Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 180: Por Trás dos Holofotes
— Alô?
— Ah, oi…! Então você respondeu! Fiquei com medo de ter pegado o número errado! É bom saber que peguei o contato certo, Abigail!
Entre a entrega e recepção da mensagem falada, houve um pequeno atraso.
— Uh… Essa voz…
— Sou eu, Abigail! A Rebecca, da hora do almoço! A mesma que tem aulas de História, Língua Inglesa e Química com você! — A menina riu ao fim da proclamação. — Não se lembra de mim? Assim você me deixa até um pouquinho triste!
— Ah…! — Do outro lado da linha, a faltosa na escola soou surpresa. — Rebecca…?! Mas…!
— Eu só tô chamando para saber se tá tudo bem, depois desse fim de semana e… bem… depois do que aconteceu com a sua cidade… — O tom sombrio se misturou entre os demais sons de conversas locais. — E então, como foram esses dias para você? Já não aparece há um tempo… Eu fiquei preocupada, sabia?!
— Uhh…! Como conseguiu o meu número?!
— Qual o problema? Não me queria te ouvir falando com você? — Por um momento, fingiu estar desapontada. — … brincadeirinha! Eu sei que tem sido difícil para você. Peguei esse número da Carrie, sabe? A que senta do seu lado.
— … Uhm… Comigo tá tudo bem, sim! Ahahaha! — parou um pouco após o riso. — A minha casa não ficou afetada nem nada assim, então tá tudo certo! … Você está no pátio agora? Parece barulhento…
— Ah, desculpe, desculpe! Prefere que eu vá para um lugar mais silencioso?
— Não, não…! Tá tudo bem assim…! É só que… eu não esperei receber uma ligação sua…! Quer dizer, eu…!
— Não precisa se explicar! — sorriu largamente, mesmo que ela não pudesse vê-la. — É que nem eu disse: sei que tá sendo um processo para você, então o que acha de eu te ligar mais tarde?
— … Mais tarde…? — perguntou a arroxeada, hesitante. — Uuuh…!
— Isso! Mais tarde! — confirmou, enérgica. — Tem muitas coisas que eu tenho para te contar sobre essa semana passada…! E eu ainda quero descobrir qual é a tintura que você usa no cabelo! Parece ser uma marca muito boa!
Os demais estudantes no refeitório não podiam impedir senão admirá-la falar tão alto e com tamanha liberdade, em meio aos imensos barulho e desordem.
— Certo? — questionou-a, mais em antecipação à resposta positiva antes mesmo de recebê-la. — Também quero que me conte como foi tudo! Ah, e antes de ir, quando planeja voltar para a escola? Se já tiver alguma meta para isso…
— Talvez em alguns dias…? Na verdade, eu não sei bem… Digo, eu queria deixar aquela fama morrer também, e…
— Ah, Abigail… Me escuta bem, tá?
Se distanciou um pouco do tumulto de alunos almoçando e recostou-se contra a parede do corredor, usando de si própria como obstáculo para abafar parte do barulho.
Rebecca então trouxe o celular para o mais próximo possível da boca e deixou-se falar do jeito mais tranquilo e assegurador que pôde fornecer.
— Eu não vou deixar eles te incomodarem por causa daquilo — afirmou, séria. — Se vierem mexer com você, eu vou ficar no caminho e se tiver alguém que esteja te importunando, então pode sempre me contar.
As palavras dóceis, embora igualmente pesadas, criaram profundo silêncio advindo do outro lado da linha.
— Lembra? Eu disse que ia te ajudar, e eu vou! Nós estamos juntas nessa, okay? Pode contar comigo para o que for!
Se alguém mais escutasse tais palavras — em principal se fosse um dos garotos —, corações acabariam derretidos como manteiga. De Abigail, contudo, apenas o nada perdurou a existir.
— Okay? — perguntou, cheia de otimismo.
O lindo sorriso servia de “cereja do bolo”, decorando uma forma que ninguém podia ver no momento, enviada em forma de som para o vazio do lado de lá.
— Ok… — Enfim, respondeu.
— Ótimo! — A ruiva comemorou a vitória. — Vou parar de te incomodar agora, okay? Deve estar cansada e cheia de problemas… Mas olha só! O que eu falei não é da boca para fora, tá? Se precisar desabafar ou quiser conversar, pode me chamar!
— Entendi… Uhm… Rebecca, eu realmente tenho que ir… coisas para cuidar aqui em casa.
— … E nada de errado com isso! Tchau, tchau, Abigail!
— … Tchau, Rebecca…
A linha tornou-se muda, ligação cortada pelo outro lado. Animada com os planos para depois, guardou o telefone no bolso dos jeans e saltitou de felicidade.
“Eu consegui o número certo…!” Felizmente, não muitas pessoas tiveram a chance de presenciar um momento tão embaraçoso. — Oh, a hora…!
Faltavam apenas pouco mais de dez minutos para o fim do intervalo de almoço e alguns dos estudantes já se dirigiam de volta às suas salas…
… e, em um dos corredores do andar de cima, um par de rapazes conversava um assunto peculiar.
— … Cara, queria eu ter coragem de falar com ela…! Acha que eu tenho alguma chance?! — questionou o primeiro, ansioso pela avaliação. — Será que um perfume ajuda?
— Olha, eu sei que sou teu amigo, mas não tem a menor possibilidade! — desmentiu o segundo, em riso cínico. — Nem que você estivesse usando a colônia mais rara do mundo… e nem nascendo de novo!
E justo enquanto falavam dela, a própria apareceu.
— Oi, oi, todo mundo…! — cumprimentou o corredor inteiro, em sorridentes passos largos. — Gostei do cabelo, Jen! Combinou muito com você!
Assim como vários outros dos demais, não notá-la configurava um crime imperdoável.
— Me diz, cara… Ela não é um anjo…? — O primeiro não conseguia desviar o olhar.
— Total… Ela brilha tanto que quase me cega… — O segundo quase deixou-se babar.
A opinião era compartilhada em um senso quase geral e se houvesse pessoa que não apreciasse a radiante presença de Rebecca Campbell, talvez não houvesse salvação para tal alma amargurada.
— Aqui, deixa eu te ajudar com isso, Lucy! — pegou do chão um livro de biologia caído. — Esses livros são pesados, né?
— Ah…! Obrigada, Rebecca…!
— Não tem de quê! A gente se vê, Lucy!
A beleza dela pertencia a um estrato fora da realidade comum e atingível aos meros mortais; se “perfeição” fosse uma pessoa, seria ela.
— Ah, você faltou a aula passada, não foi, James? Fiquei sabendo que ficou doente…
— Ah…! — Com o coração quase saindo pela boca, o rapaz questionou a realidade da própria sorte. — Ah…! Uhm…! Rebecca…?!
— Pode copiar do meu caderno, tá? — piscou, dando-lhe um toque no ombro. — Se quiser bater fotos, pode também…!
— … Tá… Tá bom…! — James foi deixado para quase morrer, vermelho como uma pimenta.
Cabelos ruivos de um alaranjado potente, coesos como as ondas do mar… Olhos castanhos, da cor de mel, penetrantes e calorosos… Físico esbelto e atlético, um tanto alto e misto de força e delicadeza…
— E aí, Hope? Como tá o seu joelho depois da queda? Ainda dói muito?
— Oi, Rebecca…! Eh… Ele já não doi tanto assim, na verdade…! — A menina respondeu da forma como pôde.
— Que bom saber! Espero que melhore logo!
Mas não só de beleza se compunha sua luz, afinal, a pureza maior de um ser de luz existe em sua alma.
— Boa tarde, professor Jenkins!
— Oh, boa tarde, senhorita Campbell! Vejo que está bem animada para a aula de hoje!
Ela também tinha a melhor personalidade: um pacote completo de extroversão, carisma, empatia, doçura e protagonismo, além de grandes determinação e autenticidade.
— É só que hoje é um dia bom! — afirmou com categoria, tomando seu lugar na primeira fileira. — Tenho certeza que a aula vai ser do mesmo jeito!
— Ahahahaha! — riu o homem mais velho, contagiado pela animação. — Agora que mencionou, também sinto essa sua certeza, senhorita Campbell!
Ela nunca esquecia de ninguém, nem da presença mais oculta e ignorada da sala.
— Oi, Pete! — acenou, chamando o nome do rapaz no último assento. — Chegou cedo, como sempre! É um recorde novo!
— UH?!?! — O rapaz de óculos se desregulou, a ponto de quase derrubar o celular com o qual jogava por conta do pânico. — Eeeeeh…!
— Se você estiver de acordo, eu queria perguntar como eu passo do terceiro mundo de “Havi’s Ellisium” mais tarde! Não consigo passar daquele chefão do “portão de mármore”!
Muitos poderiam chamar de “atuação” ou considerar como uma mera tentativa de manipular os demais, mas, dentro do coração de cada um com o qual ela interagia, cada dia virava um “bom dia”.
— Ehh… Certo…! Eu… Eu te passo um tutorial…!
— Obrigada, Pete! Sério mesmo! Hehe!
Até em sua apresentação mais simplória, ela brilhava, e os outros não tinham como deixar de parar para percebê-la, sentada e quieta na cadeira.
— Ok, classe! Sentem-se! Hoje vamos dar início ao tópico sobre reações químicas orgânicas!
Uma cadeira vazia sobrava no meio da terceira fileira, mais atraente à atenção dela, comparada ao assunto, deixando-a perdida em um único pensamento.
“Espero que volte logo, Abigail…”
[...]
— Ah, qual é o problema, Hailey? Tem alguma coisa doendo? Algo no qual eu posso ajudar? Heh…! Talvez esse seu monte de banha, sua porca?
— AAAAACK…! — Perturbada pela intensa dor em pontada no estômago, a adolescente berrou.
O chute desferido ao centro da barriga a fez cuspir o ar dos pulmões. Paralisada pelo sofrimento da carne, a menina um pouco acima do peso prendeu os lábios.
Uma onda líquida sairia de seu estômago incomodado, então, se não pusesse o máximo de força e segurasse direito…
— Eu não tenho como saber se você não me contar! Vai, nós somos amigas! Eu preciso saber!
— BLUERGH…! — O segundo chute tornou impossível de controlar.
A poça amarelada misturava restos não-digeridos do almoço e raios de sangue, bem destacados em rubro; uma poça nojenta, azeda e malcheirosa.
Em consequência da falta de ar e das intensas contrações, não houve força para Hailey se levantar ou reagir.
— Oh, a sua barriguinha está dodoi, Hailey? Dói muito? — Ela riu, cheia de um sadismo invisível aos demais. — … Deixa eu te ajudar!
— …! — Àquela altura, já não havia ar para emitir barulho ao fim do terceiro ataque certeiro dos sapatos de ponta dura.
— Droga, não dá mesmo para se divertir com você, né?
Na garota em agonia interna só restava energia para olhar à frente, conforme uma linha mista de saliva e vômito escorria pelo canto da bochecha.
— Mas eu vou te ajudar, mesmo você não querendo! Não disse que iria? Não precisa se preocupar, Hailey! Eu sei direitinho qual o remédio para cuidar de um estômago ruim!
“Como um monstro como esse se esconde tão fácil na máscara de uma boa pessoa?”, consistiam os pensamentos da oprimida, incapaz de reagir.
Caso contasse, ninguém acreditaria nela; as pessoas — de colegas a professores — detinham de uma adoração quase sobrenatural pela loba em pele de cordeiro.
Eles a protegeriam das acusações, fariam a vítima assumir o papel da pessoa ruim e dissimulada, a chamariam de “invejosa” e diriam que tudo não passou de armação para condenar alguém inocente.
As frases até já soavam claras: “só quer chamar atenção”, “para de mentir”, “ela nunca faria isso”...
Conhecia como o sistema funciona e sabia ser assim. Sequer fazia sentido tentar contar ou buscar ajuda, pois qualquer um que a visse, de certo, mudaria de lado.
— Aqui! — mostrou-a um objeto, o qual não identificou a princípio. — Especialmente para você, Hailey!
A maioria dos estudantes já haveria de ter deixado a escola nesse horário e os poucos restantes estariam ocupados demais nas atividades extracurriculares para se incomodarem em olhar um canto isolado qualquer.
Ou seja, nem que houvesse alguém disposto a ajudar, essa pessoa não estaria aqui e agora.
“Alguém… por favor, me ajuda… por favor…” Mesmo ciente da verdade, continuava a suplicar.
O chão de terra, molhado pela chuva da manhã, cheirava a plantas podres e de tão próximo de seu rosto, deixava Hailey ter uma clara visão das formigas a trabalharem, das minhocas e, também, de uma colher de plástico.
— Coma — disse. — É para você! Vamos, coma!
A garota de fios negros e comuns não entendeu a princípio, afinal, iria comer “o quê”? Não tinha nada de comer ali e ela não parecia ter trazido algo.
— Vamos, Hailey! Pega a colher e come! Faz o que eu mandar e vai melhorar!
Pegou o objeto por puro reflexo, assustada pela mudança de humor no comando. Ainda incerta, alternou entre encarar o plástico e ela, até ser repreendida.
— A terra, sua estúpida! — apontou para o chão. — Come a terra!
A compreensão do contexto acertou-a como um carro em alta velocidade, arrancando-lhe a alma por um segundo ou dois.
— … Huh…? — olhou-a em puro terror, desejando ter escutado errado.
— Não me vem com “huh?” e essa sua cara de otária! Come logo, ou eu vou…! — preparou um novo chute.
Hailey entrou em pânico ao vê-la prestes a tentar outra vez e, sem pensar, cavou uma colherada do chão e a comeu.
— Nuh-uh! Sem vomitar! — pisou-a de leve nas costas, assistindo-a brigar com os próprios instintos para não cuspir. — Engole! Engole tudinho! Vai, vai!
“Horrível” não definia o sabor — restos de folhas, insetos e pedrinhas dançavam dentro de sua boca —, misto de saliva em um mingau repulsivo e indigesto.
O corpo de Hailey a implorava para desistir de engolir a pilha azeda e rançosa de matéria não-comestível, mas a mente sabia que, se o fizesse…
— Hic… Hic-hic…
— Oh, você tá chorando? Não precisa chorar! Fiz isso pelo seu bem, Hailey! Vamos curar o seu estômago assim, okay?
— Por quê…? — questionou em voz baixa, entre lágrimas. — Por que você tá fazendo isso…?
A fachada apresentada na frente dos alunos e professores, a personalidade de quando todos os olhos estão mirados nela… apenas atuação e mentira, um pano para cobrir maldades.
— … Por que você faz isso… Rebecca…?!
— … Ehehehe!
Seu lindo cabelo em ondas reluziu no tom do sol da tarde; seus lindos olhos castanhos, iguais a potes de mel, brilharam em foco e certeza; seu sorriso, largo e perfeito, decorou a face de contornos finos e ideais.
— Porque é assim que nos divertimos — sorriu, cínica. — É uma experiência que estamos compartilhando juntas, Hailey! Não acha incrível que sejamos tão amigas?
“Um exterior perfeito para ocultar a alma suja de um monstro” — a definição perfeita ao instante.
— Mas você não pode contar isso para ninguém, tá bom? — puxou-a pelo cabelo. — É um segredinho entre nós duas, Hailey! Se vazar e alguém mais ficar sabendo…
O bafo quente esfriou-lhe o espírito ao chocar-se com o ouvido direito e o terror a fez estremecer da cabeça aos pés.
— … Então uma coisa muito ruim vai acontecer com quem espalhou — suspirou, devagar. — Quem sabe o que pode ser?
Por mais que partisse de uma mera adolescente de sua idade, o peso da ameaça deixou-a sem palavras, tal qual uma versão invertida e distorcida do grande carisma que conquistou a escola em meras semanas.
Era verdade — por mais estúpida e defasada a declaração, vinda de uma simples estudante —; em seu coração, as palavras dela marcaram um fato inquestionável.
— Continua comendo; uma colher só não vai melhorar a sua situação! Lembra? Eu te trouxe para cá para cuidar disso! Vamos tratar onde dói!
O coração de Hailey disparou — uma colher não foi suficiente — e entre a hiperventilação as dores, quis gritar por socorro.
— Olha, uma minhoca! Pega ela e vê se mastiga bem, okay?
Ninguém acreditaria nela e menos ainda se poria à disposição para ouvi-la, afinal, era dela que estavam falando, do próprio “anjo” em forma de novata.
— Hic… Hic-Hic…!
A ponto de engasgar pelo choro, enfiou na boca outra colherada de terra, tapando a respiração para não precisar sentí-la.