Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 122: Atipicidade

— Ah, hoje já é dia 10 do mês…! Os tempos estão passando tão rápido… Dizem por aí que é um sinal do fim do mundo!

A televisão, longe na sala de estar, fazia ecoar um dinâmico programa de notícias sobre famosos e celebridades.

— Tá tudo tão diferente… É como se a gente estivesse regredindo, eu sinto.

E embora saber quem se casou ou divorciou de quem não fosse do interesse do rapaz de cabelos em cor e padrão de chamas, ao menos apreciava a existência de um ruído de fundo.

— O governo tá lançando essas medidas a torto e a direito… Sabia que eu fui parada e revistada antes de entrar no mercado?! Isso é um absurdo! Se acontecer mais uma vez, eu denuncio…!

Qualquer coisa serviria melhor que o silêncio, para abafar o humor pesado do adolescente de vista colada na tela estática do celular, presa em um contato desconhecido.

Contato Não-Registrado — 11:03: “Precisamos conversar (:/)”

— Stevie? Tá por aí? Já terminou com o café da manhã?

Somente um pedaço de texto, sem resposta mandada de volta quando ele tentou questionar de quem se tratava. Até onde sabia, podia ser só mais um golpe.

— … Stevie…? Filho…

Porém, a jugar pelo novo mundo em que vive, podia ser algo muito pior e relevante, e se por um lado permanecia alerta e vigilante, por outro, esperava ao menos algo em resposta, após os vários dias sem nada.

— Steve Evans, eu estou falando com você…!

A exclamação o arrancou do sutil transe; não é como se não a houvesse escutado antes, mas ceder a prioridade dos principais problemas estava fora de cogitação.

— Desculpa, mãe — levantou, pegando o prato coberto de migalhas de torrada. — Tô só pensando aqui e… deixei ir para longe demais.

Ao invés de só deixar a cerâmica sobre a pia, o sobrevivente de Elderlog High se dirigiu até a pia e, com surpreendente agilidade, lavou o objeto, entregando-o na mão da mãe, já seco.

— Eh…? — Micaela admirou o trabalho, pasma com o evento nunca antes presenciado. — Esse prato…

A pedra moldada se fazia confortavelmente aquecida ao toque e nem uma gotícula de água pairava sobre sua superfície, mais reflexiva e brilhante que o habitual.

— Eu só fiquei pensando em como vai ser daqui para frente… Quer dizer, sem escola e tudo mais… 

Séries de pequenos fenômenos esquisitos passaram a se dar na casa dos Evans há cerca de uma semana, indo de água aquecida em questão de segundos, até mudanças sensíveis na temperatura geral.

— Estudar em casa vai ser meio chato, mas se é isso que a senhora ache melhor… Dá para sobreviver um ano e meio assim!

As manhãs frias passaram a contar com temperaturas mais confortáveis e até as roupas passaram a secar bem mais depressa, uma agradável surpresa para residentes da cidade tão fria.

Isso, porém, não era tudo; as temperaturas, por mais milagrosas e agradáveis, pareciam ter uma fonte definida e quase irrefutável: o próprio garoto em questão e sua renovada confiança.

— Ah, olhando agora, o dia tá até bonito para dar uma voltinha lá fora! Não vai ser perigoso com tanto policial lá fora, então pode ficar tranquila, mãe!

E ser exposta a esses sorrisos, esses novos hábitos construtivos e, em especial, às novas energias por ele liberadas, faziam crescer no coração da mulher algumas perguntas.

“Ele… O Stevie…”

Pessoas mudam e, embora essa seja uma coisa boa, mudanças extremas como as expostas nos últimos dias faziam borbulhar um sentimento estranho, indesejado.

PRIIINK!

— Woah…! 

Num piscar de olhos, abriu-os e viu os dele, firmes nos seus. Ao fundo, queimava uma miríade de tons alaranjados, desenhados em padrões intrincados, como verdadeiras chamas.

— A senhora não se machucou, né, mãe?! — preocupado, a checou dos pés à cabeça. — Ah, ainda bem…! A senhora tá ilesa!

Admirar o novo contexto de sua vida a fazia borbulhar por dentro, tentando arrancar para além da garganta à vontade de questionar.

— A senhora ‘tá cansada? Se sentiu tonta? — Os toques nos ombros a faziam oscilar entre pensamento e realidade. — Já sei…! Deixa eu pegar uma cadeira!

Deixou-a por dois segundos, quase acrobático até a cadeira mais próxima e ao vê-lo pouco se esforçar em agarrá-la, Micaela se admirou, enfim deixando o próprio coração falar.

— … Stevie… — engoliu, acumulando coragem. — Deixa eu te perguntar uma coisa…

O lado materno compreendia com perfeição o quão insensível e doloroso seria concluir tal questão, porém, sabia também que o lado lógico, de ideias e conceitos, não descansaria até ter sua resposta.

Logo, ao tomar o máximo de ar do ambiente e somá-lo ao pouco de coragem, Micaela Evans partiu os lábios e…

DING-DONG!

O eco da campainha a estraçalhou por dentro, desfazendo a pobre preparação máxima como uma criança destrói um castelinho de areia.

— Ah, tem alguém na porta… — mencionou Steve, atento. — O que era, mãe?

Tocando o próprio peito, a engolir o mar de sentimentos em tumulto, desistiu, sem mais forças para tentar de novo.

— Eu só ia perguntar sobre isso… a escola… — mentiu, forçando o máximo de seus limites humanos para não desabar. — Eu.. eu vou sentar… Vai olhar quem está na porta, sim? Eu fico aqui…

— A senhora vai ficar bem mesmo? — perguntou, intercalado por mais um toque barulhento em eco pela casa. — Já vai…!

— Sim, sim… Na verdade, eu já tô me sentindo até melhor…! — sentou, sorrindo da forma mais convincente capaz de empregar. — Deve ser o verão chegando! A gripe, alguma coisa assim… Vá atender a porta, sim? Não é muito educado deixar a pessoa lá fora esperando!

Pela última vez, empregou um sorriso tímido de asseguração, abanando com os dedos para que Steve se apressasse.

— Vai, vai! — disse, com uma mão na testa.

Antes de sair, Steve acenou com a cabeça, sério, e foi correndo atender a porta, cujo próximo “ding-dong” já deveria estar a ponto de soar.

“Stevie, você mudou tanto… Será que é tão eu pensar que…”

Agora sozinha, prendeu o foco nos cacos do prato de cerâmica sobre a madeira do chão, dividido em incontáveis pedaços quase idênticos.

“... você, talvez, não seja o meu filho? É que isso tá tão… esquisito…!”

Micaela se sentiu desapontada consigo mesma, afinal, que boa mãe deixaria de reconhecer a própria cria?

“Eu não sei… Eu não sei o que diabos tá acontecendo aqui e isso me assusta…!”

Ele conversava com alguém à porta. Por ser tão baixo, não tinha como adivinhar a natureza do diálogo e isso a trouxe uma certeza.

“O que houve com você, meu filho…? É algo ruim?”

Ela deveria ficar feliz por sua melhora, mas algo — os afiados instintos maternais — a diziam o exato contrário.

“Me explica…!”

E enquanto ele não a explicasse, ponto a ponto, o motivo de tantas mudanças súbitas, seu coração de mãe não veria o conforto.

[...]

DING-DONG!

— Tô chegando…! Segura aí, que eu já tô indo…!

DING-DONG!

— Eu falei que já tô indo…! — abriu a porta com um solavanco. — Olha, desculpa a demora, é que…

— Vem comigo. A gente talvez não tenha tempo.

Antes mesmo que ele pudesse detectar de quem se tratava e saber a intenção da visita, a garota de marias-chiquinhas castanhas e casaco de couro tentou puxá-lo para fora de casa.

— Ow, ow, ow…! — resistiu, agarrando o contorno da porta. — Ir para onde?! E por sinal, quem é você?!

A resistência do rapaz a deixou visivelmente incomodada e por um segundo, Steve jurou tê-la ouvido grunhir e percebendo a óbvia falta de sucesso na abordagem, a estranha suspirou em peso.

— Hunf… Tá, tá… — levou a mão ao rosto, balançando a cabeça em negação. — Olha, meu nome é Ann-Marie, a pessoa que te deixou o contato naquele dia e mandou a mensagem. Tô aqui para resolver aquele papo.

Com isso, tornou a aplicar uma força maior para trazê-lo fora de casa.

— Dito isso, entra no carro. A gente conversa no caminho.

Na rua, em frente ao gramado, uma caminhonete preta ainda ligada propagava o barulho do motor potente, porém, incerto como qualquer pessoa comum deveria, a apresentação rasa não foi suficiente para convencê-lo.

— Calma aí…! Eu nem te conheço…! E em segundo lugar, eu não posso deixar a casa descuidada! Minha mãe tá aqui e…

— Steve, né? — Sem nem se importar, o cortou rispidamente. — Consegue lançar fogo e foi o responsável pelo incêndio na biblioteca da Elderlog High.

A apresentação dos fatos em tom baixo, quase suspiros, o fez desistir espontaneamente.

— Me diz… você também viu um cara esquisito, né? Ele veio, falou contigo, te deu uma proposta irrecusável, por bem ou por mal… uma que você não podia rejeitar.

Ao contrário do esperado, o vigor por parte dela também cessou, e embora permanecesse de dedos envoltos em torno da carne pálida do usuário de chamas, a única força por sua parte vinha do olhar.

— Eu sei que foi assim contigo. Comigo, foi a mesma coisa.

Por um breve segundo, os olhos castanhos da adolescente se transformaram com brilho azul-esverdeado e uma mudança notável se seguiu.

— Eu assisti basicamente tudo naquele dia, porque também fui parte daquela tragédia… Não… daquele massacre sem justificativa, nem fundo.

Pequenas formigas vermelhas traçaram um caminho com início na manga do pesado casaco, deslizando pelos dedos dela de forma organizada, até enfim escalarem a extensão do braço de Steve.

Ali, moldaram uma nova formação, atípica demais para a teórica ausência de intelecto avançado em seres tão pequenos, se organizando em padrões simples, para formar um número de telefone.

— Eh…? — Pasmo, ele chegou à conclusão precisa por ela orquestrada.

— Fui eu quem mandei os insetos… Por ordens dele

A amargura ao citar a entidade por ambos bem conhecida o trouxe de volta o sentimento de agonia proveniente de encará-lo daquela vez.

— Preciso da sua ajuda, Steve. Tem coisa rolando nessa nossa Elderlog… coisa dele — repetiu a menção, com igual veneno ao dizer.

— Eu…

— … Stevie…? … Oh… Ah, eu acho que conheço você…!

Justo quando ele pensou em refletir um pouco mais e dar a resposta mais tarde, a figura mais descansada de Micaela surgiu à porta.

— Stevie, por que não chamou ela para entrar?! — repreendeu, logo trocando para um sorriso ao se dirigir a ela. — Ah, eu não lembro o seu nome, mas… é a filha do sr. Young, não? Acho que já te vi uma vez ou duas!

— Oh, hehehe…! — sorriu de volta, tímida. — Eu sou a Ann-Marie, mas pode chamar de Ann!

Os insetos se esconderam, de volta por trás do braço do rubro, e utilizando-se de um pouco de potência, arrastou Steve para mais perto de si.

— Obrigada pelo convite, mas eu não vou entrar! Na realidade, eu vim aqui justamente pelo contrário!

— Uh?! Ei…! Ugh…!

O abraço lateral firme o fez crer estar a ponto de ouvir uma costela quebrar; um aviso, solicitando por compulsão a cooperação imediata de sua parte.

— Vou precisar dele emprestado um pouquinho, sra. Evans! — ajustou o agarro em torno da cintura do menino. — Vai me ajudar, né, Steve?

“Não é como se eu tivesse escolha…!”, pensou, dolorosamente admirando o sorriso falso de Ann. — Eu… vou…! É que eu esqueci de contar, mas… eu prometi antes!

O espontâneo alívio e a sensação de poder respirar outra vez, sem o terrível impedimento, o preencheu de alívio como água fria satisfaz um atleta ao fim da competição.

— Desculpa por não ter dito antes, mãe… — parou um pouco para tomar ar. — Haah… É que a Ann precisava de ajuda… com…

— … um carregamento de mel! — completou, soando altiva. — O meu pai finalizou mais um carregamento de mel, só que ele precisava de mais quem deixasse, então, eu chamei o Steve! Não tem problema de pegar ele emprestado, né?

— Não há problema nenhum, Ann! — balançou a mão. — Se já tinha se comprometido, pode ir, Stevie!

— Obrigada, sra. Evans…! — agradeceu, depressa mudando o foco. — Vamos, Steve! Para dentro do carro!

E enquanto ela literalmente o arrastava para dentro do veículo, o jovem usou de seus últimos segundos para gritar sua pergunta.

— Vai ficar tudo bem, mãe?! — questionou, já dentro da caminhonete.

— Vai sim! Eu já me sinto melhor! Pode ir ajudar a Ann sem preocupações!

Antes que ele pudesse responder, as portas e janelas se fecharam e num piscar de olhos, o carro já havia ganhado outras ruas.

“Isso… Tá definitivamente estranho…”

O aperto no peito de Micaela se amplificou, atingindo o ponto mais astronômico nas últimas semanas. Steve escondia algo e a interação a mostrou isso, afinal de contas…

— O Stevie nunca foi popular com nenhuma garota, e menos ainda quando o assunto é tomar iniciativa com relação a uma…

O som do motor já não mais se ouvia e assim, preenchida pela grande ausência, trancou a porta.



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