Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 111: Inércia
— Mark? ‘Cê tá aí dentro? Mark?! Eu vou entrar, hein…! Se tiver pelado, cobre essa tristeza aí, porque eu não quero me traumatizar…!
Os comentários com tentativa de serem engraçados não o atingiram, rebatendo e sendo absorvidos no terrível humor decadente do rapaz de olhos vermelhos, tornados no inexistente.
— Tô entrando…! — A porta foi aberta. — … Ah… Então ‘cê não ‘tava pelado mesmo…
Mais desapontado que as palavras que saíram da boca dela era o humor emanado pelo adolescente atirado na cama bagunçada.
— Mark, o pai tá perguntando se você não vai descer. Ele pode estar precisando de alguma ajuda em organizar aqueles bagulhos dele… sabe como é aquela bagunça…! Depois de um tempo, nem ele se encontra!
Deixou o sanduíche na mesa de cabeceira, cujo odor do ovo frito com bacon invadiu a atmosfera.
— Sabe, o dia tá bem bonito! Podia dar uma saída, tomar um sol… Acho que te faria bem parar de ser tão pálido, morou?
Preso no espaço entre os olhos e a tela, suprimiu qualquer atenção dada à voz de quem tanto o queria ajudar.
— O que tá rolando aí? Que tanta mensagem sem ser lida é essa?! — chegou mais perto, jogando sobre ele os longos fios castanhos. — Mark…! Nunca te ensinaram que você nunca deixa uma garota esperando?!
O aplicativo exibia contatos silenciados, a maioria sem atualizações ou conversas recentes, com a exceção de um.
— Quem é essa SuzuLira? Ah, não vai me dizer que é a tua namorada…! Para de ser chato assim logo…! Dá uma satisfação para essa menina! ‘Cê tem que mostrar que tá vivo, moleque!
Aproveitando-se de seu estado quase comatoso, roubou o celular com a facilidade de se tomar um doce de criança.
— Peguei…! — Na tentativa de chamar sua atenção, balançou a tela brilhante no ar. — Agora eu vou ver todas as tuas mensagens! Se não quer que eu leia…!
Vitoriosa, a adolescente deu pequenos saltitos, mostrando a tela do aplicativo e o urgindo a perseguí-la, porém, tão logo qualquer motivação surgiu, esta desapareceu num estalar de dedos.
— Mark… Não vai se importar mesmo? Tipo, se eu ler as tuas mensagens? — questionou, já não tão confiante. — Eu vou descobrir quem é essa tal de SuzuLira, viu…! Vou fazer uma ligação para ela e descobrir tudinho!
Cada falta de reação só fazia o humor dela murchar como uma flor descuidada, mutilada pétala por pétala.
— Haah…
Largou o celular. Por mais curiosa que estivesse a respeito das mensagens e de quem seria a tal garota, ser obrigada a permanecer não lhe soava possível.
— … Tá bom… Eu vou parar de incomodar… — deixou o rosto cair, cabisbaixa. — Se for precisar de alguma coisa, pode nos chamar, beleza?
O pálido não moveu um músculo, nem para balançar a cabeça. Presenciar tamanha apatia a apunhalou com sua frieza no fundo da alma.
— … Subo quando for a hora do almoço.
O baque na porta ressoou pela casa inteira e embora sair do ambiente prometesse melhora nas energias, a escuridão a envolver a residência se pregava às paredes sem ceder.
A jovem moça grunhiu um pouco; a situação não podia continuar assim e por mais que compreendesse a magnitude do sofrimento dele, mal deixar o quarto por mais de uma semana era demais.
“Pelo menos vê se responde ela, seu tosco…!”
Usando da raiva acumulada pela situação como um todo, se propeliu à ação, descendo as escadas ao rumo da cozinha.
“Eu não acredito que morreram tantas pessoas naquela escola e a polícia não fez nada…!”
A frustração encontrava vazão na ponta da faca e cenouras e batatas se viam transformadas nas pobres vítimas; o incidente na escola transformou a população por completo e ela era somente mais um exemplo da profunda indignação popular.
“Que tanta irresponsabilidade é essa?!”
Após dias cozinhando aos sons das notícias, ouvir os repórteres da televisão evoluiu em algo insuportavelmente sufocante.
“Todos os dias passando a mesma merda… Todos os dias, as mesmas palavras saindo da boca daqueles putos…!”
Diziam não haver explicações, não existirem filmagens e as testemunhas, tão inúteis quanto, nunca pareciam saber de nada.
O evento — seja um Shopping Center pegando fogo, um banco explodindo ou quatrocentas crianças entrando em coma de uma vez só ao fim de um dia de aulas — nunca contava com qualquer evidência.
“Foi rápido demais”, as pessoas diziam, “não deu para ver ninguém”, como se quisessem propositalmente acobertar os casos e manter essa palhaçada rolando.
— Eu fico só me perguntando onde essa merda vai parar…! — Com a frieza de uma executora, afogou os restos mortais picados na água fervente. — Aquele pronunciamento seria hilário… se não fosse tão tosco…!
Forçada por hábito, ligou a televisão a muito contragosto e sua boca se encheu de amargura com a primeira notícia que viu: uma matéria repetida, onde o próprio presidente dos EUA se pronunciava.
Nela, o homem, sem muito sucesso, tentava acalmar os ânimos da população protestante e atender as centenas de jornalistas ao redor, pressionado por perguntas cada vez mais específicas e comprometedoras.
Em certo ponto, um dos jornalistas o inquiriu acerca de algumas teorias conspiratórias populares, usadas para justificar os acontecimentos e sem muito autocontrole, o velho limpou a garganta e falou:
— “Nós, do governo dos Estados Unidos da América, pela última vez os asseguramos: Não existem alienígenas por trás dos casos! Não existem armas sendo testadas em populações civis e não existem quaisquer outros tipos de projetos secretos! Nossa preocupação é com um especializado grupo de origens terroristas e que precisa ser erradicado imediatamente!”
— “Mas, presidente, que tipo de grupo terrorista faria o que presenciamos em Montana e nos vários outros espaços atacados?! Não estamos falando de ataques em massa com armas convencionais, mas sim, de algo muito diferente…!”
A indagação direta do correspondente francês gerou um efeito dominó na população, que, em gesto único, exclamou e ergueu dezenas de cartazes.
— … Não aguento mais ver a cara desse velho em todo canto…!
Desligou, pousando o controle com força audível. Cansada de tanta baboseira, a jovem balançou a cabeça, suspirando em exaustão.
Ela já sabia como a coletiva de imprensa acabou; o presidente foi incapaz de dar uma resposta clara e ao invés disso, se comprometeu a triplicar a verba aplicada nas forças armadas americanas, visando a criação de um novo programa de combate ao terrorismo.
Em suma, as coisas não ficaram tão melhores assim… muito pelo contrário, pois alguém acabou de tocar a maldita campainha.
Ding-dong!
— Uuurgh…! — levantou, frustrada da cabeça aos pés. — Quem será, a essa hora do dia?! … Já vai…!
Se esforçou para arranjar o cabelo e desfazer as dobras nas roupas, antes de correr em passos largos ao rumo da porta.
Ding-dong!
— … Eu disse que já vai…!
Com pressa e força sem medida, puxou a maçaneta em um solavanco firme, mostrando à visita sua profunda impaciência.
— Uh… Eh…?!
E por mais que a primeira vontade fosse de gritar e ser rude com os perturbadores de seu dia, ver de quem se tratavam na realidade fez a espinha e todas as articulações da moça travarem em conjunto.
— Bom dia. Sentimos muito por estarmos atrapalhando no momento, contudo, é uma questão altamente importante… Por isso, agradecemos sua imensa compreensão.
Conseguiu contar quatro homens de preto, dois deles cobertos até o último fio de cabelo com vestes à prova de balas. Na rua, o carro preto abrigava mais um, ocupando o lugar do motorista.
— Antes de tudo, precisamos confirmar a sua identidade… Senhorita Mary Jo Williams?
“... Ele… é enorme…”, sentiu-se desmaiar, pasma com a imagem do homem que facilmente passava de dois metros, a reação mais justa a se ter quando a mão aberta dele conseguia ser maior que sua cabeça.
— Novamente, mil perdões pela intrusão — levou a mão ao peito, seu tom grave ao falar a abalando por dentro. — Estamos aqui em busca de um suspeito; um indivíduo o qual acreditamos estar diretamente envolvido no último atentado à Elderlog High.
O tempo que tirou para a puxar a pequena fotografia do terno se fez somente o suficiente para que se estabilizasse seu estado emocional…
— Diga-me, por favor, se conhece esse rapaz da fotografia.
… Só para ser destruído novamente, de forma mais extrema e em um singular baque seco.
— Nossos recursos investigativos afirmam que esse indivíduo reside com você e seu pai, Bruce Williams, nessa exata residência. Com isso, acho que possa presumir o motivo de nossa presença.
… … …
“... O… Mark…?”
Mary Jo deu um passo para trás, tomada de supetão pela novidade do dia. Ainda de frente para si, a fotografia não podia ser de outra pessoa, indubitavelmente pertencente ao rapaz no andar de cima.
“... Huh…?”
Ao se olhar de mais perto, porém, havia uma diferença. Os olhos do Mark da foto eram negros e profundos, ao invés de vermelhos e brilhantes.
Fora esse detalhe, ambos se tratavam da mesma pessoa.
“... Será que eu digo…?”
O profundo conflito entre falar ou não a corroía e bastou tal proclamação ocorrer para que tanta coisa passasse a fazer sentido, conforme dezenas de teorias se misturavam às lembranças.
“Ele… ele tinha olhos pretos… Mas, começou a usar lentes de contato… Foi o que ele me disse…”
A explicação para a mudança extrema na aparência soava plausível, porém, ouvir o relato do homem de terno a imbuiu de um possível novo significado.
“Será que… ele ‘tava querendo evitar um reconhecimento facial?!”
Isso explicaria as mudanças de atitude do rapaz, pois desde quando assumiu as lentes, passou a se comportar de maneira estranhamente animada e mais ativa.
“Ele começou a escapar durante a noite… passar quase o dia todo fora… e quase sempre vinha com algum corte pequeno no rosto ou coisa assim…”
A contava serem “acidentes de treino” e até tal ponto, acreditou, o fazendo prometer que tomaria mais cuidado. Agora, ela entendia o motivo dos avisos terem caído em ouvidos surdos.
“... O Mark… Eu… Eu não quero acreditar…”
Àquela altura do campeonato, o garoto virou o irmão que jamais teve e em hipótese alguma cogitou que ele fosse qualquer tipo de criminoso.
“Eu…”
Mas, na rara chance disso ser verdade e ele estar envolvido na série de ocorridos, não os impediria de fazerem seu trabalho, afinal…
“... Eles vão entrar… mesmo que eu não permita”, pensou, focada nas grandes armas carregadas pelo par mais atrás.
Então, entre os riscos da disputa e a fé nos agentes carregarem a opinião errada acerca do rapaz, optou pela escolha mais sensata.
— … Claro… por favor, entrem… — assentiu, engolindo a saliva pesada na garganta. — Eu vou guiar vocês… até onde ele está.
Tomou outro passo retrógrado, muito mais hesitante, permitindo a entrada dos quatro oficiais.
— Obrigado pela compreensão — falou o homem de porte avantajado, exibindo seu distintivo. — Sou o Agente Walker e irei me assegurar de que não mais que o estritamente necessário se dará nessa residência.
Ouvir isso não a tranquilizou, logo rapidamente se aprontou e deu início a uma nova subida às escadas, seguida pelos passos quase inaudíveis dos profissionais.
Trêmula, se colocou perante a porta e envolveu os dedos na maçaneta bem mais fria em relação à última vez.
— Mark…? Tem alguém que quer conversar com você… Tem algum problema se entrar?
Dois segundos de pesado silêncio se passaram e o pânico sorveu Mary Jo. Desesperada, a adolescente se virou para os quatro agentes e tentou justificar a falta de resposta.
— Ah, na realidade, acontece que o Mark…
— Arrombem a porta! — O Agente Walker interrompeu. — Agora…!
“Eh?!”, pasma, travou por completo diante do chute forte na madeira.
A porta se abriu e no centro do quarto, estava ele, deitado e largado ao próprio tempo, tal qual fazia antes.
Olhando agora, era como se o tempo sequer houvesse passado desde a última visita da garota.
— Mark Menotte, erga as mãos para o alto de acordo com o meu comando, levante e venha conosco, ou teremos de usar a força!
Sem reação. O rapaz continuou agindo do mesmo jeito, deslizando sem destino a tela do celular pelo aplicativo de mensagens.
— Não irei me repetir novamente, garoto. — O Agente Walker ergueu a mão destra, dando sinal aos atiradores. — Se não quer colaborar, então…
Creeeeeak.
— … Então o quê? Vai meter uma bala na minha cabeça e sair para beber com os amigos depois? Vai contar essa história para quem?
Ele surgiu dentre as sombras, devorando o último pedaço do sanduíche.
— Ali! — apontou um atirador. — No armário!
Ambos reagiram em absurda velocidade, apontando os canos e alvejando a estrutura por inteiro.
— … Pensei que tivessem vindo aqui para conversar… Mentir é um negócio meio feio, sabiam?
— … Encima…!
Mark desceu do teto, caindo de todo o peso sobre um dos atiradores. Em seguida, o adolescente de reflexos sobre-humanos girou de corpo inteiro, acertando um chute em cheio no segundo atirador.
— Tô vendo que esse teu pessoalzinho é até treinado…
— Filho da mãe…! — De prontidão, o terceiro agente puxou a pistola.
— Mas será que eles sabem voar…?
Luz vermelha invadiu o espaço entre eles e num piscar de olhos, já não havia mais nada. A figura do procurado desapareceu, apenas para ressurgir a poucos centímetros do atacante.
— Abre as asas, estudante…!
O chute de perna reta afogado em potência foi de encontro com o plexo solar do agente de terno, o propelindo além da janela fechada do quarto.
— Heh… “Conversar”, né? Eu não sei porque, mas…
A quebra em cacos ressoou pela vizinhança próxima e o impacto do corpo com o solo veio meio segundo depois.
— … Algo me diz que não é assim que se chama alguém para um papo cabeça…!