Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 119: Engrenagens do Sistema
— Ah, se lascar…
Trancado e isolado do restante do mundo por vinte e uma barras verticais, o rapaz pálido se emburreceu com o barulho cujo tempo para se familiarizar já era grande demais.
— A gente vai começar isso de novo? Tô te dizendo, cara… Não tem mais nada que eu precise te responder…! Sabe o que significa “nada”? Foi para a escola quando era mais novo ou entrou aqui de peixada?
O eco metálico, típico de filmes investigativos, já deixou de coçar o fundo dos ouvidos, e de tão familiarizado com o conjunto, pôde contar, em exato, quantos passos ele levava para chegar ali.
“São treze”, pensou. “Significa que o corredor não é lá tão grande assim… Ou talvez, que eles tenham me colocado numa ala tão isolada que eu seja o único aqui.”
De fato, durante a quase uma semana que passou em custódia dos ditos cujos “investigadores”, Mark Menotte conheceu o real isolamento físico.
— Ouviu as minhas reclamações de antes? — questionou, sem mover um músculo, deitado na cama dura da cela. — O banheiro fica no meio da cela, e já passaram aqui na frente umas poucas dumas vezes… Qual é, a verba de colocar parede ficou curta?
Entre o acinzentado em tons variáveis, as luzes acesas e apagadas, em intervalos periódicos, representavam as únicas coisas que mantinham vivas as noções de “dia” e “noite”.
— Aliás, é um cantinho frio para uma desgrama… Sabia que isso se configura como tortura?
E mesmo sem admitir, as conversas com ele acabaram se tornando o único ponto “alto” de seus dias em isolamento.
— Nenhuma das suas demandas vai ser atendida, garoto. Você não está em posição de exigir nada.
A voz grave do enorme agente reverberou com intensidade, mais alta que o barulho feito pelas barras, nas poucas vezes em que tentou passar por elas.
— E no que depender de mim, não vai ter acesso a qualquer tipo de regalia.
Os olhos dele carregavam rancor e não precisava contá-lo para entender do que se tratava.
— Vamos começar de novo e você vai me recontar em detalhes os ocorridos no dia 29 de Maio, em Elderlog, Montana.
“Hunf… Aqui vamos nós de novo…”, aprumou-se na cama, apoiando os cotovelos sobre os joelhos. — Tá ciente de que vai ouvir a mesma histórias das últimas quinze vezes, né?
— Eu, Agente Walker, inicio hoje, na data de 6 de Junho de 2025, às 11:43 AM, horário local, o interrogatório com o sujeito Mark Menotte…
— “Cê nunca diz em que zona a gente tá, né? Não quer revelar a localização…
— … a respeito do evento denominado “Incidente de Elderlog High”...
— Quanta formalidade… — bocejou. — Ouvir esse discurso a cada vez me faz querer dormir.
— … cujas vítimas quantificaram em oitenta e sete…
— … E eu não tive porcaria nenhuma haver com uma morte dessas, sequer.
— … O sujeito foi capturado na data de 2 de Junho de 2025, na cidade de Elderlog, MT e apresentou intensa resistência à captura…
— Vem cá, ô Homem de Preto! Que ‘cê esperava que eu fizesse?! — exclamou, em alto e bom tom. — Se mandassem um monte de panguaço armado para cima de você, vai me dizer que tu ia ficar de boa?! Ah, se foder, cara…! Eu não tenho culpa de nada…!
Por meio segundo, Walker cessou a leitura do relatório, direcionando ao adolescente uma encarada profunda.
— … Em consequência do comportamento arredio do sujeito, uma equipe de seis agentes treinados foi despachada para a captura…
Pela primeira vez no dia, Mark não se sentiu à vontade para rebater o comentário.
— … resultando em uma fatalidade — finalizou. — Dito isso, podemos começar. Mark Menotte, descreva com detalhes o ocorrido no dia…
— Tu não me vem com essa, cara…
O flash rubro, no tom de sangue, cortou o espaço e dirigiu-se à alma do agente, trazendo atenção para a profunda fúria a jorrar dos olhos profundos.
— Não muda de tom para um bagulho formal e distante do nada… Não me vem fingir que tá só aqui para fazer o teu trabalho, depois de ter me dirigido esse seu monte de merda.
Devagar, o jovem pálido cobriu a distância até o homem de pé, até estarem separados somente pelas barras e dali, Mark o dirigiu o seu cenho mais amargo.
— Eu só respondi o ataque de vocês — falou, frio. — Até então, eu só ‘tava vivendo a minha vida, sem jogar problema nas mãos de ninguém.
As luzes vermelhas guiaram o rumo da mão em torno da grade, elevadas para vê-lo de frente, em desafio aos anos de treino e julgamento do mais velho.
— Naquele dia, eu nem ‘tava realmente no meio dessa merda que aconteceu, porque, que nem eu disse dez mil vezes e ninguém se prontificou para escutar… — pausou, direcionando-lhe o ataque mais intenso. — … Eu tinha sido capturado na porra de uma nuvem de insetos e feito de refém até a arrombada da Sam chegar…! É tão difícil assim de entender?! Tu é tão inteligente, mermão!
Tendo enfim anunciado o desgosto em seu coração, tomou dois passos para trás e de mente presa ao chão, tornou a falar.
— A gente não fez nada de errado… Nem eu, nem você sabe quem. Eu não mereço estar aqui e você sabe disso… Eu ainda sou uma pessoa, eu acho…
Pequenas gargalhadas ansiosas se transformaram em risos maníacos anunciados.
— Quer dizer, eu sou uma pessoa, né?! Vocês não vai me abrir, tirar sangue e órgãos meus, para descobrir como isso aqui funciona, né?! — perguntou em sarcasmo, apontando os próprios olhos. — Não é o naipe do nosso sistema?!
Retrocedeu até cair de corpo inteiro na cama, de braços esparramados e ao ceder, Mark prendeu a atenção no teto, e mais especificamente, na lâmpada branca da cela.
— Então, quando o jogo é assim, que teve de tão mau em ter reagido?! Era ela tentando me caçar e eu só queria fugir… Mas, uma hora, eu só cansei de fugir…! Nossa, que coisa errada de fazer, né?! Brigar pela própria segurança e pela chance de passar mais um dia do lado de quem importa para você…!
Consumido pela própria mania, se reergueu com um gesto atlético, executando uma cambalhota no ar.
— E tem mais…! — exclamou, quase tomado pelo desejo visceral de rir. — O funcionamento de vocês é a maior farsa, né? A maior enganação…! Até porque, quem passa esse tempo todinho só assistindo um quebra-pau generalizado acontecer, ser fazer nada para tentar impedir?! Sério que querem me fazer acreditar que não sabem com o que ‘tão lidando e que euzinho fui o primeiro?! Como eu sou sortudo…!
Walker involuntariamente pressionou o plástico da prancheta até quebrá-la, de paciência limitada para as tamanhas calúnias do moleque à organização e ao seu trabalho.
Em decorrência das pesquisas em andamento, por parte de Pryce, não tinha autorização para usar de violência ou qualquer outro método de coerção por força.
“Esse pirralho…!”, tentou se conter; tarefa difícil a nível assombroso.
Uma pena, de verdade, pois embora Walker não fosse violento por natureza, a ideia de plantar um soco na cara do Menotte já começava a abrir caminho na lista de afazeres do agente.
— A gente vai ter que atualizar as definições de “trabalho porco”, hein…! — zombou, histérico. — Aí ‘cês ficam do ladinho daquela franquia de sanduíche! Trabalhar mal e ainda pegar o cara errado é bem embaçado para o nome da firma! Vai que vaza? Ninguém sabe!
“Não… Melhor não deixar subir a minha cabeça.”
Um pouquinho de reflexão foi o necessário para transformar o imenso problema em algo trivial. Mark era quem estava atrás de barras, ao invés dele e no topo disso, existia a preciosa carta reservada na manga.
— Pois é, né…! Como eu dizia, a gente bem que…
— Certo. O interrogatório acabou de ser finalizado. Agradeço a cooperação hoje, Mark, e espero que possamos ter mais dessas proveitosas discussões. Essa é toda a informação da qual vou precisar.
Repleto de compostura e marcada educação, o profissional fez jus aos trajes formais, despedindo-se com elegância, ao baixar a cabeça para o adolescente.
“Hein…?”
A reação posturada o arrancou do pedestal falsamente humorado, puxando o superpoderoso de volta ao mundo real, para receber uma notícia abaladora, capaz de partir qualquer máscara.
— Já coletamos o suficiente de você em termos de depoimento e, julgando pela coerência no modo como conta as múltiplas versões da história, só dá para assumir se tratar de verdade. Novamente, agradeçemos a cooperação.
— Ei… espera um minutinho ai…
— Agora, temos outras versões para escutar. Como não pudemos recuperar o seu aparelho celular um só pedaço, foi precisa uma investigação mais à fundo sobre quem seriam os seus contatos.
— Não…! Ei…!
— Agora, iremos prosseguir com o interrogatório de Lira Suzuki. É imperativo obter novas perspectivas.
Walker deu as costas ao usuário de ilusão, incitando a cólera sem precedentes do mesmo.
— EI…! — Furioso, Mark agarrou as grades. — VOLTA AQUI…! TU NÃO VAI TRISCAR UM DEDO NA LIRA!
O acerto na ferida aberta garantiu a Gordon seu próprio turno de sorrir em vingança.
— TÁ ME ESCUTANDO?! — balançou as grades, em tentativa de rompê-las. — DEIXA ELA EM PAZ…! PORQUE SE TU OU ALGUÉM MAIS TOCAR NUM FIO DE CABELO DELA…!
O eco de antes se repetiu e novamente, a porta se fechou.
— … EU PROMETO QUE TU VAI SER O PRIMEIRO A SE ARREPENDER…! TÁ ME OUVINDO?!
[…]
— Pela sua cara, vou assumir que o interrogatório não foi tão bom assim.
O veloz contato do copo descartável com a mesa foi anulado de forma igualmente rápida pelas mãos estressadas de Walker.
— O moleque sofre do caso mais pesado de “Síndrome do Protagonista” que eu já vi…
Ele tomou um rápido gole do café, adquirindo esparsas manchas de chantilly no bigode. Olhando de longe, teve vontade de apontá-lo, porém decidiu por só escutar as dificuldades do amigo.
— O linguajar é banal, da paciência não sobra nem o final, mas a pachorra de balançar aquele ego inflado? — pausou, antes de tomar outro gole. — Essa aí é excepcional.
A piada arrancou um risinho de canto do homem de mais de dois metros. Vendo a melhora, ela também se sentiu mais satisfeita, preparando para si uma bebida.
— Foi exatamente o que você me contou daquele caso em ND… O tal do Davis.
— Ainda se lembra daquilo? Já faz um tempinho!
— Não tem tanto tempo assim…!
Sentou em frente a ele e arrumou os óculos na cara, em busca de esconder os princípios das rugas trazidas pelos quase quarenta.
— Além do mais, é difícil de esquecer quando o cara fugiu da cadeia e ainda tá solto por aí.
— Ele fugiu duas vezes, uma lá e a outra foi em Montana.
— É. Tá vivendo o melhor da vida por aí… matando gente, furtando… Gordon, deixa eu te perguntar um negócio… Se não trabalhasse aqui, o que estaria fazendo?
— Qual a razão da pergunta tão súbita?
— Eu não sei… Talvez só sinta que tenha algo de errado nisso… tipo, nessa vida que a gente leva, sabe?
A cozinha do escritório contava com uma pequena janela e ao se admirar o lado de fora, o constante movimento de pedestres, inconscientes quanto ao conteúdo do prédio logo à frente, tinha destaque.
— Proteger gente, desvendar segredos que podem acabar com a nação, descobrir coisas para que ninguém mais tenha de saber delas… A gente vive uma vida louca, se é que dá para chamar de vida, enquanto a única preocupação deles é com pagar contas e cuidar de crianças… Não é meio desejável? Essa simplicidade?
— … Então é uma crise de meia-idade? — brincou.
— Hah…! Talvez! — riu de volta, gargalhando baixo. — Mas bem… Quem sabe eu só queria ter tido a oportunidade de encontrar alguém, que nem você fez. Viver de proteger a soberania da nação me corroeu enquanto pessoa.
— Sabe que ainda não é tarde demais, hein? Você não é velha, Adrianna.
A menção do nome trouxe luz ao semblante da mulher desesperançosa. Os dois já se conheciam há anos, e embora as missões juntos não tenham sido tantas, compartilhavam de uma boa amizade.
— Grata pelas palavras gentis, eu acho — levantou, levando consigo o café. — Parece que a resposta vai ficar para depois… Acabaram de me chamar aqui e… Ah, uma coisinha.
— O que é?
— Um assistente do Pryce me pediu para te chamar. Segundo ele, é bastante importante!