Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 106: O Calor da Coragem
— Tem certeza de que já tá tudo bem? — A mulher questionou, preocupada. — E se doer quando andar? E se os ossos se partirem com os movimentos bruscos?! Oh, céus…! Filho, você…!
— Tá tudo bem, mãe…! — Firme, a tocou nos ombros, de olhar focado. — Eu já tô bem! Lembra do que a enfermeira disse quando olhou a chapa? Ela falou que não foi nada de mais! O osso só trincou um pouquinho, logo deve voltar ao normal…!
— Mas isso não me impede de me preocupar…! Você ainda é o meu filho, menino…!
O abraço materno sem aviso o envolveu com cuidado e mesmo firmes, as mãos amorosas e zelosas evitaram os pontos mais críticos.
— Eu quase te perdi, Stevie… — Chorosa, afundou o rosto no peito do rapaz. — O meu único filho…! Eu não sei o que ia fazer sem você…!
Sem saber o que dizer, riu com desconforto, levando a mão aos cabelos da mulher para retribuir o carinho.
— Calma, mãe… Eu tô aqui… Eu tô aqui…
— Tantas famílias… Chorando agora a perda dos seus filhos… Tantos futuros… morreram de um jeito tão banal e escroto…
Steve não pôde evitar trancar os dentes ao ouvir tais palavras.
— E pensar que eu cheguei pertinho assim… de perder o meu filho também…!
Memórias dos últimos segundos de consciência daquele dia ressurgiram à toda intensidade. Jamais se esqueceria do profundo e gutural grito — da última coisa que ouviu — antes de perder a consciência.
“Me desculpa, mãe…”
Ela estava lá; uma das primeiras, além do perímetro cercado, visível de tão longe, a ponto de, mesmo na queda livre, demonstrar um sofrimento tão claro.
“Me desculpa por te fazer se preocupar.”
E agora, ao passo que ela derretia em emoções borbulhantes, amargamente satisfeita perante a dor alheia, havia só uma coisa que ele desejava ter coragem o bastante para dizer:
“Me desculpa por ter sido tão covarde a ponto de me tornar uma decepção para mim mesmo.”
Ao passar da semana, Steve compreendeu e aceitou a realidade: o fogo pode não ter sido a causa direta das mortes, porém, o peso de sua contribuição não podia ser negado.
As paredes grossas da biblioteca podiam cancelar o barulho de conversas mundanas ou passos, mas jamais seria o bastante para abafar por completo a miríade de gritos das pessoas lá fora.
“Eu sei que não te orgulharia nem um pouco agora, mãe.”
Sentia nojo de si mesmo, por estar acariciando os fios de alguém tão bondoso com essas mãos, sujas com o sangue de tantos.
“E é por isso que as coisas não podem ficar assim… Nessa semana, eu já me decidi.”
Deu um aperto final na cabeça entre seus braços, separando o abraço devagar. Ele tinha algo para fazer, coisa essa que não podia ser deixada para depois, no mais literal dos sentidos.
— Mãe, eu vou fazer uma visita ali na frente, rapidinho.
As íris castanhas se expandiram involuntariamente com a novidade e pura surpresa tomou-lhe o semblante ao saber da novidade, afinal…
— Vai… visitar a mãe da Stella? — questionou, um tanto desconfiada. — Mas… Já faz um tempão que você não pisa mais lá… Steve, aconteceu alguma coisa? Você tá diferente demais, meu filho!
— Ah, deve ser o cabelo…! — riu, tentando esconder. — Mas olha, a senhora sabe que começou a crescer assim, né? Eu não pintei…!
O aspecto no semblante tenso da mãe apontou a falha do plano.
— Não é disso que eu tô falando… — assumiu, analítica. — O cabelo é o de menos; o fato é que você mudou bastante, filho… Por dentro.
— Eh? Como assim?
— Não sei colocar em palavras… Mas eu sinto como se tivesse ficado mais sério nesses últimos dias… Aconteceu alguma coisa? Pode falar comigo e você sabe disso…! Se quiser falar sobre algo ou…!
O súbito beijo no meio da testa a calou.
— Eu sei que sim, mãe. Não se preocupa…! — sorriu, acenando ao abrir a porta da cozinha. — Pode deixar que eu te aviso se tiver acontecido alguma coisa…!
Ele saiu, deixando-a sozinha e pasma, no meio da cozinha. Sem reação, fixou os olhos na porta, tocando a própria testa para se certificar da realidade.
— O Stevie… nunca faria esse tipo de coisa…
Devagar, a atenção desviou para um pequeno porta-retrato antigo, colocado ali por puro acaso. Dentro, uma foto desbotada jazia imóvel.
— Ele mudou demais… e muito depressa.
Tomou para si o objeto, analisando os contornos da figura eternizada; uma foto de quando seu filho tinha apenas sete anos. Naquele tempo, seus cabelos ainda reluziam castanhos.
— Stevie… Eu imagino que ainda deva se sentir responsável… mas não teve nada que você podia ter feito, meu filho…
Embora quase irreconhecível pela deterioração temporal, uma pequena garota compartilhava espaço na mesma caixa de areia onde ele escolheu ficar.
Muito mais altiva e vívida que o tímido garotinho que se encolhia para tentar — e falhar — não aparecer na foto, levantava a pequena pá de plástico ao alto, se denominando uma conquistadora.
Olhando para trás, parecia quase perfeito, mas, como sempre, ambos cresceriam para tomar caminhos diferentes.
— Eu notei, mas não queria estragar para você… quando ela começou a parar de vir aqui em casa, gradualmente.
A idade trouxe outros interesses e com esses, novas amizades, logo, não demorou demais para a garotinha que dizia aos quatro ventos que se casaria com ele, se distanciasse cada vez mais.
Tão logo, Stella já não o queria por perto, afastando o rapaz de quaisquer formas possíveis e isso piorou quando ela e seus amigos passaram a zombar dele por seus interesses ou aparência.
— Ah, filho… — repousou o pequeno quadro, olhando para além da janela, rumo ao outro lado da rua. — Acho que já entendi.
O que ocorreria na fachada daquela casa estaria longe de um mero diálogo amigável ou despedida e entender isso, enquanto mãe, removeu um peso exorbitante dos ombros.
Afinal, sentiu-se profundamente feliz por não ter de vê-lo se remoer no futuro, por ter deixado tamanha oportunidade passar em branco.
[…]
— Hunf…
Subir três pequenos degraus nunca foi tão desafiador e, enfim, lá estava ele, em frente à última barreira entre a zona de conforto da covardia e o mar de arrependimentos afogados que se comprometeu a enfrentar.
“Não é mais hora de voltar.”
A placa de “à venda” fincada no gramado marcou o fim dos dias de fuga e as batidas na porta foram o sinal do início de seu mais pesado desafio.
“Melhor tem alguém aí dentro…”
Segundos de um silêncio denso seguiram os ecos secos, dando início aos típicos tremores da ansiedade.
“... Porque se não tiver, eu não sei se vou…”
Sem anúncio, a porta se abriu e junto do odor de papelão e poeira, veio o estranho reconhecimento da sensação há tanto esquecida do reencontro com aquela pessoa.
“...”
O tempo se dilatou no contato visual e, aos poucos, o baque do reencontro se expôs no cenho cansado da mulher na entrada.
— … Steve…?
O modo como perguntou soou cauteloso — quase medroso — e como se não houvesse tomado plena noção do evento, partiu os lábios secos, expondo as fileiras amareladas entre a carne.
Vê-lo em sua porta havia, há um bom tempo, deixado de compor parte da rotina.
— Hey, Senhora Annie… — ergueu a palma em aceno. — Faz um tempo… né?
Os próximos segundos trouxeram um sutil choque doloroso quando, sem pensar, atirou-se nele.
— Steve…! Eu tô tão feliz que você está vivo…! — olhou fundo no rosto dele. — E eu aqui já pensando em perguntar à Micaela como você estava…! Que bom que ficou tudo bem… Que bom…!
A explosão de sensações estremeceu-lhe as estruturas; Steve não se julgava merecedor de tamanho carinho, em especial após tê-los deixado por mais de um ano.
— Quando eu ouvi de todos aqueles estudantes mortos, você foi o primeiro em quem eu pensei… Oh, Deus… Não poderia ficar mais agradecida…!
Receber tanto afeto encheu sua boca de amargura.
— Por favor, entre…! — Por si mesma, o puxou pelo braço, fechando a porta. — Estamos no processo de mudança, então as coisas já foram encaixotadas, mas… Aqui…! Eu vou pegar duas cadeiras…! Espere só…!
— Senhora Annie… — chamou sua atenção, forçando um sorriso. — Não vai precisar disso. Eu… não vou ficar tanto tempo assim. Soube que estão de mudança e… Eu só quis passar para me despedir.
De imediato, o clima na casa vazia se escureceu e a atmosfera densa evidenciou as marcas de olheiras no rosto da vizinha da frente, deixando com aspecto ainda mais exausto.
— Entendo… Eu imaginei que fosse ser assim.
Ouvir tal argumento ser usado de forma tão direta o doeu imensamente, em especial ao vê-la murchar como uma flor pisoteada…
Em tal caso, algo precisava ser dito.
— Uh… Mas, Senhora Annie… O meu motivo real para passar aqui não foi só esse. Na verdade, eu queria te dizer algo…
Desde o início das primeiras movimentações atípicas na casa, esteve praticando um pequeno discurso; seu conteúdo, apenas a pura verdade.
— Para começar, eu só queria dizer que, para onde quer que estejam indo, desejo o máximo de sorte, e… que possam se ajustar, da melhor forma possível e…
Entretanto, o claro fato de treino ser diferente de jogo logo se fez nítido, quando a movimentação acelerada nas escadas mostrou sua face.
— Ei…
E no segundo em que aquela fitada o perfurou, todas as perfeitas palavras o abandonaram.
— Mas que porra ele tá fazendo aqui…?!
Por reflexo, o Evans deu um passo para trás.
— Por que deixou ele entrar?! O que esse merdinha tá fazendo nessa casa?!
Bruto, o rapaz mais alto e dois anos mais velho agarrou o flamejante pela gola da camisa.
— Jack, não faz isso…! — Annie tentou intervir, mas um olhar do filho mais velho foi o bastante para fazê-la cessar.
— Por que decidiu pisar nessa casa de novo…? — Com bastante força, o pressionou contra a parede. — HEIN?! ME DIZ!
Com a mão livre, preparou um soco que atingiu em cheio a bochecha esquerda de Steve, o levando-o a cair ao chão, ajoelhado.
— Jack…! — Em pânico, a mulher interviu para impedir o filho mais velho de avançar no vizinho. — Para com isso…! Deixa o Steve…!
— Eu não acredito que você tá defendendo ele, mãe…! — rebateu, com o rosto vermelho de raiva. — Esse desgraçado…! Covarde…! Abandonou tudo e quer se dar o direito de vir aqui…!
— Não foi assim que eu te criei…! Para com isso, Jack…!
Só ele podia dar um basta.
— Não… Ele tá certo, Senhora Annie… Eu meio que mereço mesmo.
O golpe formou um inchaço bem visível no rosto do manipulador de chamas, que logo se viu de pé, mastigando o próprio orgulho pela virtude de contar toda a verdade.
— É, eu fui covarde. Eu tive medo de voltar… medo de confrontar vocês, de dizer que eu poderia ter feito melhor… que teve um modo de ter mudado o rumo final das coisas… Então, ele não tá errado.
— Ah… Seu filho da puta…!
Consumido por ódio sem fim, Jack, irmão mais velho de Stella, avançou sobre Steve com seu físico superior, empurrando-o na direção de uma pilha de caixas no canto da sala.
— Jack…! — Annie cobriu a boca, assombrada. — Jack, para com isso…!
— CALA A BOCA…! — repudiou, correndo para continuar a enxurrada de ataques. — Esse bostinha arruinou a nossa vida…!
Com o impacto, as caixas se dobraram e espalharam e o som de vidro partido tomou a sala de estar.
“Ugh… O pior de tudo…”
— Tu vai ver só uma coisa…! — Violento, o musculoso Jack o agarrou pelo pescoço, desferindo outro forte golpe na face do vizinho. — Não vem se achando para cima da gente… DEPOIS DE NEM TER DADO AS CARAS POR MAIS DE UM ANO…!
A dor ao lado do ouvido direito enviou vibrações excruciantes ao corpo inteiro.
“... É que eu não posso dizer que ele tá errado…”
— Você sabia para onde ela foi naquela noite… Sabia que o tal de Jeremy ia levar ela para um lugar embaçado…! Você sabia com que tipo de gente ela andava se envolvendo… e nunca fez um esforço para nos contar nada…!
A agressividade dos golpes não era de longe tão expressiva quanto as feridas reabertas por tais palavras.
— O quão difícil seria abrir a boca para falar umas dez palavras?! Mas não…! Você não podia sair da porra da tua zona de conforto…! Covarde de merda…! Seu puta covarde de merda…!
O sabor do próprio sangue perpassava quaisquer níveis de nojeira e ainda assim, em momento algum considerou ter sido melhor sustentar seu estado anterior.
— E depois abriu a boca para a gente, dizendo os detalhes, se colocando como só mais uma vítima… Dois dias depois de ela JÁ TER VIRADO A PORRA DE UMA ESTATÍSTICA…!
Stella acabou sendo adicionada à longa lista de mulheres desaparecidas na cidade, esquecida em meio a tantas, feita em só mais um dígito.
— Então me diz… Como…? — Jack perguntou, choroso. — Como tu tem a pachorra… de aparecer aqui?!
A sombra do punho erguido se posicionou à frente do rosto repleto de traumas do jovem de cabelos vermelhos, pronto para atingir pela última.
— Como… tu tem a coragem de fazer isso agora?!
Steve jamais o tomaria o direito de sentir-se como bem quisesse.
“Mas não significa que as coisas vão correr do mesmo jeito de sempre, a partir de agora…”
As dores significavam pouco em face da tamanha determinação de finalizar as coisas na página certa, egoísta o bastante para evocar sofrimentos tão profundos, em nome da própria satisfação.
“Se eu cheguei até aqui e isso foi colocado nas mãos… Essa responsabilidade…”
Focou na própria mão esquerda, regulando a sensação para que resultasse em só um pouquinho e isso seria além do suficiente.
“... Então eu vou assumir o meu papel em mudar as coisas, sem fugir.”
O sutil brilho alaranjado causou leve hesitação em Jack, dando tempo suficiente para ter o punho agarrado pela destra do mais novo e, com isso…
— GAAAAAAAAAAAH…!
O profundo calor o fez saltar longe, derretendo as camadas mais superficiais da pele, para expor o vermelho abaixo e sem reclamar, o adolescente caído se reergueu, mirando fundo nos olhos de ambos.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu. Isso é tudo o que eu precisava dizer. Obrigado por todos esses anos e adeus.
Tranquilamente abriu a porta e saiu, fechando com educação, deixando com que mãe e filho eternamente se questionassem a real proporção desse e de outros fatos, cujas respostas só poderiam supor.
… … …
— Haah… — desceu as escadas, acariciando os vários pontos dolorosos na face. — Foi mais frustração do que vontade de me matar, mesmo… Ele podia ter batido bem mais forte se quisesse.
Ao contrário de Stella, Jack nunca foi muito próximo de Steve. De certo modo, o irmão mais velho sempre refletiu o que desejava se tornar; aquele aspecto de “quieto, mas descolado” era legal.
Mas se algo ele pudesse confirmar, isso seria o profundo senso de proteção por Stella, pois, independentemente do que fosse, ele sempre saltaria para salvá-la de qualquer enrascada…
… Mesmo que, na maioria das vezes, fossem coisas bobas, como cair de uma árvore baixa numa brincadeira.
— … Então eu só posso imaginar como ele deve ter se sentido, incapaz de protegê-la na única vez em que importou de verdade.
De qualquer forma, cumprir a missão de um jeito não tão ótimo aliviou o peso em seus ombros.
— Agora é voltar para casa, começar a me preparar para voltar a estudar e… Hein?
Um fulgor sobre duas rodas cruzou a estrada frente às várias casas, parecendo estranhamente familiar.
— Aquele é… o Ryan?!
Pedindo para ser atropelado, algo que só podia ser o Savoia dobrou à esquerda, tomando a Oak Street. A velocidade excessiva fazia a bicicleta quase sair de eixo, serpenteando pelo caminho.
— Ué… Para onde será que ele tá indo com tanta pressa?
Por mais que não soubesse ou pudesse acompanhá-lo, a certeza de ser um assunto relevante ligou os alertas em nível máximo.
— Vou ficar atento.
Cruzou a rua, já antecipando a preocupação de sua mãe ao ver os ferimentos.
“Ela vai ficar maluca…”
Mas, ao colocar a mão na maçaneta, notou algo bizarro nos arredores; mais especificamente, no chão, ao lado do tapete.
— De onde vieram tantas formigas? E… Eh…?!
Os vários pequenos seres carregavam uma pequena página de bloco de notas e logo ao vê-lo, dirigiram-se aos pés dele, parando logo em frente.
Embora não foi esse detalhe que mais chamou atenção.
— O que tem aqui…? — agachou, pegando a pequena folha.
Bastou tomar a anotação para que as formigas se dispersassem e voltassem ao gramado ao qual pertenciam, vivendo suas pacatas vidas normais.
— “Manda uma mensagem para esse número. A gente precisa conversar”...
Abaixo, lia-se um número de celular e um pequeno desenho infantil na forma de borboleta.
— Huh…