Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 110: A Sorte de Cada Um
A descida lenta das escadas apagou o clima de apreensão na sala de estar, o motivo para isso, sendo as grandes marcas vermelhas no pescoço do rapaz, visíveis de longe.
— Ei… moleque… — Pasmo, o pai de Emily se contorceu. — O que…
Atacar o pirralho não foi o primeiro pensamento que lhe veio, o motivo disso estando estampado no rosto obscurecido, sob a forma de um sorriso fino.
— Obrigado por me deixarem subir. Deu para discutir o essencial.
Ele tocou a maçaneta e a girou, sem se incomodar com justificativas. O assunto lá em cima estava terminado e ficar mais um segundo o faria explodir por dentro.
— Espera…! — Alissa esticou a mão. — O que foi isso?! O que aconteceu lá em cima?!
A mãe preocupada foi respondida com uma encarada singela.
— Vocês dois são bons pais. Preocupados, presentes, gentis quando querem ser…
— Garoto…! Espera um momento! Sobre o que vocês conversaram?! E o seu pescoço…!
— Deve ser bem legal… ter uma família assim, cheia de apoio… — deu o primeiro passo para fora, sem olhar para trás.
— Espera…! — correu para tentar alcançá-lo, na última expectativa de ouvir a verdade.
Quando a mulher alcançou a marca de dois metros da porta, o suave baque cuidadoso da tranca se espalhou pelo lugar.
— … Emily… — Derrotada, cedeu no sofá. — O que no mundo eram aquelas marcas…?
— Eu devo ir atrás do garoto? — Martin deu um passo à frente. — A arma tá na gaveta do andar do cima… Se quiser, a gente…
— Não! — definiu, final. — Não tem necessidade disso…
Para tal, o marido voltou o foco para baixo, encarando os próprios pés.
— … Entendi — confirmou, hesitante em de fato perseguí-lo. — Nesse caso, eu vou subir e dar uma olhada em como está a Emily. No caso de qualquer coisa, eu…
— A gente encaminha uma denúncia no nome daquele rapaz — completou. — Embora…
Sabia que seu marido sentia o mesmo — a respeito daquilo não ter sido culpa do garoto —, mas isso não apagava a questão real em jogo: o que se passou no quarto de Emily?
Martin subiu, pisando nos pontos estratégicos que não fizessem a escada ranger e aos poucos, os barulhos de choro e monólogos não tão internos se fizeram audíveis.
— Eu queria ser incrível daquele jeito… ser capaz daquele jeito…! Queria fazer as coisas darem certo... Queria ser feliz com essas responsabilidades...!
“Emily…?”
A curiosidade evocada pelas declarações tão odiosas superou até o grande desejo de intervir, levando o pai preocupado a encostar o ouvido contra a porta.
— Você disse que eu era forte… Que eu não devia chorar… Não somos do mesmo sangue...? Então… Por quê…?
“... Filha… Mas o que…” Se moldou em confusão, sob as audíveis páginas rasgando na mistura de gritos e lágrimas. “... O que você tá dizendo…?”
Nada no mundo o prepararia para o impacto final, vindo após tanto silêncio.
— Por que eu não posso ser como você… David…? Por que… eu não orgulho ninguém…?
“... O quê…?” cedeu sobre os próprios joelhos, abalado com o teor do discurso.
O pai focou as grandes mãos, cheias de calos, se questionando, de novo e de novo, como pôde ter errado tanto; Emily era seu orgulho e alegria e sob circunstância alguma tal realidade mudaria.
Logo, como pôde uma família que se dizia amorosa ser tão negligente?
“Eu tenho que dizer.”
Se reergueu e sem pensar duas vezes, acertou a porta com um chute.
— Uh? Eh…?! Pai…?! — tomada de supetão, a adolescente se encolheu contra a parede, assustada. — O que tá fazendo aqui…? O Ryan… ele já saiu…! Não aconteceu nada… e…!
Ele não se sujeitaria a ter de vê-la secar o rosto vermelho com tanta pressa, na tentativa de esconder as lágrimas por tanto tempo reprimidas. Sem aviso, tomou um passo à frente no mar de papel.
— Emily, minha filha…
Lentamente, cortou distância em passos pesados, sério como nunca.
— Uh… Pai… Você tá me assustando… Eu…!
— Me desculpa… por ter demorado tanto para prestar atenção.
Os braços musculosos a fizeram diminuta, cobrindo o corpo inteiro da adolescente como se ainda fosse o mesmo bebê recém-nascido de dezessete anos atrás.
— E me desculpa por nunca ter te dito isso antes, mas, Emily…
Sentia os tremores, a rapidez nas respirações inquietas, e jurou permanecer por perto, até que virassem passado.
Agora, no entanto, havia algo que não poderia esperar mais um piscar de olhos para ser dito.
— Você me orgulha todos os dias, desde quando nasceu e, sinceramente, eu não podia, jamais, ter desejado uma filha melhor. Eu te amo, por tudo o que você é, Emily.
As últimas coisas ditas pelo garoto alugaram um espaço em sua cabeça e conforme a força do aperto aumentava, subia também o som desenfreado de anos de dor acumulada.
— Hic… Hic… Hic…! — Emily chorava sem cessar, de rosto afundado em seu peito.
Uma verdadeira família atenciosa não deixaria tamanha lacuna permanecer aberta, então ele a abraçou mais apertado, visando fechar a brecha de vez.
— Tá tudo bem… Põe tudo para fora, minha princesa.
Os dedos grosseiros deslizaram entre os fios desordenados e quando menos esperava, um novo par de braços se juntou ao conjunto, abarcando os dois com um contraste de sutileza.
— Nossa princesa — disse, laçada ao corpo da filha. — Nenhum de nós dois podíamos ter criado alguém tão perfeito sozinho.
E ali ficariam, unidos como a família que são, e pelo tempo que fosse necessário.
[…]
“Uma família funcional, né?”
Lá fora, ouvia de longe a faísca do choro. Com tão pouca gente na rua, não foram precisos poderes para compreender o que se passava.
Seja lá o que se passasse lá em cima, era algo que só podia imaginar.
— Sortuda.
Levantou a bicicleta e pegou a estrada, e por mais que não soubesse por onde ia, o guidão o conduzia para lá de forma inconsciente; sem perguntas, obedeceu a urgência vinda da alma.
“Preciso confirmar mais uma vez.”
A porta de vidro da pequena loja de conveniência se dividiu e ele entrou, sem cerimônia. Sério, andou até o canto já quase invisível onde ficavam as bebidas e produtos congelados.
“Eu tenho que tirar isso da minha mente.”
Dessa vez, não iria roubar — não que pudesse —; jamais confiaria o bastante na capacidade inexistente de não ferrar com algum passo do processo.
— Isso vai ser tudo? — A atendente o inquiriu, seca.
— Vai ser tudo — respondeu, tão frio quanto.
— Vão ser três dólares e noventa centavos.
Tirou a quantia do bolso, quase robótico em tempo e ação e com um toque sutil, entregou a quantia desejada.
— … Senhor… Solte o meu dedo, por favor…
Não importava como ou o quanto tentasse se concentrar e criar a ponte com a qual tanto se acostumou.
Do contato, só vinha o nada, misto ao eco dos próprios pensamentos.
— Senhor, eu vou ter que chamar a polícia…! Me larga…!
A moça puxou o indicador de volta, dirigindo a ele profundo desgosto e como um sinal de repúdio completo, levou a mão ao peito, rangendo os dentes.
Os resultados do pequeno experimento derrubaram as dúvidas e enfim, a realização cedeu como as muralhas vitimadas por canhões e dragões, nas histórias de fantasia.
Ryan perdeu seus poderes.
“... E agora…?”
— Sabe de uma coisa?! Eu vou chamar a polícia sim! Ninguém merece passar por isso, sem falar que você tá parecendo bem suspeito…! — pegou o telefone de mesa e começou a discar. — Nada de impunidade para você…!
As pessoas ao redor somente assistiam e passivos, entendiam tão pouco da situação que nem julgavam ser algo digno de intervenção.
“... Eu… perdi os meus poderes…”
— Ei…! Onde pensa que tá indo?! — A mulher correu até alcançá-lo. — Ah, não! Não vai sair não…!
“Os meus planos… Por que agora…?”
— Não vou te deixar sair até a polícia chegar e te levar…! — De braços estendidos, fechou a entrada da loja. — E nem vem se fingir de arrependido, porque…!
O peso da mão dele sobre seu ombro trouxe consigo o seco e imediato solavanco. Com a súbita aplicação de força, o corpo da funcionária se viu lançado e o espaço, livre outra vez.
— … O que pensa que tá fazen…
O profundo vazio, a refletir dos olhos sem rumo, gelaram as profundezas da alma.
“E o que vão ser das coisas agora…?”
A porta mecânica abriu sem barulho, quebrando a estase de humores, deixando os pensamentos irem e virem, rápido demais.
E ele tomou uma última fração de seu tempo para perfurá-la com a púrpura oca.
— Essa luta toda foi mesmo tão inútil assim?
… … …
A saída dele cedeu como uma avalanche sobre as mentes dos presentes e o tempo, tão dilatado e preso, tornou a correr em seu ritmo habitual.
“... O que…”
A operadora de caixa dedilhou o chão molhado e quando as informações acumuladas a atingiram, juntas na massa única do mero instante, percebeu estar coberta de cerveja.
“... O que foi aquilo…?”
Vidro tingido de marrom a cortou nos braços e no rosto e de seus cabelos, cediam pesadas gotas da solução alcoólica, permeando o ar ao redor com o odor do medo.
— Alguém… — balbuciou. — Alguém… me ajuda…
Inércia — seja por estarem assustados ou abalados demais, nenhuma das mãos se esticou em seu sentido.
— Alguém me… ajuda…! — Os cacos de vidro perfuraram as palmas das mãos, entregando um mundo de dor.
Repleta de raiva, pegou uma garrafa que sobrou intacta e jogou contra a caixa registradora.
— Porra…! — rangeu os dentes, fixada no vermelho gotejante. — Cacete…! Cacete…!
— Uh… Minha jovem… — despertado pela exibição, um idoso tentou cobrir distância. — … Você está…
— CALA A BOCA, CACETE…! — enfiou a mão na vasilha de doces ao lado do caixa. — VAI SE FODER…!
O grupo de pessoas ficou mais abalado ainda, quando a atendente agarrou o velho pelo pescoço e o forçou a engolir os doces inteiros.
“Eita, porra…”
Enquanto alguns gravavam a reação explosiva e outros tentavam impedi-la de continuar, a mulher no corredor de laticínios tinha a mente em outra série de loucuras.
“Rapaz, as redes sociais ‘tão deixando a galera mais jovem meio prejudicada…”
Ela não moveu um dedo para ajudar e embora pudesse nocauteá-la com um golpe na nuca, tinha expressas ordens de não chamar atenção.
“Hm…?”
A vibração do celular em seu bolso a tirou da distração. Depressa, tomou o objeto maior que a própria mão e atendeu. Era uma ligação dele, e por isso, nada podia ser mais importante.
Agilmente repousou a cesta de compras e sumiu no meio das fileiras de produtos, grata pela bizarra coincidência na colocação dos eventos.
— Manda bala, já tomei distância. Sem civil aqui — disse, simples. — A galera aqui tá ocupada porque tem uma mini-Karen surtando.
— Uma… mini-Karen…? — A voz no telefone soou confusa. — Não me diga que você…
— Não, não fui eu. Ela surtou por causa de um pirralho… Enfim, só diz o motivo. Precisa das pílulas de lactose ou algo da loja?
— Não, Melissa. — A resposta seca e o tom desapontado ficou expressamente claro. — É coisa séria. É sobre o nosso caso.
A menção gerou uma cascata de alterações na atitude da mulher, indo desde troca de postura a mudanças no tom de voz.
— Sobre que parte do caso? — questionou, friamente séria.
— É sobre algumas gravações que a sede recuperou.
As poucas palavras trouxeram massiva ansiedade à jovem agente, que teve de morder os beiços para contê-la e já antecipando a futura declaração, focou na sensação da arma de fogo, oculta na calça.
— Eu já me encontro nas proximidades do endereço e embora a sua participação direta não vá ser necessária…
— Haah…?! Como assim, minha participação não vai ser necessária?! Não pode fazer isso! Tem que me comunicar antes de realizar qualquer movimentação e…!
— Na realidade, eu não te devo explicação nenhuma — rebateu, sem cortar cantos. — Eu sou o seu superior e superiores não precisam dar satisfações desnecessárias para subordinados. Quando tiver alguns agentes sob sua tutela, faça como bem desejar.
— Khhhk…! — ranger os dentes e ser forçada a aceitar foi o único jeito de se expressar.
— Eu ouvi isso — anunciou, sério. — Não estou te deixando fora da missão, muito pelo contrário e se tivesse me deixado falar de primeira, teria compreendido que espero precisarmos de contingências.
— Contingências…? O que quer dizer com…
— A equipe restaurou o suficiente de um dos arquivos de gravação, o bastante para ver um rosto… Pulando todos os detalhes, estamos indo direto ao encontro dele.
Uma notificação de e-mail brilhou na tela, chamando curiosidade para o anexo presente. Além de um endereço e informações de procedimento gerais, havia a fotografia de um adolescente.
— Esse é o suspeito pareado pelo reconhecimento facial. A gente tem um cerco armado e você vai acabar pegando a melhor parte.
Os lábios pintados de vermelho se abriram em um sorriso largo, diante da novidade.
— Suponho que não haja mais dúvidas. — O suave barulho do motor ao fundo cessou. — Conto com você.