Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne

Revisão: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 104: Autópsia

— Chegamos.

O solavanco final da frenagem violenta alterou os estados de corpo e alma do homem no banco do passageiro. Aliviado, levou a mão ao peito e suspirou, satisfeito por nada pior ter acontecido.

— Ao menos você não virou esse carro naquela ribanceira perto do rio, porque, com aquela velocidade toda…!

— Ah, cala a boca! — O cortou, aborrecida. — Se não fosse por mim, não estaríamos aqui tão cedo!

Melissa podia ter um ponto, porém, na visão do companheiro de profissão, isso não alterava um detalhe importante.

— Sempre tão fácil de provocar… — deixou escapar por baixo, mascarando a real intenção. — Se quiser crescer nesse ramo, vai ter que saber lidar melhor com isso…!

A leve explosão sonora do choque das portas foi quase simultânea.

— Não é de você que eu vou ouvir isso, “Senhor Inata Competência”!

O primeiro choque veio com a chegada da agradável brisa da manhã. Antes fria, a ventania singela evoluiu em algo aprazível e acolhedor.

— Então esse é o poder do verão? — questionou a moça, pondo os óculos escuros para se proteger do sol emergente.

A estrela-mãe banhava o branco da grande estrutura adiante com um profundo dourado, os levando a focar no objetivo.

— Hospital legal para uma cidade pequena…!

As vidraças do grande prédio, em seus incríveis sete pisos de glória, refletiam excesso ironicamente necessário.

— Isso é porque esse hospital recebe o pessoal da maioria das cidades vizinhas — Gordon completou, mascarando a própria surpresa. — Mas sim, é bem imponente.

O par logo se orientou rumo ao edifício, passando entre algumas poucas ambulâncias e profissionais em seus turnos.

— Pryce disse que nos encontraria logo na recepção. Se não me engano, a porta é aquela lá.

A entrada principal contava com um par de guardas; sem palavra alguma, ergueram os distintivos falsos e não houve como negar passagem.

— Ah, o FBI…! — O guarda à esquerda, mas novo, quase perdeu o controle do próprio corpo. — Por favor, podem passar…!

Singelo, Gordon — ou melhor, Agente Walker — acenou com um sorriso para o jovem, intimidado pelo porte físico do agente.

E no primeiro passo rumo ao interior do ambiente climatizado, Melissa — a Agente Bauer — o chamou a atenção.

— Eu entendo a sua boa intenção, mas esses bíceps ainda vão acabar matando alguma dessas pobres almas aí…!

O homem de quase quatro décadas gargalhou, seco e com foco no objetivo, escaneou os arredores.

— Se ao menos funcionasse tão efetivamente contra criminosos fortemente armados de alta periculosidade… — Focado, procurou em cada canto e brecha. — Hmm…

Chegaram no horário marcado e, nesse ramo, um minuto de atraso na investigação significa possíveis vidas perdidas.

— … Onde ele foi se meter…?

E justo enquanto o Agente Walker processava a quebra de compromisso do colega de ramo, o puxão em seu ombro apontou o rumo contrário.

— Ali está ele.

A cabeleira bem penteada, junta do pequeno bigode platinado pelo tempo, se faziam inconfundíveis.

— Pois bem, vou querer ver os resultados dos hemogramas. Sinto ter de lhe demandar tanto trabalho, mas posso confiar que compile todos para mim?

Por trás da expressão cansada e rígida com tamanho estresse, existia um amante do próprio trabalho.

— Com certeza, Doutor! — A enfermeira ao lado assentiu de corpo inteiro. — Irei informar as demais das suas solicitações.

— Eu agradeço, Rose — sorriu. — Sei que se trata de um trabalho difícil, mas vocês serão muito bem compensadas.

O contato visual, breve, o contou os pormenores que precisava saber.

— Agora, se me permite, vou ter que cuidar de um assunto. Estou ansioso pelo trabalho de vocês.

A trabalhadora novamente confirmou, se retirando de cena, para dar o espaço próprio à "conversa de adulto" que dali se seguiria.

— Haah…

Devagar, o homem de jaleco suspirou, arrumando os pequenos óculos redondos. Mais calmo, estalou o pescoço e se dirigiu ao par.

— Gordon! Melissa! — cumprimentou, estranhamente enérgico. — Ou eu deveria dizer, agentes Walker e Bauer!

Estendeu as duas mãos em simultâneo, acolhendo os dois em pé de igualdade.

— Gostaria que me perdoassem pelo leve atraso. Sei que é atípico, mas, acreditem: foi por uma causa importante.

"Dr. Rolland Pryce" se lia no crachá pendurado no peito do jaleco. Dentro da corporação, figurava como um dos únicos capazes de usar credenciais legítimas.

— Podemos imaginar que sim — "Walker" assentiu, sorrindo. — É bom vê-lo de novo, Pryce.

Porém, enquanto não existiam tantos riscos em seu campo profissional, a meticulosa esperteza necessária à execução fugia da maioria.

— O sentimento é mútuo — assentiu, tornando para a mais jovem do trio. — Foi um disparo incrível, Agente Bauer.

A moça cruzou os braços, cheia de orgulho, afinal, os resultados da última missão no Texas trouxeram grande atenção ao seu nome na corporação.

— Não foi difícil! — orgulhosa, ajeitou os cabelos sobre o ombro. — Foi tudo uma questão de estar no lugar certo, na hora exata.

— Imagino que sim! — acenou, em singela confirmação. — Mas bem, os detalhes sobre isso podem esperar pelo momento apropriado. Por favor, me sigam. Podemos continuar a conversa durante o caminho.

As atenções dos poucos pacientes e familiares presentes no início do dia, roubadas pelo preto profundo das vestes cheias de classe, seguiram os agentes ao passo que sumiam pelos corredores.

— Fiquei bastante animado quando me chamaram do meio de Washington para cá e desde o princípio, sabia que seria trabalho demais, mas esse tipo de suicíidio mental é um que sempre disposto a fazer.

O movimento de funcionários diminuía drasticamente após a terceira porta cruzada, depressa reduzido ao zero, garantindo ao grande hospital um novo aspecto muito mais mórbido.

— Mas até eu tenho meus limites e ter de dissecar 87 vítimas os provou. Nesse presente momento, sequer sinto meus dedos, graças a ter de segurar aquele bisturi.

A iluminação aparentava ter perdido a intensidade, perante a mudança do esbranquiçado para o puro concreto lixado nas paredes.

— Isso sem falar do estado de cada uma daquelas pobres almas, repletas de danos contundentes e partes desconexas… Em quase trinta anos de carreira, classifico a experiência dessa cidade como o mais maldito jogo de quebra-cabeças de minha vida.

Os dedos ágeis trabalharam sobre os botões do pesado elevador cargueiro, repleto de ferrugem e a descida, maior que deveria, evocou rugidos metálicos e ecos profundos.

— E quanto aos achados? Seria preferível comer meu próprio fígado a me dar o trabalho de encontrar alguma lógica.

A abertura das portas permitiu a entrada do violento odor químico, típico de qualquer necrotério; um ambiente desnecessariamente escuro e gelado, onde já não é mais da vida que se cuida.

— Perguntas?

A encarada fria do homem de meia-idade refletiu a luz azulada, rebatida nos arredores metálicos e parcimonioso quanto à própria postura, tomou uma prancheta, repleta de códigos.

— Só tenho uma — Gordon deu um passo à frente. — Esses riscos são os nomes que conseguiu identificar?

Metade da lista foi coberta de vermelho, enquanto as demais fileiras de números permaneciam intactas, sem as anotações ou nomes escritos às pressas nas laterais.

— Sempre as perguntas importantes, não? Vocês nunca perguntam nada de interessante… — negou em brincadeira. — Não. Todos os corpos já foram identificados. Esses aqui são apenas os que ainda necessitam de análises mais criteriosas.

A velocidade no trabalho de tais mãos jamais o deixaria de surpreender.

— Certo! Como você é o cara aqui dentro, vamos ser bons alunos e buscar aproveitar o máximo! Então, por favor!

— Heh…! Desde que te conheço, não mudou nem um pouquinho, Agente Walker! — virou, dando os primeiros passos rumo à série de salas.

— Viu? Até ele te considera velho — Melissa invadiu, zombando. — Acho que aceitar a realidade e se reconhecer como um membro da velha guarda dessa firma não te faria mal!

— Hahahaha! — Em resposta, Pryce gargalhou aos plenos pulmões. — Meus cabelos ainda eram pretos quanto ele se juntou! Que memórias boas…!

— Mas eu ainda não sou tão velho assim…

Infelizmente — ou o oposto —, não houve tempo para o grande homem se sentir mal com a brincadeira, pois quando a porta metálica se abriu, morreu com seu eco qualquer graça.

— Atualmente, me encontro na quinquagésima-sétima vítima. Reservei esse cadáver pois ele é um dos que mais expressa o estado geral completo das vítimas fatais da escola.

O par de agentes assumiu proximidade, assistindo, absortos, à demonstração de praticidade do médico em revelar o que existia sob o pano branco.

— Santo Deus… — “Walker” suspirou, quase inaudível.

— É o que eu diria se acreditasse em um — Pryce o fitou nos olhos. — E esse é um dos mais conservados, acredite. Essa garota não passa da superfície.

Trocou as pranchetas, folheando entre a pilha de dados, em busca do que definisse o corpo sem cabeça.

— “Mirella Schauz, dezesseis anos, sexo feminino. Causa de morte: suspeita de trauma contundente explosivo nas regiões de crânio, face e pescoço.”

— Suspeita…? — A face de “Bauer” se distorceu em confusão. — Como ter a cabeça explodida pode ser colocado como morte suspeita?

— Foi um detalhe proposital, Agente Bauer — estalou a língua, deixando a prancheta de lado. — Pois, enquanto ela de fato morreu graças ao trauma, temos uma série de outros detalhes.

Do pequeno gabinete abaixo da mesa, puxou uma pasta numerada, repleta de radiografias da região torácica de Mirella.

— Isso é…

Cinco segundos foram acima do necessário à agente em treinamento.

— O que são esses corpos estranhos? São muitos… e em todo o lugar…

Alguém leigo jamais nomearia de “pulmões” ao grande par de manchas brancas na chapa.

— Precisamente o que você já imagina que sejam, Agente Bauer. Vejamos um pouco mais de perto.

O mais velho firmou a tesoura cirúrgica na destra, extraindo os pontos cortados do pulmão direito com a canhota e, aos poucos, revelando a terrível surpresa por baixo das camadas.

— Não que eu acredite, mas… Santo Deus…! — A mulher exclamou, engolindo a saliva acumulada.

Dezenas, talvez centenas de pequenos insetos mortos, desde borboletas a formigas e algumas baratas, acumuladas em qualquer espaço disponível nas vias aéreas.

Com o corte, alguns caíram na caixa torácica aberta, enfatizando os tremendos números no interior do órgão.

— Existiam muitos mais no interior de toda a região tóraco-abdominal, em um total de 1807 insetos. Essas coisas ocuparam cada brecha entre os órgãos e grandes vasos, rastejando por baixo da pele…

Ao fim da explicação, apontou para uma mesa distante, onde várias jarras de vidro, repletas de espécimes ao topo, exibiam as proporções do ocorrido.

— Alunos sobreviventes relataram terem sido perseguidos por outros, de comportamento semelhante ao de zumbis, segundo os próprios… Esses “zumbis” se moviam de forma descoordenada e esboçaram comportamento hostil, embora não fossem tão perigosos.

O negatoscópio na parede revelava uma radiografia de crânio, onde o mesmo padrão se repetia.

— Seja lá o significado, é aterrador… Agora, por favor, me acompanhem. Ainda existem coisas a serem mostradas.

A sala à frente, um pouco menor, alterou outra vez o caráter da visita, os conduzindo a um ambiente de qualidades laboratoriais impecáveis.

O branco nas paredes retornou, assim como a luz forte e o odor mais agradável de limpeza padrão. Por um tempo, foi difícil acreditar que se tratava do mesmo espaço repleto de morte e formol.

— É aqui onde a pior parte se encontra — tomou um tubo de ensaio do suporte na mesa. — É o lar das coisas que vocês saberiam definir melhor do que eu próprio…!

O conteúdo rubro se repetia em um total de dez amostras, estáticas à passagem do tempo. O estado de organização dos documentos apontava movimentação recente, fato logo confirmado no próximo argumento.

— Sinais de violência e combate foram encontrados na quadra de estrutura condenada da escola e junto disso, uma copiosa quantidade de sangue, totalizando quase quatro litros… Até então é uma história comum, mesmo na ausência de qualquer corpo, não é mesmo?

Ambos conheciam tal detalhe da investigação e por isso, decidiram não indagar.

— Vocês são tão sem graça, hein? Nunca fazem as perguntas “não-importantes”... — suspirou. — Fato é, isso se tratar de sangue é tudo o que sabemos.

Gordon, em específico, compreendeu o significado.

— Investigou em todas as bases de dados? Cobriu todos os sistemas de identificação? — As perguntas soaram agressivas. — Não tem como ser possível existir alguém irrastreável!

— Antes fosse esse o problema, Agente. — O tom calmo de Pryce o fez ceder. — Como disse, “sangue” é tudo o que sabemos sobre isso.

— Significa que…

— Nossa tecnologia de ponta não foi capaz de determinar a origem genética específica. Sequer sabemos se é humano. As proteínas nessas hemácias são diferentes de qualquer coisa que nossos sistemas já tenham analisado.

A temperatura percebida da sala caiu em vários graus dentro desse segundo.

— E se acham isso mórbido, sinto informar que tenho péssimas notícias…

A parede mais distante mostrava nove gavetas para cadáveres. Trêmulos pela primeira vez, os dedos do médico entrelaçaram o puxador da terceira, abrindo com vigor exagerado, motivado por medo.

— Uma vez que as chamas foram controladas, uma equipe adentrou no espaço e dentre as cinzas e focos residuais de tantos livros destruídos, eles encontraram… Pela primeira vez, nós encontramos…

Fumaça gélida fugiu, volumosa, do grande compartimento metálico e a novidade atraiu ao par de falsos investigadores.

— Encontramos… um de verdade… Um super-humano...!

O cadáver, imóvel, tinha pouco que o definisse como “humano”, ausente da maior parte da pele e demais tecidos, reduzido a uma múmia ígnea.

— Tecido muscular diferenciado a um nível químico, de modo a favorecer o máximo de liberação de força… Ossos hipermineralizados, maciços como barras de ferro… Hemácias com extrema afinidade ao oxigênio e o DNA mais maluco que já vi…

Por mais que as palavras a fugirem da boca demonstrassem empolgação, no rosto do vivido legista lia-se nada além de pânico.

— Doutor Pryce… — Melissa, antes a ouvinte, partiu os lábios e questionou, enfim. — Por que… está afogado em nitrogênio líquido?

— Ah, isso…?

O aspecto assombrado nas órbitas do doutor na menção das palavras seguintes seria impossível de esquecer.

— Porque continua vivo, Melissa.



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