Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 107: Família
Segundas-feiras sempre foram dias ocupados, cheios de trabalho, carregados do retorno à habitual labuta. Em dias como esses, a oportunidade de esticar a folga era a coisa mais desejada.
— Hmm…? Tem alguém na porta? — Com calma, repousou a xícara de café na bancada da cozinha. — Já atendo…! Só um instantinho.
Por sorte, tal possibilidade chegou, mesmo que vinda por um infortúnio; a Aiken Loggings se compadeceu com as mortes de todos aqueles estudantes e optou por dar às famílias a oportunidade do último adeus.
— Mas que diabos…?! Eu disse que já vou…!
Eventos como esse eram tão raros quanto achar ouro no meio do oceano, logo, por que, dos vários instantes possíveis, a vida teria de escolher justo esse para trazer tamanho incômodo?
— Eu já disse que ia abrir a porta…! Qual é o seu problema?!
A brisa fria da manhã irrompeu pela casa, trazendo uma surpresa desagradável demais para ser considerada intrigante, o fazendo olhar, enraivecido, para a causa de tanto estresse logo cedo.
— Huh?! O que tá querendo com a minha porta, moleque?! Queria quebrar de vez?! Eu bem que deveria ter deixado, para te fazer ter que pagar…!
O jovem trajado em um casaco preto somente o olhou de baixo, ofegante e com suor a pingar da testa e entre as respirações pesadas, parecia querer roubar para si o ar do mundo inteiro.
Uma bicicleta, jogada de qualquer jeito, repousava no chão em frente à já um pouco ocupada Oak Street, servindo de impulso para o tremendo senso de urgência.
Mediante os fatores, não teve como impedir a pergunta de entrar: O que ele estaria fazendo ali?
— Eu…
A respiração dificultosa não parava a chama determinada e a incrível pressão exercida pelos lábios do rapaz de pele escura, quase como se lutasse sua própria batalha interna.
— … Eu preciso… falar com a Emily… É… urgente…
Sem medo, o encarou no fundo da alma, com aquelas bizarras esferas roxas, dilatadas em meio ao branco. De imediato, ficou clara a falta completa da intenção de desistir.
— Eu tenho… que falar… com ela… Eu preciso… falar com ela…
Em tal estado, ele teve a coragem de bater na porta de sua casa, tão cedo de manhã, e olhar para cima ao dizer algo tão peculiar. Em outro contexto, sob outra situação, aprovaria de tal atitude.
Porém, um pai deve fazer o que um pai deve fazer.
— E porque eu deveria te deixar entrar na minha casa, para “falar” com a minha filha, moleque?!
Os passos pesados rumo ao lado de fora intimidaram o jovem, que, acuado, não viu outra opção senão recuar em direção à calçada.
— Sai daqui! Eu nem te conheço e já tá com gracinha para cima da minha filha?! É melhor sair da frente da minha propriedade, moleque…! Não vai querer que eu chame a polícia!
Estufou o peito para soar mais intimidador e embora a diferença de altura não fosse tanta, confiava o bastante no porte musculoso e acostumado a carregar toras.
Infelizmente para ele, isso se provou insuficiente.
— Por favor… É um assunto rápido… Eu…
— Não quero saber…! Eu não te conheço, não sei do que está atrás com a minha Emily e garanto que se não sair daqui e tirar essa sua bicicleta do meu quintal em cinco segundos…!
Suplicou para que isso funcionasse. Não queria ter que lidar com policiais e justificativas em um dia de folga e muito menos preocupar o resto da família com algo desnecessário…
Então, sua maior súplica era que esse rapaz não fosse mais um maluco… o que não podia ser mais longe do esperado.
— Eu não vou sair, senhor… — Com firmeza, pisou no chão de concreto, firmado por inteiro. — Como eu disse… não é nada que vai demorar demais… Eu só preciso ter uma conversa rápida com ela… É isso.
— Chega dessa história…!
Se intimidação verbal não fosse funcionar, talvez algo mais físico o fizesse mudar de ideia. Sem hesitação, o homem loiro de grande porte fechou os punhos e se fez grande de novo, de modo ativo.
— Eu te dei a chance de sair…! — Ao serem expostos ao sol, os brilhantes olhos verdes refletiram as cores do adolescente à frente. — Vai sair… e vai sair daqui agora…!
Furioso, mirou um soco de esquerda no rosto do garoto, que reagiu rápido; como um profissional, agachou no momento exato, saltando curto para trás em busca de aumentar o espaço.
O farol vermelho se acendeu; seja quem fosse esse arruaceiro, não era só mais um baderneiro qualquer e isso se evidenciou quando tomou uma postura defensiva, com as mãos à frente do nariz.
— Como descobriu esse endereço?! Não vai chegar a cinco metros da minha filha…!
— Foi literalmente a sua filha que me contou o endereço, senhor… — respondeu de forma franca e mais fluida, já descansado. — Eu não estou em busca de problemas… Tô falando sério.
— E por que eu deveria acreditar em um moleque que nunca nem vi na vida?!
Avançou sobre ele, mirando mais um golpe, que passou de raspão na lateral esquerda da face, suficiente para arrancar uma reação de surpresa do adolescente.
— Não quero saber da sua desculpa…! Enquanto eu estiver aqui, não vai chegar perto da Emily! — preparou outro golpe. — Então vê se cai fora…!
Dessa vez, não houve tentativa de desviar.
— … Então você realmente não me deixa escolha, senhor…
“Huh?!”
Surpresa o invadiu mediante à escolha nada habitual de defesa do garoto, que agarrou seu punho.
— Eu só preciso fazer isso aqui e…
— Mas que porra de pegada é essa, moleque?! — Irritado, rangeu os dentes. — Se quer mesmo brigar…
“Eh…?” Pasmo, o jovem logo se viu tomado por uma onda de medo, quando, ao tocá-lo, nada ocorreu. “As memórias dele…!”
— … Então vê se faz isso direito…!
— GHK…! — O mundo dele girou, tonteado pelo forte golpe no centro do estômago.
— Quer levar outro?! — ensandecido, ergueu o outro punho fechado. — Vai embora daqui! E vê se nunca mais aparece na minha porta ou perturba a minha Emily…!
Usando de cada fragmento de força para conter o café da manhã onde deve ficar, a mente de Ryan correu a mil.
“Não funcionou…” pensou, tapando a boca. “Eu não consegui entrar na mente dele…!”
— Tá olhando o quê?! Olha, eu tô perdendo a paciência…!
O ocorrido dos próximos segundos para sempre teria espaço reservado na memória do Savoia, quando, por algum milagre, a porta se abriu, revelando uma nova figura.
— … Amor…? Aconteceu alguma coisa? Eu ouvi uns gritos e… — A mulher na porta tornou-se pálida como papel mediante a cena. — Oh, meu Deus… Martin, o que você fez?!
— Esse arruaceiro tá querendo papo com a nossa Emily…! Mandei ele embora, mas insistiu e…!
— Não importa…! — correndo em desespero, a mulher correu até ele. — Oh, meu Deus…! Martin, rápido…! Leva ele para dentro…!
— Levar ele para dentro da nossa casa?! Alissa, tá ficando maluca, mulher?! Nem sabemos quem é esse arruaceiro e…!
— Eu conheço esse rapaz! — determinou, olhando para o fundo da alma do marido. — Anda logo! Ajuda a levar ele para dentro…! Senta ele no sofá…!
[...]
“Não funcionou.”
O som de água corrente e vidraria serviam de únicos empecilhos ao surgimento do silêncio absoluto.
“Não funcionou mesmo.”
Ou ao menos é o que ele pensaria, caso seu coração não pulsasse com tanta força, o deixando ouvir o próprio sangue a correr por dentro do crânio.
“Eu… Não posso mesmo invadir as memórias das pessoas.”
Parte dele não quis acreditar de primeira; imaginou estar cansado demais, sobrecarregado com a batalha e o uso extensivo de seu poder, afinal, algo semelhante aconteceu antes.
“Eu tive aquela febre.”
Se segurou nisso, crente de que, com o passar dos dias, sua capacidade total iria retornar de modo fluido… Muito para seu desgosto, não foi esse o caso.
“... E agora…?”
Teria algo a mais ocorrido naquela biblioteca? Ou teria ele sofrido algum dano que inviabilizou o uso de sua leitura de memórias? Cada novo segundo trazia profundo pânico e junto, o medo do futuro.
“Será que eu perdi isso para sempre…?”
Refletir, por mais brevemente que fosse, trazia possibilidades impensáveis, ao tomar em conta o contexto geral de sua existência até o momento.
— … Já se sente melhor agora?
A interjeição o fez despertar com um sobressalto, arregalando os olhos para a mulher a poucos centímetros de distância.
— Ah… — tentou se recompor. — Eu já tô melhor… Obrigado.
Os grandes cabelos castanhos balançaram com a inclinação suave da cabeça, acompanhada do sorriso amplo. Ao ver tal reação, foi tomado por um profundo senso de familiaridade.
— Eu sinto muito pelo meu marido… Ele pode ficar um pouco protetivo demais às vezes — estendeu a mão para entregar um copo d’água. — Tem certeza que nada de mais grave aconteceu?
— Obrigado… — aceitou, tomando um curto gole. — Não se preocupe… Eu entendo como ele deve ter se sentido. Eu poderia ter falado de um jeito um pouco mais claro desde o princípio…
— Poderia mesmo…! — Na mesma hora, o grande homem entrou na sala de estar. — Eu sinto muito, garoto, mas não dá para confiar em qualquer um…! Melhor explicar essa história melhor.
“Eu que o diga…” pensou, tomando outro gole. — Eu vou explicar sim…
Ao acalmar pleno dos ânimos, o casal ocupou o sofá oposto, ficando de frente para ele. Os dois se apresentaram como Martin e Alissa Attwood e para o Savoia, depressa se fez claro de onde veio cada parte da aparência de Emily.
— Bem… Acontece que eu passei a estudar na Elderlog High e lá eu conheci a Emily. Quando soube que ela saiu do hospital, tive que vir aqui… De novo, eu peço perdão pela grosseria.
Os olhos, verdes como esmeraldas, vieram do alto e forte Martin, enquanto a cor dos cabelos, formato do rosto e expressões, da mãe.
— Oh, eu sabia que conhecia você de algum lugar quando te vi…! — Alissa estalou os dedos. — E aí, me veio que você poderia ser parente da enfermeira que cuidou tão bem da Emily! Vocês são bem parecidos, se me permite…!
— Sem ofensas…! — balançou a mão à frente do rosto. — A Hannah sempre faz o melhor que pode.
— Tão educado, também…! Não me restam dúvidas de que só podem ser do mesmo sangue!
— Ahahaha… — forçou risos, envergonhado. — Ela pegou as partes melhores…!
Até as personalidades se combinavam no que acabou virando a presidente do Clube de Literatura, onde se via uma clara mistura da energia de Alissa com o ímpeto do pai; soava quase poético.
— Então… Ryan, né? — questionou Martin. — Chegou aqui tão desesperado… O que planeja conversar com a nossa Emily?
— Querido… — A mulher deu um aperto leve na perna do marido. — Não seja ameaçador…!
— Não é ser ameaçador, Ally; é só ser precavido…!
Ryan mordeu a ponta da língua. Sem o poder de apagar memórias, se dar o trabalho de criar uma resposta convincente passou a ser uma necessidade.
“Vai ter que ser uma mentira muito descarada… com uma ponta de verdade.”
O problema em questão jazia em quanto da verdade revelar — uma omissão calculada — e quando nunca antes houve pressão por criar boas mentiras, jamais esteve tão nervoso.
— Eu… queria falar de algumas coisas um pouco sensíveis… São… tópicos que eu acredito que ela iria gostar de saber… sobre o desastre.
Só podia rezar para que funcionasse. Uma aposta tão perigosa podia acabar muito mal e se mal-recebido, seria forçado a aceitar um chute de “adeus” para fora da vida dessa família.
O que ele não esperava, porém, é que funcionaria tão bem.
— … Então é daí que vem esses curativos…?
A voz de Alissa pesou nos ombros e antes serena e receptiva, a atmosfera se converteu em algo acinzentado e cabisbaixo.
— Ela já estaria aqui agora, conversando com você agora mesmo, mas a Emily… não quer sair do quarto já fazem dois dias. Ela não quer conversar conosco, não quer nos contar o que tá acontecendo…
A mulher entrelaçou os dedos na mão do marido e o encarou nos olhos, para fazer um anúncio franco.
— Eu acho que a gente deva deixar ele ir. Se é mesmo amigo da Emily, ela vai deixar entrar e em caso de qualquer coisa, ela vai dar um grito. Se acontecer, eu não vou te impedir de entrar lá para proteger a nossa filha… Muito pelo contrário.
Martin arregalou os olhos, estarrecido, mas depressa tal feição se desfez em compreensão, ao escutar as palavras seguintes.
— Nós não queríamos falar coisas para os nossos pais quando éramos da idade dela, Martin, por mais que eles fossem legais… No fim do dia, preferíamos confiar nos nossos amigos da escola. É muita petulância nossa acharmos que somos tão bons assim, a ponto disso não se repetir com ela.
Apontou para a escada, obscurecida em sombras finas.
— Pode ir. Você tem a nossa permissão.
Houve um sorriso e depois, um aceno de segurança; sem mais perguntas, aceitou.
— Obrigado.
Devagar, andou até os lance de vários degraus e ao colocar o pé no primeiro, olhou de volta, só para ter certeza, recebendo um quieto aceno de confirmação por parte do homem no sofá.
“Aqui vamos nós…”
Cada passo seguinte soou mais pesado em relação ao predecessor, totalizando dezesseis longos impactos contra a madeira.
E a porta, branca com detalhes em verde e o nome “Emily” escrito em uma fonte cursiva extravagante, erguia-se como uma muralha impenetrável…
“Eu tô pensando demais disso…”
Engoliu a saliva da boca seca, tomou ar e, enfim, deu três leves batidas na porta.
Toc. Toc. Toc.
— Emily… É o Ryan. Será que a gente pode…
— … Ryan…?
O som da trava aberta ecoou pelo corredor e assim que a porta se abriu, uma mão o segurou pelo braço e puxou para dentro.
— Ryan…
Força colossal o pressionou contra a porta, trancada outra vez, cuja autora não podia outra.
— … Me diz…
Ele tentou lutar, porém os dedos, especificamente colocados, o travaram a garganta, impedindo qualquer entrada ou saída de ar.
— Me fala… Por que isso teve que acontecer…?
Levou algum tempo até que ele notasse não ser mais sobre frente ou trás, mas sim, sobre cima ou baixo; Emily se encontrava sentada sobre o estômago dele, com ambas as mãos tentando sufocá-lo.
— Me explica… Por que logo comigo?!
Incapaz de dizer uma palavra, travou os olhos com o destaque entre as sombras: um par de luzes verdes, cintilando odiosas, somente para ele.