Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 105: Queimaduras

Na cozinha de sua casa, um rapaz fixava mente e alma nas bandagens em torno do braço queimado.

“Naquela hora… O que foi aquilo?”

A mente dele tinha problemas em recriar os últimos segundos conscientes do evento absurdo, ocorrido entre as brasas de tantas estantes e livros.

“Não consigo lembrar de nada.”

Abria e fechava a mão, felizmente não perdida no meio do fogo e enquanto o fazia, fulgores obscuros, de fragmentos ininteligíveis, surgiam a todo instante na mente.

“Quando eu pensei sobre o meu caminho até ali e nas coisas que precisei ver…”

A enxurrada de pura euforia deixou marcas além das lembranças ausentes, gravadas na carne sob a forma dos mesmos cortes profundos nos mais diversos pontos de si.

Abrir os olhos e se forçar a vê-lo o contou a verdade; comparar a tremenda diferença de poder o tornou tão profundamente enojado de si mesmo…

“... Que eu desejei, do fundo de mim mesmo, acabar com aquilo… de qualquer maneira que fosse.”

Não se referia a Jacob em si, sua matança ou o fato de o estar confrontando — essas foram meras consequências — e sim, da própria incapacidade de lidar com o problema.

“Eu nunca tinha sentido tanta raiva… de mim mesmo.”

A única coisa que verdadeiramente desejou abolir foi sua própria fraqueza e a negou de forma tão visceral…

“Eu consigo ser forte se me colocar em função disso.”

… a ponto de tal descoberta o levar a se odiar ainda mais.

“Isso significa que eu sempre pude ter feito alguma coisa e se ainda estou aqui, agora, é porque fiz… Pena que foi tarde demais.”

Confrontar aquele ser de sensação quase divina e de algum modo sair por cima o revelou a pior face de seu próprio egoísmo, escondido por trás de uma tão fina fachada de aparente fraqueza.

“Eu não tive a menor esperança de vencer…” fechou o punho, firme. “E tentei mesmo assim.”

Primeiro, houve absoluto silêncio e com ele, paz interna e naquele segundo, dilatado ao quase infinito, sentiu-se pleno, inabalável.

O viver, o existir; tudo se tornou perfeito.

“E eu venci.”

As memórias se encheram de roxo e após isso, não houve mais nada; ele despertou no hospital, enfaixado, cheio de dores e, principalmente…

— Não consigo mais invadir as mentes de outras pessoas.

Agradeceu profundamente não ter dito isso meio segundo depois.

— Olá…! Bom dia, maninho!

Ryan fez o seu melhor para não mostrar os tremores de susto com a entrada súbita e nada calculada da irmã mais velha.

— Ah…! Hannah… — esmagou uma torrada entre os dedos, inconscientemente. — Oi…!

— Hmm… Nem um bom dia para a sua maravilhosa irmã? Eu pensei que tirar folga da escola te colocaria em um humor um pouco melhor?

Sem cerimônia, invadiu os espaços das gavetas para pegar uma xícara, encarando o irmão com falso desapontamento, enquanto o café descia da garrafa térmica. 

Ryan soube ter tempo limitado para corrigir a situação.

— Foi mal. É que eu meio que me assustei com você entrando de repente… Bom dia, Hannah.

Tratá-la de forma adequada era mais que justo, afinal, ela quem cuidava dos ferimentos e fazia as ataduras.

— Ah, agora sim! Muito melhor…! — sorridente, tomou um curto gole. — Bom dia de novo, meu maninho!

Tão depressa quanto sequestrou a peça de cerâmica da companhia de seus semelhantes, puxou a cadeira à frente e se jogou nela, deixando o impacto da peça na mesa ditar o fluxo da conversa.

— Mas do que você teve medo? Só tem a gente nessa casa, então só podia ser eu…!

Por mais que não dissesse, o Savoia mais novo sempre foi grato à proatividade dela quanto aos diálogos em família.

— Nada de mais — abanou a mão em despreocupação. — Eu só fiquei focado demais, pensando em umas coisas… Acabei perdendo a noção do tempo e até de onde eu tava.

— Frequente…! — escondeu a boca, tentando abafar risos maiores. — Foi mal, maninho, mas eu acho que você podia ficar pensando um pouquinho menos… Sabe, tem muita coisa ao seu redor e ficar focado só dentro da própria cabeça pode acabar fazendo isso passar batido…!

— Isso… é até bastante profundo, Hannah…

A profundidade de reflexão em que tais palavras o colocaram se fez mais intensa do que qualquer um imaginaria e a capacidade de Hannah em falar coisas importantes sempre o surpreendeu.

— Sério? — roubou uma torrada, arrancando um pedaço com os dentes. — Pensei nisso em uns dois segundos.

Mesmo que tamanhas epifanias fossem, em sua grande maioria, frutos de mero acidente.

— Mudando de assunto, maninho, a mãe mandou notícias. Ela me contou que tem um caixotão aí chegando para a gente, cheinho de coisas…! Parece que tem uns presentes e umas coisas para a casa! Não é ótimo?

Aparentemente, algumas coisas jamais mudariam e, por mais que dizer isso pudesse trazer algum conforto, admirar o outro lado assassinava qualquer perspectiva de mudança.

“Como sempre, deixando de aparecer em casa e enchendo os filhos de coisas, para compensar a falta de presença e responsabilidade… Por que eu ainda me surpreendo com isso?”

Contudo, por mais que as coisas e a suas formas de serem não mudassem, a própria atitude do jovem quanto a elas deveria seguir o curso oposto.

“Eu não vou frustrar isso para a Hannah.”

Então, com toda a força presente no âmago de seu ser, Ryan engoliu o sarcasmo e a amargura e sorriu para a “grande notícia”.

— Com certeza! Isso é muito bom, Hannah. Espero que venham algumas coisas boas aqui para dentro; a gente tá precisando mesmo de um aspirador novo.

Ele podia se odiar ao cúmulo e depreciar a maioria das coisas e eventos de sua vida, mas entre arrasar esse sorriso e ter de cortar a própria língua, não havia a menor dúvida quanto à escolha.

— Yay! Eu sabia que você ia gostar, maninho…! — Sem pensar, Hannah deixou a cadeira e se jogou nele, capturando-o em um abraço.

— Hehe! Claro…! — forçou o rosto a imitar felicidade. — Será que tem um celular novo para a gente? Eu meio que tô precisando de um, na real…

Só o pior dos monstros se atreveria a fazer chover sobre tão bela paisagem e ele não se atreveria a tomar tal posição… Não sob condições naturais.

— Uh… Hannah… Tá apertado… — alertou-a com dois leves tapas. — Ainda dói um pouco…

— Ai, meu Deus…! Desculpa, irmão…! — Consternada, voltou para o lugar, cobrindo os lábios com as duas mãos. — Eu te machuquei?!

— Relaxa, não foi nada — aliviou a situação do mesmo modo de antes. — Eu prefiro acreditar que não sou tão frágil assim…

Além do braço esquerdo, sofreu queimaduras menores em algumas regiões do tronco, no tornozelo direito e em partes da bochecha que, de acordo com Hannah, não deixariam cicatrizes.

“Parando para pensar direito… será que isso também é parte dos meus poderes…?”

Qualquer ferimento sempre teve recuperação rápida, deixando de doer por completo em questão de poucos dias e por mais que não soubesse do ritmo normal da recuperação humana, tinha suspeitas.

— Ryan… Acaba que eu tenho uma notícia meio chata para dar…

A mente acelerada do adolescente captou de pronto as mudanças de discurso, ajustando de forma automática para a azeda novidade. Algo sério deixaria os lábios dela e ele não iria gostar.

— Acontece que uma parte do hospital vai ter que participar de um curso de especialização e eu fui colocada para receber esse treinamento. Aparentemente, com a chegada das novas demandas, tem sido feito um esforço para otimizar as técnicas de abordagem às enfermidades e cuidado com o paciente.

Apenas um modo bonito e eloquente de se dizer “vou ter que assistir a algumas reuniões chatas que não ensinam nada que eu já não sabia, mas que são importantes porque sim”.

— Então, a casa vai ter que ficar nas suas mãos por um tempinho… Tá, eu sei o que você deve estar se perguntando… “Por que vai demorar tanto”, né?

Tristeza maculou a expressão da mulher e o impacto causado pela ausência de tanto brilho o corroeu por dentro.

— É a nossa mãe — revelou, um tanto brusca. — Ela quer que eu fique por um tempo, para ajudar ela com coisas da casa… Sabe como é; se depender dela e daquele senso de cuidado, pode viver num lixão e dizer que tá tudo bem, haha…!

Não teve como evitar o gesto reflexo de fechar o punho e trancar os dentes e, de repente, ficou tão claro o motivo de jamais ter sido capaz de reconhecê-la como “mãe”.

— Ela disse que você vai ficar bem e que confia em você para cuidar da casa… Ela até te chamaria, mas o apartamento só tem um quarto… Tentei discutir isso, mas está irredutível. Sinto muito, irmão.

“É claro… Negligente e miserável. Não dá para esperar diferente.”

Debater não levaria a lugar algum; as coisas não mudavam com Joanne e, se qualquer coisa, esse comportamento não passava do típico, sendo distante da primeira ocorrência.

— Tudo bem, Hannah — bufou um pouco pelo nariz. — É da Joanne que estamos falando; deixar um apartamento nos cuidados dela é entregar uma bomba-relógio nas mãos de um chimpanzé. Relaxa, eu vou ficar de boa.

Tal era o custo de se manter a paz na tão estranha família, mas, embora não houvesse objeções, uma pergunta importante precisava ser feita.

— Quando é que vai sair para Billings?

— Ah, ainda falta um tempinho. Vai ser só daqui a quase duas semanas.

“Ah… Talvez não seja tão ruim assim.”

— E aliás, ela também me confiou de ajustar a sua documentação para a nova escola. É um pouquinho mais distante, em Arrowbark, pertinho de Whitefish, mas o ônibus passa todo o dia aqui em frente…!

“Okay, eu retiro o que pensei. Isso vai ser horrível.

Elderlog High foi deixada em estado impróprio para qualquer uso e vai continuar assim por um bom tempo, logo, ele não imaginou que iria para a escola até depois das férias de verão.

“Então eu vou ter que estudar por mais umas duas ou três semanas e é isso…? Honestamente, que porcaria…!”

Por mais que pudesse ler mentes, jamais compreendeu o processo mental de Joanne para decisões importantes.

— Tá certo… Vai dar para desenrolar.

Não foi o que realmente desejou dizer, mas aceitar o desafio era, literalmente, sua única opção.

— Perfeito! Eu sabia que você ia aceitar de cara! — bateu palmas, animada. — Alguns dos seus colegas estão indo para lá também, então nem se preocupe em se sentir desfalcado!

“A sua fé na minha capacidade inexistente de fazer amigos e ser popular é incrível, Hannah…” zombou de si mesmo, até cair a ficha. “Mas… quem vai estar lá?”

Verdade seja dita, a ansiedade por rever Mark e Lira podia ser infinitamente maior e fora eles, não podia afirmar conhecer alguém a ponto de se sentir confortável o bastante para se afiliar.

“Bem, talvez com a exceção de…”

— Oh, agora que eu pensei nisso, uma garota da Elderlog High recebeu alta do hospital nesse fim de semana! Eu acho que o sobrenome dela era Attwood…? Não sei…

— Emily Attwood?

A rapidez e incisividade do questionamento roubaram um segundo de silêncio da mais velha.

— É… Acho que era isso… — respondeu, pensativa. — Conhece essa garota, irmão?

— Ela é popular, então todo mundo ficou falando das faltas dela. Não teve como não saber disso — mentiu. — O boato se espalhou rápido.

— Entendi…! Sabe, por um segundo, eu pensei que fosse por outro motivo…! Afinal, você foi tão afiado na pergunta e…

— Hannah, por favor…!

— Hahaha! Tudo bem, tudo bem…! — balançou a mão no ar. — Ela contraiu uma febre bem ruim, que não cedia por nada e, Deus… aquelas dores…

O rosto da moça se distorcia em agonia, piorando conforme descrevia os detalhes mais específicos.

— Ela gritou tanto, mas tanto… e não importava o que a gente fizesse, porque nenhum remédio melhorava… Chegou o ponto onde tivemos que sedá-la, para que não continuasse sofrendo… Honestamente, não sei como ela sobreviveu.

O último gole do café frio abandonou a xícara e com a queda da gota final, uma notícia boa demais para ser verdade.

— Mas ela se recuperou completamente em um dia…! Dá para acreditar nisso? Acordou plena e perfeita, sem dor nenhuma, falando pelos cotovelos! Eu até cheguei a pensar que ela fosse morrer pelos abraços da mãe e não pela doença, mas… Ah, eu já tô saindo do foco, mas foi isso! Bizarro, né? Uma doença sumir assim…

Do início ao fim da explicação, Ryan manteve foco em um ponto fixo, inexpressivo, mas, tão logo a última palavra foi dita…

— Hannah, eu vou ter que sair! Volto logo!

Com pressa, abandonou as torradas comidas pela metade e quase pulou fora da cadeira, correndo até a sala como quem recebe uma entrega de pizza.

— Ei, onde vai?! E por que a pressa?!

— Eu tenho que resolver uma coisa…! — tomou as chaves. — Tchau, Hannah…! Te amo!

E tão depressa quanto um trovão, ressoou o impacto da porta a se fechar.

… … …

— Huh…! — Corada, a Savoia tocou a bochecha, pasma com o que ouviu. — Parece que tem uma primeira vez para tudo mesmo…!

O sonho acordado logo teve um fim, quando as lembranças dos dias passados se permitiram correr livres, sem o risco de serem ouvidas.

— Me desculpa, irmão… Eu imagino que esteja se sentindo sem chão agora…

Ligou a televisão e a primeira notícia falava sobre outro ataque escolar em Massachusetts, onde a cada momento o repórter comparava as características estranhamente semelhantes entre os dois casos.

— Eu queria poder ter agido de um jeito mais significativo naquele dia.

Sem pessoas capacitadas para defender e salvar os estudantes, as perdas foram muito mais numerosas, quantificando trezentas e vinte e sete.

— E eu quase não consegui impedir de acontecer…

Dali para a frente, as coisas só ficariam piores.

— Vai demorar um tempo… Os danos na [Fechadura] vão custar a serem totalmente reparados e até lá…

Ela só podia rezar para que seu amado irmão ficasse bem, mesmo que soubesse o quão impossível seria para o futuro atender tal demanda.



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