Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 102: Sob o Olhar da Mídia
“Mesmo para os padrões deles, isso é atípico.”
O carro preto traçou caminho ao foco da imensa multidão, quase incontível pela pequena força policial em serviço no local de tamanha tragédia criminosa.
“Atípico demais. Até agora, nenhuma movimentação de tamanha proporção foi feita.”
Pais nervosos discutiam entre si e com os agentes, em busca de alguma brecha que os possibilitasse correr ao encontro de seus filhos, parados para o bem de seus próprios corações.
Macas com massas cobertas em branco saíam aos montes, cortando o grande caminho de concreto, até os largos portões e levados a carros, tão alvos quanto, indo e voltando para buscar mais.
“O que ocorreu aqui hoje vai ser uma marca impossível de apagar.”
O homem solitário estacionou o veículo na vizinhança, selecionando com brevidade o único documento do qual precisaria e, antes de deixar a condução, deu uma última olhada para o refletor.
“As coisas que esse trabalho reserva…”
Arrumou os cabelos crespos e escuros, organizados em um longo conjunto de dreadlocks e os óculos de sol, companheiros de tantas viagens, caíram como luvas sobre o pontudo e rombo nariz.
“... São uma realidade que só os mais loucos são capazes de suportar.”
Os dedos, longos e negros, arrumaram as dobras em excesso das vestes formais e a postura confiante assumiu, guiando-o ao epicentro da comoção, ciente de se tratar apenas de mais um dia de trabalho.
— Agente Walker, FBI — mostrou o distintivo, sério a ponto de parecer uma pedra. — Recebemos um chamado acerca de um massacre escolar nessa vizinhança, embora, pelo que possa ver…
Instigar a curiosidade compunha parte do pacote; pessoas são sempre mais solícitas a fornecer informações quando postas em posição de exibidor.
— Ah, santo Deus…! O FBI enfim chegou…!
Somente um integrante da força policial local veio ao encontro do homem, cheio de pressa e nervosismo. Vacilante, o policial titubeava ao menor dos gestos, desmoralizado.
Foi o que ele conseguiu interpretar ao primeiro contato, ao menos.
— Sinto que não posso te desejar uma boa tarde, agente… — olhando para baixo, Robson Sulek, como escrito no uniforme, exalava horror. — Ainda estamos tentando apurar o que ocorreu… Foi tudo muito repentino e o evento acabou de terminar, então…
— Respire, policial Sulek. Não há necessidade de me contar com detalhes, dado que eu mesmo irei checar, então me informe apenas das coisas que sabe e com as palavras que lhe convém usar no momento.
A grande e pesada mão do agente Walker o reconfortou, tomando o desolado homem de surpresa ao ter o ombro tocado.
— Pude ver que muitas vítimas foram removidas… São fatalidades, não são?
Próximo de tamanha pessoa, Robson sentiu-se pequeno em corpo e alma, já que, por si só, cada perna daquele homem gigantesco deveria ter ao menos um terço do peso dele.
— São… — olhou para o chão, em profunda tristeza. — São algumas das vítimas, embora ainda hajam várias outras lá dentro… Muitas nem vão poder ser retiradas da maneira convencional.
Mesmo tão ameaçador em aparência, nada além do mais profundo conforto vinha de receber tal toque e esse fator o muniu da coragem para falar.
— Sobreviventes estão traumatizados, passando por delírios e outros tipos de sintomas da exposição a tamanho estresse. Não temos certeza de nada, mas…
— Disse que estão passando por delírios? — O tópico de interesse fez o agente franzir a pequena barba.
— Estão falando de coisas como gritos altos, tremores, fogo e gente diferente discutindo… São relatos muito confusos e incertos… Não sei direito como informar, sinto muito.
— Isso já ajuda bastante. Obrigado pela disponibilidade. Irei investigar mais profundamente por mim mesmo, se me permite.
— Prontamente, agente Walker… e… obrigado por antes…
Do modo mais sincero, o gigante musculoso sorriu.
— Novamente, não há com o que se preocupar! — acenou em despedida, antes de tomar os primeiros passos. — Continue com o bom trabalho, policial!
Por um lado satisfeito, acompanhou com o olhar os poucos segundos do jovem profissional da segurança ao rumo do posto designado, um pouco mais motivado e empenhado do que antes.
“Isso é bom.”
Embora, por outro, não podia calar a mente para os possíveis horrores ocorridos naquela escola há pouco mais de duas horas.
“Já isso aqui, não” imaginou, voltando atenção para o chão repleto de insetos mortos. “Isso deve ter arruinado os meus sapatos.”
Quando notícias de uma série de eventos tão bizarra chegou ao prédio central, as equipes não perderam tempo em encaminhá-los, afinal, não é todo dia que uma nuvem massiva de insetos ocorre no mesmo local e hora que um incêndio criminoso.
“Se não fosse por isso, poderíamos até cogitar ter sido acidental, mas o mundo já não funciona assim faz um bom tempo.”
Os bombeiros realizavam o trabalho final de rescaldo, utilizando uma janela para passar as grandes mangueiras. Felizmente, danos estruturais maiores não ocorreram, por mais que houvesse uma certeza.
“Essa escola vai se tornar propriedade estigmatizada e logo deve ser demolida. Eu me pergunto o que vai ser construído depois da demolição, ou se alguém vai ser corajoso de aproveitar a estrutura.”
Resquícios de fumaça persistiam diante do trabalho incessante, porém nada o impediria de descobrir a verdade e chamá-la de “terrível” com a própria língua.
“Além disso…”
Os primeiros passos ecoaram fundos, quase infinitos, entre o peso do avassalador odor de sangue e carne, conhecido a ponto de se fazer distinguível e gritante, mesmo entre a fumaça.
Não demorou nada para que a encontrasse ali, fuçando na pilha de sangue e massa encefálica.
— Ei…! — sorriu, tirando as mãos dos bolsos. — Chegou assim tão cedo? Tive a impressão de que estaria aqui, mas… Isso é um recorde e tanto!
Os dois trocaram fitadas breves, mas o silêncio agudo esticou o pouco tempo, dolorosamente quebrado à reação da mulher, que se ergueu sem cerimônia, fazendo-se igual.
— Também imaginei que você chegaria, embora não pensei que fosse se atrasar tanto — mencionou de modo um tanto frio. — Não fique parado aí. Não foi para isso que fomos chamados.
— Hahahaha… Por que esse cenário nunca muda…?
Não importando quantas missões ou trabalhos fizessem juntos, tentar aproximação casual jamais deixava de ser uma tarefa tão complexa.
— Então, o que descobriu sobre o caso, agente…?
A mulher de fios negros e vista profunda puxou as credenciais do bolso da calça, mostrando-as sem qualquer orgulho. Na foto falsa, os dizeres liam:
— Bauer — anunciou, quase deixando transparecer o divertimento com a situação. — Agente Bauer. Até o momento, nada que tenhamos o potencial de desvendar com clareza.
Interagir com ela quase sempre passava a impressão de um jogo cruel e unilateral.
— Entendo…! Mas nada que o FBI não consiga resolver, certo? Afinal, nós somos do FBI, não é mesmo?
As brincadeiras aconteciam de acordo com as regras dela e desobedecê-las ou não as levar em consideração resultaria em só mais um choque gelado das profundas turmalinas negras, estampando o cenho pálido.
O brilhante batom vermelho se destacava na escuridão, dando graça à secura de seus gestos.
— Se somos apenas o FBI, me pergunto porque estamos aqui, agente Walker.
Bauer guardou entre as vestes alguns traços de provas, partes de pessoas, tratadas como meros objetos. Tal é o efeito da familiaridade diária com o sangue.
— Isso mesmo. Somos apenas o FBI.
As vozes não iam longe, distorcidas em excesso pelo eco baixo. Em meio às sombras, as duas figuras se reconheceram e um conhecido termo tomou os ares macabros do espaço arruinado.
— Evento Sigma, o mais próximo de nós em termos de chance de intervenção. A pouca evidência aponta que essa cidade é o próximo ponto de foco… Me faz perguntar o que, exatamente, eles querem ganhar…
A ausência de agentes mais qualificados demandou o abandono imediato de seus postos prévios e a dor de entregar uma missão importante às mãos de pessoas menos qualificadas a inquietava.
— Chamando atenção, criando evidência para si mesmos… Estão se tornando cada vez mais corajosos e descuidados, cientes de nossa incapacidade de agir prontamente.
Ela e a organização da qual fazem parte estiveram registrando cada um dos casos e o padrão se tornou mais claro com a chegada dos últimos meses.
— Com as ações ficando mais ousadas, há de se supor que logo teremos nossas mãos neles.
— Isso é precisamente o que eles querem que você pense. Não seja boba… já trabalha comigo a tanto tempo… Confio em sua capacidade de ponderar melhor as coisas, agente Bauer.
O mar rubro ondulava a cada palavra dita e o odor do sofrimento, insuportável a quaisquer outros, sequer arranhava a alma enrijecida do homem de grande porte.
— Estive pensando nessa mesma questão antes de pisar aqui… Acha mesmo que estamos mais próximos de pegá-los? Ou será que tudo isso não passa de um plano para acabar ferrando a operação toda no final? Para mim, é a segunda alternativa.
A moça não desviou o foco da figura imponente de seu superior imediato e grande amigo e ele nem mesmo precisou começar, para que as falhas em seu raciocínio começassem a se revelar.
— Então está dizendo que eles se sentem seguros? — questionou. — E por disporem dessa segurança, atacam com tudo o que possuem?
— Perto, mas não o bastante. Não acho que seja tão fundamental. Sejam quem for, não são estúpidos e a manobra aqui vista foi muito bem calculada.
Desde o início dos bizarros incidentes pelo território dos EUA, a explicação verdadeira jamais chegou aos ouvidos do público e, para o bem da operação, dessa forma deveria se manter.
— Como acha que vamos cobrir um massacre escolar, somado a uma invasão de insetos e um pulso eletromagnético? As pessoas vão exigir explicações completas e plausíveis e, logo, vamos perder essa pequena janela de fornecê-las sem comprometer detalhes importantes. Daqui para frente, é um trabalho de enxugar gelo.
— Entendo… Pensar assim foi mesmo estúpido. A sua linha faz muito mais sentido.
O breve silêncio foi cortado pelos pesados passos dos sapatos sociais de Walker e em meio aos sons, Bauer amadureceu o inevitável questionamento.
— Então isso significa que o risco de quebra do status quo fica mais próximo do que nunca… Heh… Basicamente, você está me contando que nós falhamos em tudo. Que decepção…
— Eu não seria tão extremo, mas também não é um erro completo afirmar desse jeito — rebateu ele, ao coçar a barba. — O detalhe agora é focarmos no quanto podemos descobrir e de quais formas aliviar o impacto futuro da revelação ao mundo.
A bizarra segurança de tal fala não teve por intenção trazer solidez; o mundo caminhava em uma corda cada vez mais fina e pensar nas repercussões dos eventos diários já não evocava esperança.
— Mas, saindo um pouco disso e partindo para o agora… Alguma coisa sobre os andares de cima? Soube que tiveram dificuldades de subir para avaliar os danos.
O fato de ele sequer tentar mostrar preocupações com coisas impossíveis de mudar posava como um talento invejável.
— Eu conversei com alguns dos oficiais e socorristas… Aparentemente, os danos estruturais nos pisos acima são significativos para a queda eventual da construção. São rachaduras grandes e alguns pedaços do chão estão faltando, embora o padrão seja bem bizarro.
Tirou do bolso um pequeno dispositivo, semelhante a um tablet dobrável. Ao acionar, o objeto exigiu as digitais e algumas credenciais e, em poucos segundos, um sinal suspeito surgiu na pequena tela.
[Dispostivo hackeado com sucesso]
— Os estudantes reportaram sons de gritos anormalmente altos, capazes de quebrar as vidraças e fazerem o chão tremer… Por hora, é bom reforçarmos a proposição de ser um surto coletivo.
Agilmente, a mulher deslizou por várias fotos de família e alguns memes do celular de um dos policiais que a acompanhou previamente, quebrando as barreiras da frágil privacidade digital com a destreza de um artista.
— Aqui, são essas crateras. Definitivamente não foram causadas por bombas e nenhuma arma ou ferramenta faria uma destruição tão efetiva e restrita ao chão.
O sinal mudou, sincronizando com outra série de dispositivos e ao invés de exibir fotografias, o layout se alterou para uma série de gravações.
— Essa é a mais interessante. Não ficou tão corrompida quanto as outras. Infelizmente, não temos áudio, mas dá para pegar detalhes bons.
Os minutos da filmagem mostraram o início do massacre, além do exato espaço ocupado por ambos.
— Dois minutos e sete segundos. É aqui que o sujeito aparece.
Os estudantes, desesperados pela chegada da nuvem de insetos, caem de joelhos ao mesmo tempo que a filmagem apresenta problemas, e em meio aos fantasmas e falhas na tela, uma forma humanóide pouco visível se destaca.
E o filme corta ao preto absoluto, ao preciso toque dos dedos nas cordas da guitarra elétrica.
— Foi som — concluiu, retornando a filmagem para um frame antes do “blackout”. — Essa destruição foi causada por massas sonoras altamente focadas… Sabe quantos decibéis uma bomba gera ao explodir?
— Se estivermos falando dos tipos mais básicos, em torno de 150 decibéis.
— Isso. Sons acima de 120 decibéis causam dores agudas nos ouvidos e se passar de 185, a pressão pode estourar os seus pulmões.
— … Então só Deus sabe o quanto seria necessário para espatifar um chão de concreto… — coçou a barba, assombrado com a informação.
— A maioria desses estudantes morreu por trauma explosivo na região do crânio. Adivinhe o significado disso. Uma garota foi encontrada viva no terceiro andar… com as articulações pulverizadas, comparável a terem passado por uma prensa hidráulica. Ela nunca mais vai mover o corpo.
De repente, o homem sentiu como se anos de profissão houvessem falhado em prepará-lo para tamanho problema.
Diante do peso da questão, a única ação restante veio na forma de um pesado entreolhar.
— Antes de você vir… qual era a missão lá em Vermont? — tentando mudar de tópico, o agente jogou a primeira carta tirada da manga.
— O assassinato de uma família de quatro pessoas. A casa apresentava sinais de arrombamento, embora ninguém reporta ter visto algo. Dentro da casa, os corpos foram empilhados na cozinha, onde tem um monte de desenhos sem sentido pelo lugar todo, feitos com o sangue das vítimas.
— Ok, esse caso aqui é muito mais importante. Deixe o pessoal de Vermont cuidar disso e nós vamos atuar aqui.
— Foi o que eu pensei e, além disso, essa cidade tem alguns assuntos a mais a serem tratados. A organização já tem umas pistas e quer que eu comece por elas. Um grupo de apoio deve chegar para ajudar, mas se tivermos um Código Preto…
— Nem mesmo hesite em chamar ajuda, entendeu? — A interrompeu, a vendo de canto. — Sei que gosta de resolver as coisas sozinha, mas essa não é uma série padrão de crimes.
— Não fale como se eu não soubesse disso. Posso ser orgulhosa, mas nunca descuidei e, além disso, eu não vou estar sozinha… — Ágil, mostrou a tela com uma mensagem escrita.
— O que…? — curioso, apertou os olhos, com foco total nas pequenas letras.
Em condições mais ordinárias, chamaria aquilo de um enorme absurdo, afinal, mandar dois agentes do mais alto nível para o mesmo local significa dividir o potencial de cobertura e deixar a nação mais desprotegida.
— Estamos juntos nessa, Agente Walker — zombou o nome falso escolhido para a missão. — Essa cidade precisa de nós e não do FBI.
— Que coisa… — riu, levando a mão ao rosto. — Juntos outra vez nessa coisa de louco…!
No palco de tão avassaladora tragédia, dois novos personagens surgem; presenças que, por pura vontade, escolhem andar pelas trevas e ceder a luz aos outros.
— Isso me lembra aquele período em New York, quando tentaram matar o presidente… Hah! Aquilo vai ser coisa pequena depois do que isso aqui nos promete…!
Guerreiros com métodos nada ortodoxos, mas com o maior dos objetivos em mente: proteger a soberania da nação e garantir a segurança máxima de seus residentes.
— Deveria ter pensado nisso antes de assumir esse ramo — disse ela, sorrindo de canto. — Enfim, as operações começam em dois dias. A corporação já reservou as vagas de hotel e…
— Dois dias? Ah, ainda bem que ao menos eles foram não-cruéis o bastante, dessa vez…!
Determinação cobriu corpo e alma do veterano e o estado de compromisso máximo varreu a agonia da tragédia, relembrando-o do importante compromisso a ser cumprido.
— Amanhã é o aniversário da minha filha mais velha e ela precisa do pai. Sem chance de eu perder um acontecimento tão importante…!
Em face à decisão do colega, a morena cruzou os braços, se esforçando para mascarar a dor de cabeça vinda de antecipar o tamanho da papelada ao final de tão hercúleo esforço.
"Trabalhar para a CIA é um porre novo a cada dia...!" pensou ele, acompanhando a colega rumo ao andar superior.