Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne

Revisão: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 103: A Nova Fam´ília da Cidade

“A visão deles de conveniência nunca deixa de me intrigar, nos colocando como um casal em busca da residência perfeita para começar uma família…”

A mulher de longos e ondulados fios negros riu pelo canto da boca. De olho no espelho, aplicou alguns pontos de protetor solar no semblante pálido, antes de tomar o punhado de chaves sobre a mesa de cabeceira.

“Bem, ao menos tiveram a decência de arrumar um canto com dois quartos, mesmo que eu tenha ficado com o das crianças… Honestamente, quem acharia que eu estaria me casando com um cara dez anos mais velho?!”

Pegou a carteira de couro preto e abriu a porta; vindos lá de baixo, sons característicos animavam a vida no imovél recém-adquirido.

— Lucia, Louise, ouçam bem…! Papai vai ter que ficar fora por alguns dias, então obedeçam bem a mãe de vocês…!

“Hehe… Espero que ele não tenha esquecido das camadas de criptografia.”

Fez questão de deixar os passos altos, para alertá-lo de sua chegada; não que ela se importasse com o contato de seu colega com a família, mas os dois logo teriam trabalho importante a fazer.

“E é melhor que a gente não fique se atrasando por causa disso.”

Ao se tratar de uma missão tão longa e problemática, qualquer segundo a menos simbolizava a perspectiva de voltar mais cedo e atirar as pernas no sofá.

— Amo vocês, minhas princesas! E não se preocupem, eu apareço na escola na segunda que vem…! Mas o papai agora tem que trabalhar, então, se cuidem e, principalmente, cuidem bem da mãe de vocês! Nada de dar trabalho…!

Ela não pôde ouvir a resposta, abafada e resumida ao ouvidos do colega pelo headset, porém a mente logo cogitou algo fofo e de aquecer o coração.

Se de algo sabia, era que o amor entre os membros daquela família venceria qualquer catástrofe global.

— Hey, bom dia.

O primeiro passo na sala de estar veio pouco depois do choque das partes do laptop. O relógio digital ao lado da televisão marcava 6:29 AM, o começo de um novo dia.

Ele demonstrou óbvia animação em vê-la, mesmo sob o semblante cansado. Ao lado, a xícara de café, já fria, apontava ter acordado muito antes.

— Oh, olá, minha belíssima esposa! Você é mesmo o sol do meu dia…!

O sarcasmo humorado não durou um segundo inteiro, rasgado como papel pelo sorriso maroto do agente, capaz de contaminá-la com sua graça.

Houveram poucos risos entre os dois, embora mais que o suficiente para alegrar a carga pesada de lidar com tamanha responsabilidade.

— Que história eles criaram…! — Ela sorriu, levantando os braços. — No dia em que eu me casar contigo, esse nosso mundo acaba de vez!

— Eu quem o diga…! — confirmou, levantando a própria xícara, antes de um gole. — Podemos falar sobre o que quisermos aqui dentro. Eles criptografaram todas as conexões e a casa tá cheia de bloqueadores de sinal.

— Isso explica o motivo de quase nada funcionar como deveria aqui dentro… Às vezes, acaba sendo um pouquinho inconveniente.

Preparou para si uma porção do amargo estimulante diário e não hesitou em visualizar seu lugar ao lado dele. A pequena mesa da sala de estar continha todas as informações requisitadas há dois dias e queria se afogar nelas.

— Tem bolo de aniversário dentro da geladeira. Vai precisar comer alguma coisa se quiser ficar de pé até a hora do almoço.

— Comprou em algum lugar? Até onde sabemos, pode estar envenenado ou ter uma micro escuta entre os ingredientes… Quem sabe um vírus geneticamente modificado, ou até…

— Para alguém que afirmou não gostar de brincadeirinhas durante o trabalho e estar sempre  disposta a manter uma postura séria… Suas gracinhas imprevisíveis nunca deixam de me surpreender, Melissa.

Escutar o próprio nome de nascença cravou um riso debochado no canto direito dos lábios rubros de Melissa.

— Não ache que sabe tanto sobre mim só por causa dos anos trabalhando juntos, Gordon — rebateu na mesma moeda, enfática. — E até onde nós sabemos, ninguém é confiável demais. Não é isso que o nosso ramo de trabalho preconiza?

— Foi a minha esposa que fez aquele bolo — falou com orgulho, organizando um pequeno punhado dos papéis. — Minha linda, amada e altamente talentosa esposa fez algo incrível e você não tem o direito de não provar!

— Sério? Porque as estatísticas provam que ela pode estar tentando me matar, julgando o quanto sei… Afinal, qual mulher ficaria confortável, ciente de que o marido agora “tem uma família” com uma beldade dez anos mais nova?

A elevação de sobrancelha completou a cartada final, contudo, quando julgou ter vencido a batalha, a chegada do novo arsenal mostrou que a guerra estaria longe de acabar.

— Durante todos esses anos, eu te considerei como uma filha, Melissa… — começou, soando progressivamente desapontado. — Uma filha altamente problemática e pela qual eu, às vezes, questiono se ainda carrego alguma fagulha de orgulho.

Os detalhes subjacentes de tal argumento a levaram a estremecer por completo.

— Dito isso, eu não sei se deveria continuar com o meu plano inicial de guiar as coisas rumo à sua promoção e…

— O bolo… — O cortou. — … Em que parte da geladeira você deixou o bolo…?

A rapidez na mudança de opinião não soou como novidade.

— Primeiro compartimento — apontou para a entrada da cozinha. — Vai encontrar assim que abrir e, antes mesmo que pergunte, não é rico em proteína.

— Certo…

Amuada, Melissa deixou a cadeira, assumindo aspecto pensativo, rumo à cozinha e por conhecê-la tão bem, Gordon entendia o que se passava por baixo da cabeleira.

“Ah, essa garota…”

Gordon detinha plena ciência dos desejos de Melissa em termos de crescimento profissional e enquanto tocar em um tópico tão sutil não tenha sido tão justo, o relembrou da grande questão envolvendo a agente em treinamento.

“Ela tem o talento, mas precisa evoluir um bocado.”

Nunca no longo curso de seus 38 anos, se deparou com outro indivíduo tão talentoso quanto ela.

Melissa fazia pouco trabalho dos mais perigosos criminosos dos EUA, combatia iniciativas caóticas com os próprios punhos, alvejava snipers com disparos de uma simples pistola e abatia helicópteros com uma bolsa cheia de granadas…

“Eu não posso deixar isso fazer a cabeça dela… Pode até ser grande coisa, mas talento prático inato em bater e chutar não vai carregá-la para todo o sempre.”

Experiente no ofício, tinha plena noção de quando o excesso de capacidade deixava de ser tão grande benção, para evoluir em um problema maior ainda.

“Fazer o quê? Eu aceitei essa batata quente de bom grado.”

De volta, agora com o bolo confeitado em vários tons de rosa em mãos, brilhando de tanto açúcar, a mulher retomou o lugar, os permitindo, enfim, analisar as provas.

— Vamos começar do início, seja lá o que isso signifique para esse caso.

O agente musculoso espalhou os arquivos previamente organizados pela superfície da mesa, resumindo ao nada um trabalho tão meticuloso.

Aqui, várias fotografias, dados e dizeres se impunham, indecifráveis aos leigos, embora, na língua mais natural para os dois detentores de tantos segredos.

— O ataque se iniciou ao meio-dia em ponto e nem um segundo depois. Ao preciso horário, a escola foi invadida por uma colossal onda de insetos, alados e terrestres.

Mais próximo de Melissa, um conjunto de dados saltou aos olhos, expressando a queda significativa e abrupta nas populações de insetos do Condado de Flathead, ao curso de poucos dias.

Manchetes dos jornais falam continuamente sobre perdas nas produções de mel e no impacto da perda de tantas criaturas para o equilíbrio da fauna local, sentido em diversas esferas.

— Milhões de seres toleraram suas naturezas e se uniram para invadir uma escola sem qualquer atrativo. Lá dentro, causaram pânico, atacando humanos de forma proposital e se colocando como atores diretos naquela calamidade que vimos.

— Como se fosse guiados por uma força maior… — A pálida completou. — Um subterfúgio, para mascarar algo maior.

— Precisamente — assentiu com o olhar. — Foi uma manobra para confundir as pessoas, impedir a entrada das autoridades na edificação e, principalmente…

— Impedir a saída de quem sofresse com isso, certo?

A confirmação, em forma de amargo sorriso, vibrou as energias da sala.

— Mantenha essa atitude e eu logo terei que ser obrigado a me retratar pelas coisas ditas mais cedo.

Sem perder tempo, dirigiu a atenção dela ao outro lado da mesa, onde um conjunto de fotografias e o registro pessoal de um adolescente foram dispostos.

— Esse é…

— É o nosso guitarrista, das filmagens que me mostrou. Recuperamos todos os dados acerca dele. Para começar, o nome do rapaz é Jacob Egan.

Curiosa, Melissa folheou as informações adquiridas pelo Departamento de Inteligência, tomando os dados devagar, em busca de algo que o destacasse de um adolescente comum.

No fim, encontrou zero detalhes, tal qual o esperado. Um relacionamento familiar levemente conturbado, passagens pela polícia por pequenos delitos, sempre liberado com um aviso pelo pai.

Até onde os arquivos liam, isento de quaisquer suspeitas.

— Quer dizer que estamos mais próximos de achar do que nunca!

A empolgação da agente em treinamento não podia ser contida e o motivo para tal residia no potencial de resolução de uma difícil questão, até o momento, mantida nas águas turvas da teoria.

— Estamos um passo mais próximos de colocar as mãos no fator por trás de todo esse estrago!

A felicidade era justificável. Por quase dois anos, a fonte dos crimes bizarros tem sido rastreada, sem sucesso. Diante disso, investigar um local cronicamente assolado os aproximava perigosamente das conclusões desejadas.

— E essa não é a melhor parte, Melissa — apontando para cima, Gordon se colocou. — Fomos oficialmente chamados para saber dos detalhes diretos do trabalho de necropsia e análise da cena.

— Quer dizer que não vamos ter que esperar um relatório?!

A batida animada das duas mãos abertas contra a madeira mandou partes das evidências pelos ares, propagando um profundo eco pelo andar inferior.

— … Foi mal…

— Sem problemas! Pensei em fazer essa mesma coisa, mas resolvi deixar para lá… Combina mais com você, afinal de contas.

De imediato, Gordon deixou a mesa e guardou o laptop em um compartimento secreto na mobília.

— Lembra do Doutor Pryce?

— Aquele que descobriu como assassinaram o embaixador, lá em Amsterdã? Aquela coisa das nano-toxinas num shot de whisky que ele tomou treze dias antes?

— Ele mesmo! — Com um movimento súbito, esticou os joelhos. — Parece que ele veio de Washington ontem à tarde e do jeito que aquele cara é uma máquina de destrinchar cadáveres, receber o e-mail quase agora não é novidade… Por sinal, tem as chaves do carro aí?

— Sem dúvidas, meu parceiro! — Animada, Melissa balançou o conjunto metálico. — Quanto antes a gente acabar…

— … Mais cedo a gente recebe uma pilha de papelada para ser concluída até o dia seguinte… É assim que as coisas são, né?

O par de agentes deixou a porta de entrada, cumprimentados pela brisa do quase-verão.

— Ao menos hoje o céu não tá tão coberto assim… — Gordon disse, soando um tanto bobo.

— Heh. Sua tentativa de positividade iluminou o meu dia… — Melissa ajoelhou, catando do chão uma manchete de jornal. — E se isso não é ser tendencioso...

“Terroristas? Alienígenas? Supervilões? Qual a misteriosa causa por trás dos ataques em Elderlog, MT?”, se lia na página principal, em caixa alta acima de uma imagem da abalada estrutura da escola.

— Ao menos não dá para dizer que o pessoal das Mídias não tá tentando…! Habituar a população à ideia de possíveis superpoderes logo de cara é uma boa, mesmo que desse jeito…

Na opinião dele, o problema no Departamento de Mídia vinha do excesso de criatividade.

— De qualquer forma… — dobrou o jornal, guardando-o por dentro do terno. — Eles estão fazendo o que precisam e tá na nossa hora de mostrar serviço.

O esportivo preto os aguardava justo em frente, estacionado com minutos de antecedência por outra equipe. Com o pressionar do botão, as portas destravaram e logo os dois tomaram seus assentos.

— O Pryce é o dono dos detalhes, mas ele só vai repassar quando chegarmos. — Sem aviso prévio, lançou as chaves para a colega. — Hoje, você dirige.

Melissa sequer questionou o comando, ligando o potente veículo, cujo som do motor soou ao longe.

— Que caridoso da sua parte! Qual a causa disso? Culpa da catarata ou é outra coisa da idade?

— Essa piada tá ficando velha e não é por pouco.

— Disse a relíquia da firma…!

— São quatro direitas, pega a 93 e duas esquerdas depois do posto de combustível. É lá que fica o hospital.

— Fica tranquilo que tem uma novidade tecnológica chamada GPS, vovô, então senta aí e aproveita a viagem!

A jovem agente pisou com força no acelerador, gerando um selvagem solavanco que lançou o carro na pequena, porém vazia, estrada asfáltica.



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