Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 108: Fraco Demais
— … Por quê…?
A escuridão a envolvê-lo se expressou, tomando os cantos dos olhos, conforme a estes faltava a luz e adiante, somente a selvageria da dor tão profunda chovia sobre ele seu brilho esverdeado.
— … Por que elas tiveram que morrer…? Por que justo elas…? As minhas amigas… Por que elas?!
Os ecos de gritos e súplicas de parada não saíam, bloqueadas pelas fortes mãos, de dedos massacrantes.
— … Por que não salvou elas?! Por que deixou as minhas amigas morrerem daquele jeito?!
Contra o chão frio e coberto de poeira, ele queria se debater, embora, ao mesmo tempo…
— Por quê deixou aquilo acontecer?!
… Ele soubesse o quão corretas eram as palavras repletas de sofrimento a fugirem da boca da Attwood.
Não veio dele qualquer ação que a impedisse de viver esse momento, mesmo quando sua boca voltou a ter o amargo gosto do próprio sangue.
— … Eu me lembro do que você me contou naquele dia… Disse que tinha outros… e que vocês estavam trabalhando para impedir que mais coisas como aquele massacre de antes acontecesse…
A pressão sobre o peito se fazia incalculável e o peso exercido pela massa da garota sentada em seu abdômen não representava sequer metade de tal valor.
— Naquele dia, você teve a coragem de olhar na minha cara… e me dizer aquelas coisas…
No conceito dele, fazer nada e suportar tornou-se o melhor modo de dizer “me desculpe”.
— E por um tempo, você me deu esperança… Me deixou sonhar que as coisas iam dar certo e que a gente não fosse mais precisar sentir medo…! Você mentiu para mim desde o começo…!
Ouvir a dor tão gritante foi como uma faca enfiada em seu peito e sem pensar, desejou do fundo da alma jamais tê-la envolvido nesse buraco de coelho que só iria mais fundo.
“... Mas eu não posso mais fazer isso… Eu não consigo.”
A falta de sangue, aos poucos, tomava as sensações de sua pele e a dor se tornava menor. Ryan não sentia mais as pontas dos dedos e as trevas no canto da visão expandiam-se rumo ao centro.
— Eu acreditei…! — exclamou, de voz trêmula, instável. — Eu acreditei que as coisas iam mudar…! Acreditei que, depois de tanto tempo, a gente ia ter heróis…! Eu acreditei em tudo o que você me disse…!
“Eu deveria ter contado essa história de um jeito um pouco menos épico…”
A narrativa veio à superfície da mente, após tanto tempo inutilizada e ao contar sua versão da história, omitiu tantos pontos que, em retrospecto, a tornariam difícil de crer sob o puro realismo.
“... Afinal, eu não contei nenhum dos meus momentos vergonhosos para ela… Acabei ficando legal demais… Fiz soar legal demais.”
O modo como exibiu a história o colocou como algum tipo de herói, um ser mítico, capaz de quase qualquer coisa, bastando um mero toque para apagar toda a intenção assassina do vilão.
Tal perspectiva fez as coisas parecerem fáceis.
— Por que elas morreram…? Por que elas morreram…?! Me responde…!
“Me desculpa, Emily…”
Na iminência de perder a consciência, Ryan acumulou o resto de sua força e a tocou, sem a intenção de se soltar. Devagar, repousou as duas mãos sobre as dela, gerando imediata reação.
— … Eh…?
O cenho choroso de Emily se distorceu em profunda surpresa, ao interpretar a presença do áspero tecido das ataduras a recobrir o braço esquerdo do garoto.
A venda do ódio caiu, enfim a permitindo ver as várias pequenas marcas e cicatrizes de queimaduras no rosto de quem acusou tão injustamente de não ter feito nada.
— Uh… Eh…?!
Desespero, seguido da importante descoberta de ter feito algo muito errado.
— … Ryan…
Balançar o corpo sem firmeza não trouxe resposta e bastou pouquíssima inspeção para determinar a ausência plena de respiração.
— Ryan, por favor, responde…!
As profundas marcas vermelhas no pescoço tinham o formato perfeito de suas agora hesitantes mãos.
— Ryan…! Fala comigo…! RYAN…!
O rapaz não movia um músculo.
— Não… NÃO…!
A parede oposta à porta serviu de arma perfeita, quando, sem hesitação, se viu usada para amassar-lhe a testa com uma cabeçada. O impacto criou ondas firmes, ressoando por dentro dos demais cômodos.
— Emily? Tem alguma coisa acontecendo? — questionou sua mãe, abafada pelas paredes.
— Emily…! Eu já tô indo! — Os passos firmes de seu pai, subindo a escala, serviram de alerta.
— NÃO…! — gaguejou. — Tá tudo bem, pai…! Eu só derrubei… a cadeira…! Foi! A cadeira…!
Se jogou contra a porta, trancando-a por dentro e agarrando a madeira para formar um contrapeso. Para entrar agora, somente sob arrombamento.
— Emily, se ele fez alguma coisa com você, eu…!
— Ele não fez nada…! — segurou a hesitação na fala apressada, focada na forma caída do rapaz ao chão. — Eu disse…! Foi só a cadeira! Ninguém se machucou…! Tá tudo certo! Pode ficar tranquilo, pai…!
— Huh… Então qual o motivo de estar falando com tanta pressa? Emily, se aí, dentro desse quarto, estiver acontecendo algo de mais…!
— … Eu te chamo, pai…! — Nesse segundo, aplicou todo o seu empenho em normalizar o ritmo de fala. — Não precisa se preocupar. Estamos só conversando… Sem falar que eu nunca ia deixar alguma coisa acontecer…! Tá me ouvindo, né, Ryan…?!
Nenhuma resposta soou através da porta.
— Ele… acenou…! A gente é amigo, pai… Pode ficar tranquilo!
A moça de pijamas ajoelhou de costas para a porta, sem a menor ideia do que fazer em caso de um possível arrombamento. Ela sabia da natureza superprotetora de seu pai e de que não desistiria tão fácil.
“Por favor, não tenta entrar…”
Denso choro escorria em forma de rios, afogados por tremenda força de vontade, suficiente para manter os gemidos presos. Só Deus sabia o resultado de descobrirem algo assim.
“... Ryan… Acorda, por favor…”
— Hmm…
O pesado julgamento acrescentou ao peso do ar no quarto fechado e escuro. A maçaneta girou uma vez, confirmando estar trancada e ao fim de uma única tentativa, a voz do outro lado tornou a falar.
— Ok, eu vou confiar que esteja tudo bem aí dentro, mas se qualquer coisa acontecer, posso garantir que eu não vou perguntar outra vez, antes de chutar essa porta com tudo e acabar com a vida desse moleque…!
Algo precisava ser dito — qualquer coisa —, uma mínima confirmação, convincente o bastante.
— … Obrigada… por se preocupar comigo… pai…!
A felicidade forçada dessas palavras rasgou-lhe a garganta ao serem cuspidas. A situação nada ideal pedia soluções drásticas e ela não tinha certeza de sua capacidade para fornecê-las.
— Hm. Se comportem aí dentro, vocês dois…!
Duvidoso, o homem de passos pesados deixou a cena, pouco a pouco tomando distância, permitindo ao pânico absoluto a real manifestação.
— … Ryan… — Emily deslizou para mais perto, retirando um objeto do bolso da calça. — … Acorda… Não… Não faz isso comigo…
Recusou-se a pensar demais no formato da pequena caneta preta e tomada pela ansiedade, segurou a mão descoberta do jovem, escrevendo a primeira coisa que lhe veio à mente.
— … Por favor… funciona… Acorda, Ryan…
Ainda não compreendia muito bem — às vezes funcionava, em outras não —, mas a pequena peculiaridade virou seu foco de investigação principal nos últimos dias.
— Eu não consigo… Eu não consigo me concentrar…!
As palavras, antes grandes amigas e seu principal modo de exploração e manifestação, subitamente adquiriram uma utilidade nova.
— Como eu fiz…?! Como eu fiz aquilo antes?! Preciso fazer de novo…! Eu…!
Mais do que nunca, se tornaram armas.
— … Emily…? Ah… saquei… Cough…! — De olhos saltados, Ryan roubou o ar da sala, focado fixamente no teto. — … Esse quarto tá com cheiro de mofo… E qual é a desse monte de papel rasgado…?
— Hic… Hic… — Mesmo secar o rosto tão agressivamente não cessava o fluxo constante. — Hic…!
Ryan se contorceu em desgosto, ao ponto de morder a língua. De algum lugar interior, tomou coragem para dizer o que precisava.
— Eu só vim aqui para dizer que sinto muito… sobre não ter conseguido fazer nada. Eu fui fraco, Emily.
Porém, só não antecipou que a resposta viria de forma tão visceral e peculiar. Emily não disse uma palavra, se debruçando sobre ele, chorando de um jeito tão intenso que antes julgava impossível de se ver.
— Hic… Hic…! Hic…!
Ela afundou o rosto no fundo de seu peito, sujando de sal e catarro à blusa vermelha, usando dos dedos finos para agarrar e sentir cada parte dele, puxando para si e prometendo, em silêncio, jamais deixar ir.
Ele, por sua vez, não soube como reagir a tamanhos sentimentos.
[...]
— A gente sobreviveu, mas nem ferrando foi um sucesso. Dá vergonha só de pensar no quanto a gente podia ter feito de diferente. A história não é de longe tão épica e a gente tão incrível quanto eu fiz soar quando te contei... foi mal.
O quarto sujo fedia a descuido, repleto de páginas rasgadas de livros e cadernos, cheios de coisas escritas às pressas.
— Mark e Lira quiseram seguir com a sua própria agenda e a gente não acabou planejando nada. Para te mandar a real, nós três estávamos tão desorganizados que não dava para chamar aquilo de “trio”. Não vi sobre eles entre as vítimas, então deve significar que estão vivos.
Calada, Emily ouvia, sem adivinhações. Distante, a menina escolheu a própria cama como refúgio, abraçada aos joelhos.
— Eu não aguentei a maciez daqueles dois de quererem ficar pensando na situação quando já era claramente tarde demais… Então eu desci e descobri sobre o fogo na biblioteca.
Os cabelos desgrenhados, olheiras fundas e lábios secos a davam um aspecto penoso, o odor deixando claro a necessidade urgente de um banho.
— Elas estavam lá e isso me deixou confortável. Pensei que se encontrassem um lugar para se esconder, estariam seguras… Em retrospecto, foi ingênuo de se pensar. O fogo era só uma armadilha para dividir a atenção e eu caí direitinho. Fora ter detonado metade da escola, o cara das chamas é até gente boa.
Contava a história sem sair do lugar onde foi deixado, com foco no mesmo teto branco.
— Mas acontece que nesse meio tinha outro… Jacob Egan.
A menção do nome foi a primeira coisa a tirar alguma reação da garota.
— Jacob…? — O terror marcado em seus olhos cedeu como uma sombra.
— Ah… Então vocês já se conheciam…
Ryan pausou, inspecionando a palavra escrita no dorso da mão direita — “Vivo”.
— Ele manipulava o som de algum jeito — levantou até sentar, a encarando. — Podia guardar nos punhos, gritar até te fazer vomitar ou estourar tua cabeça com um toque… De algum jeito eu sobrevivi, mas nem eu sei como. Não lembro de quase nada.
Além da janela, o sol foi coberto por pequenas nuvens, retornando a cidade ao seu aspecto sombrio.
— Quando eu descobri o que ele fez, só quis afundar a cara daquele filho da puta na parede mais próxima… Só que aí, lembrei de um detalhe.
Ele ergueu o tronco até estar sentado no carpete sujo, contemplativo quanto aos eventos passados.
— Foi culpa minha. Aquelas mortes… eu podia ter impedido muito antes. Você acertou no começo.
Imenso desconforto se viu vomitado pela adolescente afogada em culpa. Até mesmo nesse instante suas mãos tremiam, abaladas por sua capacidade de julgá-lo tão depressa.
— Não… Não se cobra assim…! Me desculpa…!
Tais sentimentos se converteram em profundo desespero, ao vê-lo se levantar e ir rumo à porta.
— Ryan…! Não…! — O agarrou, puxando o braço enfaixado. — Eu não quis dizer aquilo…! Eu…!
— Mas é verdade, Emily — Brusco, a interrompeu. — Eu não bati bem com ele desde a primeira troca de olhares…
O sentido da palavra estampada na pele dele jamais teve a chance de ser tão real, interrompido pela terrível escolha da inação no momento em que o oposto seria mais necessário.
— Mas eu não queria me comprometer. Vi uma ameaça na minha frente, mas não quis fazer nada. Ao invés de agir, fiquei criando desculpas…
Destravou a porta e girou a maçaneta, rejeitando o toque hesitante.
— Você disse o que sentiu ser necessário e eu não vou deixar de respeitar isso. Pensar o que quiser disso é só um direito seu.
— Ryan… Para com isso…
Temerosa com a possibilidade de machucá-lo novamente, não usou tanta força e, por isso, foi capaz de escapar tão facilmente dos seus dedos.
— Dar vida ao sentido das palavras, né? É um poder legal! — sorriu, seco. — Te conhecendo, sei que não vou precisar me preocupar. Ah, e Emily… Sei que não foi muito, mas eu me diverti naquele dia.
— … Ryan, espe…! — esticou a mão para alcançá-lo, sem sucesso.
THUD.
A porta fechou e quarto vazio retornou ao estado original, embora agora a solidão demonstrasse sua magnitude real.
“... Ava… Olivia…”
Emily colapsou sobre si mesma, novamente entregue ao tumulto de seu coração.
“Isabella…”
Perder pessoas tão importantes foi como ter uma grande fatia da própria alma arrancada e em meio ao turbilhão de emoções, memórias intensas faziam dela um mar revolto.
— … O que eu vou fazer agora…?
As mangas folgadas do confortável pijama rosa escondiam as marcas criadas nos últimos dias e umas sobre as outras, letras e palavras se acumulavam em um poema desconstruído.
“Felicidade”, “Luz”, “Calor”, “Beleza”, “Sorriso”, “Carinho”, “Força” — entre outras — já sumiam, quase fora de vista na pele clara da adolescente.
Algumas funcionavam, já outras — a grande maioria —, nem reagiam.
— … Eu não quero ficar sozinha de novo…
Começou com um pequeno corte no dedo ao tocar a palavra “faca”, depois, o gosto de morango e leite diante de “milkshake”; inteligente como ela só, não demorou para notar um padrão.
— … Me diz que é mentira… Ryan…
As palavras falavam, repetindo e ecoando por dentro, citando e chamando das coisas mais abomináveis, cujo poder de cessar lhe faltava.
— Não me deixem sozinha com a minha cabeça…
Emily chorou até não suportar, forçada a ceder pelo cansaço e ao fechar os olhos, outra vez se viu desperta no mesmo lugar de sempre, para mais um episódio de desolação.
— Ugh…!
Dos lados do palanque, veio uma salva de palmas e as luzes dos holofotes a cegaram. À frente, um microfone e detrás, um empurrão para forçá-la a dar mais um passo à frente, rumo ao seu pior dia.