Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 120: Sozinho

Surpreendido pelo extremo silêncio na casa, Ryan abriu a porta da cozinha e espiou dentro, até enfim notar algo de diferente na casa, de repente, tão grande e escura.

— Hmm… Vamos ver o que é isso aqui…

Uma folha de caderno, presa pelo peso da xícara, esvoaçava um pouco com o vento proveniente da janela de portinholas abertas, ansiosamente removida pelo humor já não muito agradável do rapaz.

— Ué, mas ?! — saltou, só por dentro, ao ler a escrita de poucas linhas. — … Ela bem que podia ter me dito ontem que já ia sair, pelo menos…

A mensagem, de letras bonitas e repleta de desenhos à mão de flores e carinhas felizes, afirmava o seguinte:

“Oi, maninho! Tô deixando isso aqui para dizer que eu já fui. Aconteceram coisas aqui e a nossa mãe me mandou ir mais cedo; nem deu tempo de pegar muita coisa! Ficou uma grana na última gaveta da cômoda do meu quarto, então vai lá e pega! Me desculpa pelo aviso súbito, mas é urgente mesmo!”

Ao concluir o fragmento, amassou a folha involuntariamente, sentindo a própria expressão um tanto amarga.

— Joanne… — bufou, decepcionado. — Você não pode mesmo cuidar de uma casa sozinha, né…?

Durante os cinco anos de viagens incessantes pela extensão completa do território americano, pôde contar nos dedos de uma mão só o número de vezes onde presenciou algum semblante de responsabilidade naquela mulher.

“Um dia ela foi inventar de cozinhar e quase queimou o apartamento inteiro… Ok, talvez não seja novidade.”

Ela varreu o chão não mais que duas vezes e Hannah precisou seguí-la com o aspirador, garantindo que não deixasse a poeira para trás. Haviam roupas por todos os cantos e a podridão era de se envergonhar.

Se visitas da vizinhança surgissem à porta — algo felizmente raro demais para ser preocupação — fingir não ter ninguém dentro virava protocolo padrão.

— Eh… O negócio deve ser sério… — ponderou. — Sem problemas. Vai dar para cuidar da casa.

A parte preocupante de verdade vinha no segundo parágrafo da pequena carta.

“Junto do dinheiro, tem a sua documentação da escola e nada de sair tarde! Se perder o ônibus das 7:00, o próximo só passa depois de uma hora e meia! Pega a pasta que tem lá e entrega ao pessoal da diretoria, igual a gente sempre faz.”

— Ah, qual é…! — estapeou o próprio rosto. — Estudar até o começo de Julho…? Ter só ido direto e voltado no próximo semestre seria melhor! Bastava pegar o conteúdo de alguém e…

A realidade se fez mais viva dentro do segundo dilatado ao quase infinito, quando ele se lembrou.

— Ah, é… Eu não tenho mais os meus poderes…

Ryan teve quase uma semana inteira para processar a ideia, mas não importava quantas vezes tentasse lembrar e se habituar, seu novo contexto recusava se instalar por completo.

— Hunf…

Sequer leu o restante da nota, amassando o papel na forma de uma bolinha, atirada no lixo antes de se sentar na mesa e deixar o rosto cair.

“... Será que vai ficar tudo bem?”

Os últimos dias trouxeram profunda paz à pequena cidade. 

Com tantos policiais e investigadores nas ruas, a captura do tal “sujeito perigoso” e a generalizada ausência de atividade criminosa reportada, os residentes respiravam aliviados.

O verão, mais próximo, trouxe vida e os tons de azul dos quais o local tanto necessitava, e embora tantas pessoas tenham saído e vendido suas casas, o influxo de novos residentes não cessou.

É como se o espaço esquecido ganhasse, enfim, as coisas das quais sempre careceu.

“Hah… É óbvio que não vai”, riu, em ironia. “Nem de longe vai ficar tudo bem.”

Elementos novos podiam se esforçar para ocultar ou maquiar as cicatrizes do passado recente, mas pouco podiam fazer quando a causa permanecia ativa e à solta, aguardando a oportunidade.

“Tem coisa demais para ser resolvida.”

Autoridades comuns, por mais atenciosas e capazes, somente poderiam atacar a superfície dos incontáveis problemas vividos pelas pessoas de Elderlog e saber disso se provava esmagador.

À princípio, elevariam a moral do povo e os conduziram a crer na melhora, até o segundo do maior golpe já sofrido. Inevitavelmente, a lei falhará e o impacto será inigualável.

“... Isso, se ninguém fazer alguma coisa… Mas o que eles vão fazer?”

Nomes e imagens cortaram a cabeça do Savoia, arrastando vozes e situações, desejos e promessas.

“Mark… Lira… Steve… e Emily… O que vocês vão fazer?”

E, mais importante…

“O que eu vou fazer a partir de agora…?”

O Savoia não guardava dúvidas quanto ao caráter e, tampouco, às capacidades de cada um e tendo ouvido o que pensam, a garantir de alguém protegendo a cidade ficava de pé.

“... Então, por que entregar isso nas mãos deles não me deixa mais confortável…?”

Ergueu o rosto, massageando a testa “amassada” pelo vidro. De olho na janela, focou no espaço das portinholas, por onde raios de sol penetravam no ambiente.

— … Por que não foi simples assim comigo — falou alto, sozinho. — Qualquer coisa pode rolar.

Agir ou pensar esperançosamente não compunham parte em sua lista interna e, pela primeira vez, houve medo real ao cogitar das possibilidades.

— Emily… — tremeu, por pouco deixando de quebrar outro copo. — Vai tentar voltar para lá de novo, né…?

A ausência de som ambiente adquiriu um caráter opressor súbito e nauseante; sem aves ou carros, o barulho dos próprios batimentos cardíacos acelerados saltou adiante.

Preciso fazer algo a respeito…”

Frio gelou a espinha e o cômodo adquiriu a aparência de um local mais escuro, dando luz à enervante impressão de ter ficado muito maior.

“Eu tenho que dar um fim naquela casa…”

Preso em tantos outros problemas, se permitiu esquecer do mais marcante deles. A [Escuridão] presente nas ruínas faria mais vítimas e adiar as contramedidas renderia a liberdade para tal.

“Mas… como…? Como eu vou destruir uma casa, ainda mais sem poderes…?”

E a julgar a queda de uma gota d’água como a mais terrível ameaça, o coração do adolescente quase saiu pela boca quando o único “ding!” do microondas soou alto.

Ahhh…! — Assombrado, quase caiu de rosto na torneira. — Ah… era só o microondas…

A coisa pertencia a um modelo novo, cujo relógio interno alarmava a cada meia-hora — uma utilidade de caráter obscuro e resultados práticos um tanto inúteis, mas que no fim, serviu de algo.

— Espera aí… O ônibus passa às 7:00 AM e… — Ao se reequilibrar, viveu o puro desespero se instalar no fundo do peito. — Droga…!

Abandonou a cozinha tão velozmente quanto suas pernas aguentaram, ganhando o novo universo da enorme casa vazia, conforme os segundos lhe escorriam pelas mãos.

— Já são 6:30…! Eu vou me atrasar…!

[...]

— O seu processo de matrícula na nossa instituição está concluído, senhor Savoia. Aqui, pegue as cópias desses documentos e passe na biblioteca.

Logo quando os vários papéis ficaram a um dedo de distância, a diretora, de jeito súbito e avulso, os puxou de volta.

— Mas antes, preciso te entregar mais uma coisa. — A mulher de meia-idade encarou o rapaz nos olhos. — Você vai ser avaliado pela psicóloga da escola, senhor Savoia. Esteja lá no horário do almoço de amanhã.

Junto ao restante da papelada, incluiu mais um papel — uma guia, com orientações para a tal consulta — e assim que tocou a papelada, questionou em alto e bom tom.

— O que isso quer dizer?

A pergunta séria ecoou pelo escritório desprovido de demais pessoas, interceptada afiadamente pela diretora da Arrowbark High.

— Deixe-me explicar com quantas letras precisar, senhor Savoia…

Imponente, arrumou os óculos quadrados no rosto enrugado, a destacar os olhos castanhos, perfurantes.

— Como deve saber, o histórico escolar é uma ferramenta de caráter único. Ela categoriza os estudantes, de forma que cada ação ou transgressão fiquem eternamente marcados. Uma vez colocado no histórico, um evento no qual teve parte jamais será esquecido.

Cheia de maneirismos, levou as unhas vermelhas aos fios negros, presos no rabo-de-cavalo e o batom rosa a pintar os lábios brilhou, criando o contraste nauseante chamado: “Sra. Thompson”.

— Com base nisso, temos aqui que sua história, em especial na finada Elderlog High, não foi das melhores, senhor Savoia.

“Hein…?”, se contorceu por dentro. “Não entendi…”

As novidades o faziam pensar que o dia não podia piorar; Hannah saiu sem avisar e agora vai ficar sozinho em casa por semanas, quase perdeu o ônibus e por causa dele, não pôde tomar café direito…

“E depois ainda me vem com essa…? Caramba, meu dia tá horrível…!”

Deixar como está ficou fora de cogitação e ele não se sujeitaria a sofrer com algo tão injusto e arbitrário, logo, tomou a coragem restante em cada fibra do corpo e se opôs com firmeza.

— Com licença, mas eu já estive em várias outras escolas e isso nunca foi necessário! — mostrou os dentes. — Na ficha tem que eu sou perfeitamente saudável!

Em face da reação explosiva, a profissional se manteve impassível, levantando a sobrancelha ao entender o fim da afirmação.

— Sendo esse o caso, presumo que as demais instituições que frequentou foram lenientes com seu mau comportamento, senhor Savoia. Felizmente, não foi o caso dessa vez.

— Como assim?! — Mais emburrado, trancou a mandíbula ao assistí-la apontar algo no histórico escolar. 

— Aqui — apontou. — Tive a oportunidade de conhecer o Eastwood e se existe uma verdade clara sobre ele, é que jamais deixaria alunos problemáticos escaparem sem consequências.

O cenho do Savoia se contorceu, em um misto bizarro de raiva, agonia e algumas pitadas de desespero, o forçando a confiar nos últimos pedaços de autocontrole para evitar quebrar a mesa.

— Aquele velho calvo maldito… — suspirou baixo, quase inaudível.

— Disse algo, senhor Savoia? — Thompson perguntou de modo sugestivo. — Se houverem problemas com isso, eu posso citar alguns dos itens relatados por ele.

“Filho da mãe… Nem depois de morto…!”, gritou por dentro. “Ah, desgraçado…!”

O Diretor Eastwood compunha parte das várias fatalidades dadas em Elderlog High. O corpo do homem foi encontrado tomado por insetos e a causa precisa da morte se mantinha indeterminada.

E por mais terrível que fosse a notícia, Ryan jamais imaginou que o homem de meia-idade e atitude cansada chegaria ao ponto de ferrá-lo propositalmente com tamanha vivacidade.

“‘Indicação para teste de Transtorno de Desvio de Conduta’...?!”

— Onde devo começar?

 A diretora franziu a testa, como se estivesse pronta para dizer os números de uma lista telefônica inteira, um por um. 

— Aqui temos que você pulava várias aulas durante as semanas, foi visto acessando uma área isolada múltiplas vezes, antagonizou colegas e professores, se recusava a seguir as regras institucionais e, no geral, apresentou um caráter transgressor recorrente, sem compromisso com mudança de atitude, mesmo mediante punição.

— Eh…? — Estupefato com o número de detalhes, o jovem emudeceu.

— Logo, sim. É uma medida necessária. Você terá acompanhamento com a psicóloga da escola, quer queira ou não e sugiro que se quiser se isentar de novas questões, busque mudar de comportamento.

“Mas… Isso…”

A dor de ser incapaz de explicar os reais motivos ou apagar da mente dela qualquer coisa referente ao tópico o perfurou no fundo do peito.

— Agora, pegue seus documentos e se dirija à biblioteca. As aulas logo se iniciarão e eu não acho que vá querer começar seu primeiro dia aqui na Arrowbark com uma observação.

[...]

“Eastwood, seu filho da mãe…!”

Os demais estudantes nos corredores vagos faziam o péssimo trabalho de cochichar sobre sua forma insatisfeita.

“‘Transtorno de Desvio de Conduta’?! Sério?!”

Cochichos a seu respeito viajavam de um canto ao outro na velocidade do vento a soprar, porém, pela primeira vez em tantas escolas, os sons de sua própria cabeça eram capazes de apagar as vozes.

“Eu e meus problemas…! Meus grandes problemas!”

Socou os livros de qualquer jeito no armário, pegando só os necessários para o dia. A primeira aula seria Língua Inglesa, perfeita para se fazer nada e afundar no pessimismo odioso.

“Que saco…”

De tão absorto, permaneceu ignorante à atenção excessiva atraída por acidente, ignorante ao pequeno detalhe no caminho paralelo, em frente aos bebedouros.

— Eh…?

Ao vê-lo, seus olhos pregaram na complexidade da figura dele, atraídos pelo impulso quase magnético.

— Ah…!

A garrafa derramou, cheia ao topo num estalar de dedos e a sensação fria do líquido sobre as mãos, trouxe de volta do transe.

“É ele…”

Fechou com agilidade, desaparecendo entre os corredores com passos tão velozes quanto, de peito tomado pela ansiedade do momento.

“É o… Ryan… né? É o nome dele, eu acho?”



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