Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 109: Emily Attwood

— O que aconteceu lá atrás?! Você tá bem?

“Até hoje, eu não consigo me esquecer do gosto que sentia ao ser afogada nas palavras deles.”

— Um evento tão importante… É uma pena que isso teve que rolar…

“Soube do princípio do quanto aquilo não estava certo, quando por trás de cada discurso e tapinha nas costas, tentando me motivar…”

— Se não estava se sentindo bem, podia ter falado conosco! Podíamos ter te substituído sem problema algum, Senhorita Attwood! Agora que perdemos a chance de participar da competição, o negócio é esperar darmos tanta sorte no ano que vem…

“... Não existia outra coisa que não fosse desapontamento e frustração. Eu trai as expectativas deles e jamais me fugiu o quanto aquilo doeu.”

[...]

— Então…  É agora, né? Eu vou sentir saudades daqui… e principalmente de você, maninha.

O peso da grande mão sobre sua cabeça veio carregado com a tristeza da despedida. Devagar, os longos dedos do rapaz bagunçavam seus cabelos, o contexto roubando qualquer chance de reclamar.

Afinal, levaria um ano para que o visse de novo, na melhor das hipóteses.

— Vou sentir saudades, de você, dos nossos pais… Woah…!

Apesar de tudo, e de saber da necessidade de tal afastamento, a alma da menina recusava-se a deixá-lo ir.

— Não vem com essa… de falar como se estivesse se despedindo…!

O final de sua testa, afundada na blusa, atingia o centro do peito dele e os olhos chorosos logo se viram secos pelo toque suave do carinhoso irmão mais velho.

— Ahahaha! — gargalhou um pouco, entretido. — Não se preocupa, maninha! Eu vou voltar no fim do ano e em todos os fins de ano que se seguirem depois! E pode deixar, porque eu vou trazer um bocado de presentes lá de New York!

Naquele tempo, ele era a única pessoa para a qual ela se permitiria exibir o lado mais mimado.

— E olha, nem tá tão longe assim de você ir para lá também! Faltam só o quê? Uns cinco anos?

— Isso é tempo demais…! — protestou. — Olha… se eu souber que você vai ficar por lá, eu…!

— Fica tranquila. Eu nunca vou deixar a família de lado, Emily.

O ônibus parou no local determinado e no relógio, via-se o horário exato de partida. As pessoas começaram a entrar e isso a estufou de urgência. Não havia mais tempo.

— Emily, você é forte — disse, afagando os tremores da irmã mais nova. — Então não chore, tá certo? Você é incrível.

Do coração, brotou um confortável calor, que irrompeu entre as lágrimas, trazendo à tona um belo sorriso. Calmo, secou o choro nas bochechas coradas da garota e sorriu.

— Muito melhor agora.

Ele se virou, de mochila nas costas e malas em mãos, sinalizando “adeus” e se entregando a um novo capítulo da vida adulta, o qual ela não compreendia tanto quanto gostava de afirmar.

— Tchau, Emily! — acenou. — Te vejo no natal…! Fala para a mãe e para o pai que quero ver novidades!

— Ah…! — apressada com o último adeus, se atrapalhou. — Tá bom…! Vão ter muitas novidades… pode apostar…! Tchau, David…!

O veículo tomou viagem e mesmo após prometê-lo e repetir a si mesma, chorou por três longos dias pela falta de seu protetor e melhor amigo e agora por si mesma, a obrigação de ser a luz da família mudou de mãos.

Fato é, não foi nada tão dramático e tampouco um adeus; toda semana, David ligava e passava ao menos uma hora conversando com a mãe, questionando sobre a família em si e, claro, sobre ela.

E como prometido, apareceu em todos os natais, cheio de presentes e até com a nova namorada — e eventualmente, noiva — do lado. As coisas permaneceram tão bem quanto poderiam estar…

… Ou, ao menos, era isso o que ela se forçava a mostrá-los.

[...]

— Nossa… Às vezes olhando, eu fico me perguntando como você consegue…! Fazer parte do conselho estudantil, participar do projeto de monitoria e ainda cuidar do acervo da biblioteca? Eu não ia ter pulso para fazer uma coisa dessas, além das aulas, Emily…!

Por um segundo, parou de organizar as cadeiras em suas filas e respondeu com um sorriso largo.

— Ah, não é nada tão impressionante assim…! — Modesta, balançou a mão. — É só uma questão de saber manejar o tempo! E aliás, essas experiências acabam sendo importantes para o histórico, então, é isso…!

Confiante, posou exibindo o bíceps, causando pura admiração a cintilar no semblante da única companhia na sala.

— Caramba…! Vou dar uma pensada nisso! Se você consegue fazer tanta coisa, então não deve ser tão difícil assim para mim tentar algo… Acho que preciso mesmo sair da minha zona de conforto…! Hahaha!

— Não precisa correr tanto! Tudo se resolve com um passo de cada vez, então só tome as responsabilidades que sabe poder cumprir!

— Modesto demais da sua parte, Emily…! — abriu a porta, já com metade do corpo para fora. — Boa sorte com essa papelada toda e com a apresentação no sábado…! Falar com aquele tanto de gente te olhando ia me deixar tremendo na base, mas se for você, eu confio…!

— Obrigada…! Hahaha!

— Vai dar tudo certo! — disse, longe no corredor.

… … …

“Eu tô tão cansada…”

Graças às inúmeras posições que ocupava, seria uma das últimas pessoas a poder deixar a escola e ao olhar para o lado de fora, notou já ser tão tarde que nem se viam mais alunos transitando.

Talvez — apenas talvez —, tudo aquilo fosse demais.

— Não dá para parar… — coçou os olhos, exausta. — Se eu demorar mais aqui dentro por hoje, sinto que vou ficar louca…

Não havia tempo para ficar sentada. Ao terminar, teria de entregar a pilha de pesquisas de satisfação e relatórios finais dos estudantes do segundo ano, um monte de burocracia desnecessária e ineficaz em mudar qualquer coisa.

— Falta só isso… Só mais isso por hoje… — repetiu, retornando à tarefa de alinhar as cadeiras. — Só mais um pouco…

Em sua vida inteira, sorrir nunca se tornou tão complicado; ela sequer lembrava da última vez que demonstrou empolgação genuína diante de um espetáculo artístico ou mostra científica.

— Isso é um saco… Como ele aguentava…?

Se algo aprendeu e depressa com tamanha empreitada, é que tais eventos só são divertidos quando não se está na equipe de organização dos mesmos.

De repente, ascendeu a um posto respeitado, admirado pelos demais que jamais tentariam se colocar em tal posição. 

As pessoas a cumprimentavam, elogiavam, olhavam de baixo para cima, tratando-a como um exemplo a ser seguido. Muito depressa, compreendeu o motivo da imensa fama de seu irmão.

“Ele fez, então eu posso fazer também…”

Na faculdade, a eficácia de David somente aumentou; logo ao entrar, assumiu importantes linhas de pesquisa e se encontrava no caminho de tornar-se um médico renomado, coisa citada na última reunião de família.

“Eu consigo manejar… Eu consigo organizar…”

Sucesso corria no sangue dos Attwood, e ela não se atreveria a frustrar tal história.

[...]

— Eu sinto muito… sinto muito… — suspirou com o braço sobre a testa, cheia de espasmos febris.

A plateia inteira esboçou um grande “Ooh!” ao vê-la cair antes de dizer a vigésima palavra do belo discurso, refinado pelos demais membros do Conselho Estudantil.

— Eu.. sinto muito…

A ausência das palavras emblemáticas desclassificou a instituição e no topo disso, gerou vários boatos sobre as condições dos estudantes na Elderlog High; tão logo caiu, as pessoas começaram a assumir e comentar sobre o quanto aquilo era ridículo.

Colocar tanta responsabilidade nas mãos de uma única estudante? Como puderam ser tão cegos aos absurdos níveis de estresse que ser representante de tantas coisas acumuladas a causariam? Deveriam tê-la impedido por seu próprio bem!

— … Eu…

— Poderia fazer o favor de calar a boca, Senhorita Attwood?! Por culpa da sua vontade de querer abraçar o mundo, ficamos sem a premiação! Reclamar não vai mudar as coisas!

O diretor tinha o completo direito de estar aborrecido, afinal, aquele prêmio não só traria verba extra para a instituição, como faria de Elderlog um potencial polo educacional em Montana.

Pessoas viriam de vários lugares em busca da educação enriquecedora da Elderlog High, ocupariam a cidade e a fariam maior; a economia iria aumentar, negócios e empreendimentos iriam surgir…

Tudo isso, arruinado por uma estudante que não soube respeitar os próprios limites.

— Vou ter que tomar atitudes com relação a isso… A partir de agora, você estará fora de todas as atividades extracurriculares nas quais se encontra atualmente.

Com poucas palavras, seu progresso foi destruído.

“O desmaio de Emily Attwood” se tornou o novo tópico quente nos corredores e os professores que tanto a admiravam no passado, passaram a vê-la com um desgosto sutil.

— Estão liberados por hoje. Bom final de dia — disse Wilson, o professor de história.

A observavam de longe, ocultando os verdadeiros pensamentos somente o bastante para permanecerem cordiais em aparência, de intenções indetectáveis aos demais.

— Emily Attwood — chamou, direto. — Passe na biblioteca para pegar as coisas que deixou na sala da gestão. Lá não é mais o seu lugar.

Claro, não se importavam em tentar quando se tratava apenas dela ocupando o mesmo espaço, assumindo posturas gélidas e ignorantes.

— … Okay… — confirmou, cabisbaixa.

Contudo, por mais contraintuitivo que pudesse soar, a terrível experiência trouxe, sim, algo bom.

[...]

— Uhm… Uh…

“O que eu faço agora…?” questionou, focada na bandeja intocada do almoço.

— Uh… Com licença… Emily…

“Tá tudo acabado… Eu pisei na bola feio, perdi tudo o que construí… E agora…?”

— Emily…!

A repentina exclamação por seu nome a arrancou da própria mente como uma rede repleta de peixes era arrancada do mar.

— Eh…?! Ah, é que eu não ‘tava prestando atenção…! Me desculpa! Ahahaha…! — forçou risos. — Mas, bem…! O que você quer saber? Se for sobre o Conselho, eu…

— Não… Não é nada sobre isso… Quer dizer… pode ser, mas não desse jeito…

A garota tomou a cadeira em frente, repousando sua própria bandeja. Tímida, não a olhava diretamente na maioria das vezes, usando os longos cabelos pretos para se ocultar.

— Eu entendo que isso possa parecer insensível de pedir, então, eu só queria dizer que… eu sinto muito pelo que… bem, aconteceu… Mas… eu tenho uma pergunta…

A coragem necessária para ser tão aberta ficou clara de início; não escutá-la seria um pesado desrespeito.

— Emily… você gosta de livros, não gosta? Digo… das histórias, coisas assim… É que eu te vejo na Grande Biblioteca muitas vezes e… não deu para deixar de notar…

O tremendo nervosismo se manifestava nas brincadeiras com o cabelo e as batidas do coração acelerado se faziam visíveis no tecido do grosso casaco da menina.

— Então, eu estive pensando… Eu queria abrir um Clube do Livro… Mas eu não sou boa com essas coisas administrativas e… Ah… Acho que eu tô pedindo demais… Me desculpa…!

Como um relâmpago, levantou com o almoço em mãos e começou a se afastar depressa, envergonhada com o próprio excesso de audácia.

— … Ei, espera…!

Mas Emily foi mais veloz. De tão rápida, acabou derrubando o próprio almoço, fazendo uma lambança na mesa; um sacrifício necessário para agarrá-la de último segundo.

— Essa é uma ideia legal…! — respondeu, confiante. — Eu com certeza te ajudaria a fazer ser verdade!

A menina estremeceu da base ao topo, amassando o alumínio, graças à ansiedade.

— … Mas eu não posso te incomodar com isso…! Foi uma pergunta impensada e…!

— Não esquenta com isso! Se você não confia em ser a presidente do clube, eu posso ser…!

E assim, tão aleatoriamente, nasceu o Clube de Literatura; um esforço quase empresarial, liderado por duas mentes tão distintas, unidas pela paixão por palavras.

[...]

— Ok! Já temos um lugar, agora precisamos de membros! Se tivermos quatro, já podemos ser um clube oficial! Podemos entregar alguns panfletos, chamar os alunos diretamente e…!

O “lugar” em questão não consistia de uma sala separada, como a dos demais clubes, tomado por ser o único que sobrou. A sede do Clube de Literatura ficava, convenientemente, na biblioteca em si.

E que melhor lugar que um labirinto de livros para se falar sobre livros? No papel, a ideia não podia ser mais incrível, porém na prática, surgia um problema…

O amontoado de estantes também servia de ponto de reunião para o Conselho Estudantil. Eles a viram e de imediato, suas expressões se contorceram em acidez.

— Emily, você não precisa se deixar abalar por eles… — Felizmente, ela agora dispunha de uma mão amiga para lidar com tais sentimentos. — Eles não fazem mais parte da sua vida.

— Você tem razão… — suspirou, em peso. — Obrigada, Isabella.

A tímida jovem sorriu, fazendo os fios escuros esvoaçarem sobre a pele pálida de seu rosto.

— Eu posso cuidar do design dos panfletos… Você é melhor com abordar as pessoas e falar com elas, então… Mas isso é só se você quiser e…

— Eu já entendi! — sorriu de volta, segurando as mãos da amiga. — Então é assim que vai ser. Você faz os panfletos e eu chamo o pessoal. Vamos ter os melhores membros!

Mas um clube sobre livros não chamava atenção e os poucos que ameaçavam entrar — rapazes — vinham por outros motivos. Felizmente, quanto mais forte a sombra, mais intensa a luz, e não demorou para que alguns membros de verdade fossem encontrados.

— Eu? — A segundo-anista de notável estatura tocou o próprio peito. — Não vejo porque não. Gosto o suficiente de livros e além disso, nenhum outro clube desperta interesse. Eu me junto ao de vocês.

— Ótimo…! — Animada com a primeira aquisição, saltitou. — Obrigada, Olivia…! Você não vai se arrepender!

— É o que espero — assentiu, fechando o livro escolhido. — Quando começamos?

Chamá-la de “primeira vítima” podia não soar certo, mas a abordagem ostensiva surtiu efeito; Emily foi veloz em notar a peculiar estudante que sempre pegava livros emprestados.

— Assim que estiver pronto, te chamo de novo! — exclamou, empolgada. — Muito obrigada mesmo, Olivia…!

— Hm. Disponha.

E os começos nunca se deixavam cair na mesmice.

— E por qual razão eu me juntaria ao clube de vocês e não outro qualquer? Não tô vendo muita vantagem num clube que nem é reconhecido oficialmente! — A loira rebateu, cética.

— Pense nisso, Ava! A sua poesia é maravilhosa! Eu sempre leio o que você escreve no painel de talentos da escola e fico impressionada! Não seria ótimo ter a chance de expandir a sua gama de leitores?

— Uh… Como você sabe que sou eu quem mando…? Ninguém era para saber…!

— Ué, eu sempre te vejo rabiscando, todos os dias na hora do intervalo! E sempre tem uma poesia nova por lá, então…

— Tá, eu já saquei…! — interrompeu, vermelha como um tomate. — Eu me junto, mas vê se não fala isso para ninguém…! Eu mesma vou falar, quando me sentir pronta…

… … …

Um clube pequeno e confortável, justo o bastante… Um sonho, feito em vida real.

Ao lado delas, o longo ano passou em um estalar de dedos. A sinergia foi perfeita e as forças pareciam se equilibrar e complementar no fluxo perfeito.

A natureza dinâmica de Emily encontrava conforto na gentileza de Isabella, a qual se inspirava na franqueza de Olivia, alimentada pela paixão de Ava, formando um ciclo sem fim de crescimento.

Juntas, desbravaram inúmeros universos, criaram seus próprios e até se aventuravam em busca de resolver os mistérios que, antes, pareciam tão excitantes…

Afinal, o que seria mais poético do que um grupo de mulheres resolvendo um caso onde mulheres são as vítimas?

Foi incrível… pelo pouco tempo que durou.

[...]

— Olivia… Ava… Isabella… — murmurava, entre os gemidos ensurdecidos pelas cobertas.

Quando as coisas deram tão errado? Em qual instante o sonho virou pesadelo? Presa nos próprios pensamentos, desejava descobrir.

— … Por quê…? O que eu fiz de errado…? Por que isso aconteceu…?

Ela deveria estar lá, para protegê-las, para guía-las. Caso ela estivesse lá, estariam vivas.

— Por quê…? Por quê…? Por quê…?!

Por que o destino teve de impor tamanha praga? Tomar suas amigas, as pessoas com as quais mais se importava, para dar-lhe algo tão massivo, porém vazio, em troca.

Por que esse poder não veio mais cedo?!

Amarga, arrancou da estante um livro aleatório, do qual passou a arrancar página por página.

— Eu queria ser incrível daquele jeito… ser capaz daquele jeito…! Queria fazer as coisas darem certo... Queria ser feliz com essas responsabilidades...!

O som do papel rasgado intercalava os gritos de raiva por sua própria pessoa, transformando o silêncio em cacofonia.

— Você disse que eu era forte… Que eu não devia chorar… Não somos do mesmo sangue...? Então… Por quê…?

Não haviam mais páginas para arrancar.

— Por que eu não posso ser como você… David…?



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