Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios

Capítulo 179: Ajuste de Prioridades

— (Aí eu disse para ele, “desce daí, seu corno!”, aí ele ainda olhou para trás e perguntou,“é comigo?”) — disse Marcos, em tom humorado, falando várias coisas que Steve não conseguia compreender.

— Hahaha! — riu um dos outros dois voluntários, chamado Josimar. — (Que merda, hein?! O cara ainda perguntou! Se não fosse com ele, ia ser com quem?! Com a parede?!)

— (Né isso! Nesse caso aí, ele mereceu mesmo! Lerdo desse jeito...)

“... O senso de humor deles me atravessa completamente…” pensou o Evans, os encarando em uma mistura de dúvida e desconcerto. “... Mas, de algum jeito, me passa a impressão de ser só mais uma conversa bem idiota.”

Ele não entendia uma palavra daquele idioma — o português — e, portanto, decidiu se focar em só fazer o trabalho de antes e continuar entregando as caixas.

“Mesmo assim eu queria me sentir incluso também…!” reclamou com o próprio coração. “Será que eu tô me sentindo solitário?!”

De qualquer forma, não era tão sério; se pudesse continuar entregando os suprimentos e doações de porta em porta, acabariam mais rápido e enfim poderia voltar para o mundo de relativo conforto chamado “quarto”.

“Tô precisando terminar aquela série de investigação criminal que a Ann indicou… Falta uns três episódios, por aí?”

Ding-Dong! — o ressoar da campainha reverberou pelas paredes da casa — depois daquela, só faltariam mais três entregas e o serviço estaria finalizado.

— Huh…? — apertou outra vez. — Bom dia…? Tem alguém em casa no momento?!

Ding-Dong! — outra vez, o barulho, igual ao predecessor, seguiu com a esperança de chamar alguém. Ele não iria insistir pela terceira vez e, mediante os vários segundos sem resposta, decidiu ir embora.

“... Nada a se fazer, né?” deu as costas para a porta. “A próxima casa é…”

— … Uhm…! Desculpe pela demora…! Eu… estive um pouco ocupada…!

A porta abriu em um solavanco colossal, suficiente para fazê-lo sentir um sopro de vento nas costas, mesmo estando há metros da entrada. 

— … É… É uma doação, não é? Sinto te fazer esperar…!

— Ah…! — encarou-a de volta. — Nah, não se preocupa! Aqui, senhora…

— Rita — respondeu, hesitante. — Me chamo Rita… Obrigada…

— Certo… senhora Rita…! — sorriu, mais por obrigação do que legitimidade. — Espero que seja ao menos uma ajuda!

A única impressão tida por Steve ao olhar a mulher era de que algo não devia estar certo.

— Bem, obrigada de novo… Obrigada… uhm… — olhava para baixo, hesitante.

— Steve — completou. — Steve Evans.

— Certo… — murmurou. — Obrigada, Steve Evans.

THUD — a batida da porta, tão violenta quando a abertura, o espantou, embora não mais que o barulho das várias trancas, audíveis do lado de fora.

“... Que foi isso…?”

O aspecto de Rita o acertou como estranhamente familiar, por mais improvável que fosse a possibilidade — e ele não se referia a algo mundano como terem meramente cruzado caminhos em alguma rua.

Algo a respeito daqueles cabelos da cor de cobre queimado, olhar divagante e evitativo, e estrutura magra e cabisbaixa o trouxe um tipo de “meia-memória”, impossível de se restaurar por completo.

— Acho… que é só uma impressão idiota…?

Àquela altura, ele já não tinha certeza e jamais na vida se deparou com alguém como ela. De consciência um pouco mais tranquila, expirou o ar e voltou para o caminhão de distribuição.

— Olha lá! Vejam só quem tá fazendo um trabalho de dez homens, pessoal! — Marcos chamou a atenção para ele ao vê-lo se aproximar. — Deveria começar a rodar por aí com a gente, garoto! Estamos precisando da sua força.

— É só que eu não perco o meu tempo conversando — falou por baixo, um tanto ácido. — Faltam só essas. Vou cuidar disso logo.

— Oh, ficou sentido porque a gente não te incluiu na conversa?! Devia ter dito isso antes…! — zombou, sorridente. — Olha aqui, gente! O Steve queria ter falado sobre a gostosa da prima do Ítalo também!

O quê?!?!

Risadas coletivas dos voluntários invadiram a paz da pequena Cypress Street, mais altas e altivas que qualquer riso americano já ouvido por ele.

— A gente tá zoando contigo, moleque — bateu uma vez nas costas dele. — Mas acredita em mim, o nosso humor é provavelmente “salgado demais” para gente que nem você, então não se preocupa, porque não tá perdendo nada.

— … Acabou de dizer que eu não suportaria uma piada…?!

— Exatamente — respondeu o voluntário em surpreendente seriedade. — Agora, pode deixar essas últimas caixas com a gente e nós vamos cuidar. Acabou o horário da brincadeira.

Todos os homens em descanso deixaram o conforto da calçada, se alongaram e estalaram os pescoços, em vias de recomeçar o serviço. Marcos, por sua vez, fez algo diferente.

— Toma aí, e eu não vou aceitar a devolução disso de jeito nenhum!

Contra a vontade ou sequer o processamento consciente do garoto, ele pegou a mão de Steve em um falso cumprimento e colocou cinquenta dólares na palma do jovem.

Hã?! Mas… Mas…! — surpreendido pelo gesto, tentou devolver. — Eu não fiz nada tão espetacular assim…!

— Tu é a primeira pessoa que eu vejo reclamando porque tá ganhando dinheiro. Não me vem com essa não, viu?! Fica com a grana, você merece, até porque não teve obrigação de ajudar ninguém aqui.

— Mas, mesmo assim…!

— Lembra do que eu te falei há algumas horas? — interrompeu, olhando-o fundo nos olhos. — Ninguém aqui faz nada pelo dinheiro, mas a grana ainda assim é consequência. Agora vê se só aceita e vai lá jogar um Minecraft ou coisa assim em casa!

O ímpeto na afirmativa deixou claro: ele não aceitaria “não” como resposta. Um tanto envergonhado, socou a cédula bolso abaixo, de qualquer jeito.

— … Tá… bom trabalho para vocês…!

— Certo, certo…! — acenou em despedida. — Agora vê se aproveita a sua vida e vai fazer sei-lá-o-que vocês crianças estadunidenses fazem no tempo livre…!

A trupe se despediu dele em uma salva de outros acenos, deixando-o para tomar distância das questões maiores e, inevitavelmente, acabar mais focado nos menores assuntos, não menos importantes.

“Precisamos continuar investigando a causa daquelas mortes…”

O pensamento acerca dos cadáveres desfigurados não o deixou em paz, pintando uma imagem permanente acerca da próxima prioridade.

“Mas como a gente começa?! Quem sabe quantos de ‘nós’ existem por aí, e com quais capacidades?! Grr…! Não dá para seguir em frente desse jeito incerto…!”

O assunto acabou caindo no esquecimento por conta do ataque ao hospital e talvez o culpado sequer pudesse de fato ser encontrado tão facilmente.

“Droga…! Eu já nem sei mais o que pensar! Só não quero que aquilo se repita de novo… que a gente não tenha nenhuma outra tragédia…!”

A pequena pedra, chutada, viajou até o meio da rua e não demorou até ser esmagada pela roda dianteira de um grande veículo.

— … Tenho que conversar diretamente com a Ann…

— Falou o meu nome?

O “fator surpresa” do encontro só não chamou mais atenção do que sua conveniência, surgida no instante exato da necessidade.

— Qual foi?! Tava me espiando ou coisa do tipo, só esperando a hora para aparecer e quase me matar do coração?!

— Hehehehe! Talvez! — Bem-humorada, sorriu. — Tá indo para onde agora, Steve?

— Para casa! … Ou quer dizer, é para onde eu ia…!

— É para onde nós vamos, então! — assumiu de voltar o lugar do motorista. — Vai, entra aí! Te deixo lá.

[...]

— … Eu ainda não consigo acreditar que você tomou a liberdade de invadir a minha casa assim… — Steve murmurou baixo.

— É um lugar seguro para se conversar — respondeu ela, em igual tom. — É perigoso demais sair falando disso no meio da rua.

— Ann-Marie, certo? Sei que já nos vimos, mas tenho um pouquinho de dificuldade em gravar nomes! — disse Micaela, mãe de Steve. — Quer um pouquinho de suco de laranja? É fresquinho!

— Ah, eu adoraria, senhora Evans! — sorriu. — E pode me chamar só de Ann!

— Que ótimo! — Já preparada para servir, rebateu com um sorriso próprio, de igual brilho. — E pode me chamar só de Micaela, também!

Conforme o líquido laranja acomodava espaço dentro do copo grande demais para uma simples visita, ele amargava — como laranjas da pior qualidade — o desenrolar do evento.

“Não vá mimando ela demais, mãe! Essa convivência entre nós não vai acabar dando em nada do que você pensa!

Stella recebeu o mesmo tratamento enquanto viveu; esperançosa, Micaela fazia de tudo para manter as “namoradas em potencial” de seu filho interessadas em retornar.

Não aconteceu muitas vezes, mas “duas” já contava como recorde no conceito dele.

— Pode ir desfazendo essa cara, Steve! Não seja mau com a Ann! Mostre a educação que te ensinei!

“Oh, droga! E eu ainda acabo sendo repreendido por algo que eu nem pensei em fazer!” revirou os olhos.

O fato era que a conversa precisava acontecer, mas seguindo no ritmo atual, se tornaria apenas mais um café da manhã gratuito para a visitante…

… Ou, ao menos, foi o que ele pensou, antes de ver o truque na manga trazido pela garota.

— Oh, eu trouxe algo para você, Micaela! Ia quase me esquecendo… — alcançou na pequena mochila ao lado da cadeira. — Aqui!

Um frasco de mel. Aos poucos, o plano para deixá-los a sós ficou mais claro.

— Oh, para mim? Mas não precisava…!

— Por favor, aceite! É um agradecimento, por ter me deixado emprestar o Steve naquele dia!

O zumbido na cozinha, antes tranquilo e possível de se ignorar, aos poucos evoluiu na pior direção.

— Bem, se insiste…! — aceitou o presente. — Oh, céus! Como todas essas moscas surgiram de repente?! Preciso pegar um inseticida!

Ann piscou para ele, revelando toda a maquinaria da armação: devido à distração, Micaela esqueceu de fechar a janela por completo, deixando uma pequena fresta.

— Sinto muito, Ann! Vou ir no porão por um instantinho, se não se incomodar… Meu Deus, elas estão pela casa toda…! Oh, meu Deus…!

Ela saiu, desesperada em função do enorme quantitativo dos pequenos animais voadores pelo lugar. As moscas adicionavam um tom escuro a tudo na casa, zumbindo de forma ensurdecedora enquanto voavam de um lado ao outro.

Nenhuma delas sequer chegava remotamente próxima de incomodar a mesa de jantar, contudo.

— Isso foi… esperto — admitiu Steve. — Mas e aí? Conseguiu entrar em contato com a Emily? E a situação dos outros?

— Uma coisa de cada vez — determinou. — Primeiro… Eu liguei para a Emily hoje, mas ela não quis me atender…

— Ela não quis…?

— É, não quis…! — alterou-se. — … Desculpa… É que ela só basicamente dispensou tudo o que eu falei e desligou na minha cara…

— Dá para entender, honestamente… — pensativo, levou a mão ao queixo. — Aquele era o pai dela, lembra? Por isso ficou tão arrasada.

— É, eu lembro… Lembro sim…

Os dois estiveram no instante da descoberta por parte da presidente do finado clube e, ao vivo, a viram se derreter em lágrimas e agonia no asfalto.

— Eu quis perguntar se ela estava bem… Nem deu tempo de fazer a pergunta…! — riu de canto, em sarcasmo.

— Ela precisa de mais tempo. A gente só consegue imaginar o que ela deve estar sentindo. Eu me sentiria horrível por meses se fosse comigo.

— É, você tá certo.

Um desconfortável e pesado silêncio se originou entre os barulhos de frenética dedetização na sala de estar; um dos dois precisava dizer algo.

— … E agora, o que a gente faz? — Steve tomou o primeiro passo. — Não podemos ficar parados, Ann… O Mark e a Lira não estão aqui, o Ryan também não… e agora, nem a Emily… Mas a gente tá, e temos serviço aqui.

A afirmação mascarada de pergunta a moveu o coração, tremendo-lhe o corpo de cima a baixo. Agora, os dois tinham mais responsabilidade por Elderlog do que nunca e, com isso, veio a óbvia apreensão.

— Eu já nem sei… — Ann abraçou a si mesma, como se passasse frio. — Sei que tô me fazendo de certeira e confiante, mas… Eu tô confusa… não sei o que fazer…

— Então, por que a gente não começa por aquelas mortes? — sugeriu, sério. — Se conseguirmos encontrar quem foi que acabou com aqueles três, já vamos ter uma boa pista.

A grande porção de foco misto à confiança no olhar do manipulador de chamas a surpreendeu e até assustou um pouco.

— Aquilo lá não saiu da minha cabeça, Ann… Querendo ou não, aqueles três já foram parte da minha história e… sei lá, mas me passa um ar esquisito, entende? Como se não fosse só uma desova comum… Acho que eu só não quero mais ficar parado e ver as coisas acontecerem.

Para além das vidraças da janela, um grande mal ainda existia e ele tinha certeza de não estar tão distante.

— Eu não tive força para vencer aquela tal de Anastasia, não conseguimos encontrar o Ryan antes que ele fosse levado e nem somos minimamente fortes o bastante para lidar com aquele cara sem nome, mas, Ann… — A encarou. — Isso aqui é coisa nossa, eu sei.

Os olhos castanhos escondiam traços de vermelho e alaranjado, afiados e mais expostos pela intensa determinação neles estampada.

— A gente pode fazer qualquer plano maluco, desde invadir a escola, até colocar fogo numa casa… mas só vamos chegar a algum lugar se tivermos um plano para começo de conversa e você é bem melhor que eu com isso!

As palavras deixaram a controladora de insetos em estado contemplativo. Em verdade, o impulso de coragem vindo dele talvez fosse o “algo” faltando para colocá-la em movimento.

— Steve… Eu…! — E justo quando se preparou para responder…

Parem de surgir, seus demônios com asas…!!!

A mãe de Steve invadiu a cozinha, possuída pelo espírito assassino de dez mil soldados em guerra e pronta para tornar o ar da casa como um todo impossível de se inalar.



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