninguém disse uma palavra ao vê-lo descer com um salto perfeito e pousar sem barulho na quadra.

— E deixa eu te dizer mais uma coisa… Vê se não vai ficar comprando problema assim à toa.

Lá embaixo, estalou joelhos e tornozelos, responsáveis por absorver o impacto. Para o observador externo, aquela foi a aterrissagem esperada de um atleta olímpico.

— Não se sabe o naipe de quem tá atrás de justificativa para explodir a tua cabeça ou quem sabe, coisa pior…

Mas, por dentro, Ryan se via preso entre estar agradecido e assombrado; sem a [Memória Muscular], copiar de improviso um dos saltos de Mark o aproximou de um terrível acidente.

“Eu não sou o mesmo de antes. Não dá para ficar caçando confusão desnecessária…”

Na caminhada rumo a fila do almoço, os tremores nas pernas lançavam armadilhas, dando o máximo para fazê-lo perder o equilíbrio.

“Fui imprudente… Por pouco, podia ter sido muito pior…”

Espremeu os cinco dólares na destra, em tentativa de acalmar a ansiedade, mas passada a situação, nem a torta de frango e seu maravilhoso cheiro despertavam fome.

“Droga…”



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