Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 178: Imersão
Tec-tec — os cotovelos de Ryan fizeram barulho ao esticarem por completo na direção do invisível. Os dois socos moveram o ar parado da câmara, criando leves atritos.
Não foi suficiente e em seguimento, deu um salto para trás e acertou um chute giratório, mais lento e desengonçado do que gostaria.
“Droga!” O tempo passado na câmara o ensinou a não anunciar nenhum pensamento em voz alta.
Parou, cansado a ponto de ter a testa coberta por algumas gotas de suor, em face do frio infernal que por vezes se instalava ali dentro; o resfriamento central da CIA era potente até demais.
“Essas memórias não param de surgir…” pensou, ao secar suor do queixo. “Eu não paro de me lembrar dessas coisas, de novo e de novo…”
Iniciou uma rodada de ataques a algo existente apenas dentro de sua mente. Soco a soco, chute a chute, ele bailava dentro da câmara de poucas coisas especiais a respeito, vigiada por câmeras.
“Não sei o motivo de eu ter acordado nesse quarto…” refletiu, ao desviar o pescoço para a direita. “Mas não dá para reclamar. Aqui é bem mais aberto.”
Há algum tempo — nem ele sabia dizer quanto — despertou em uma clausura três vezes maior do que a anterior, no mesmo esquema de branco pálido nas paredes e a porta metálica fechada por sistemas avançados, porém de qualidades diferentes ao ponto do inegável.
O lugar tinha algumas peças de decoração e uma cama de verdade, ao invés de uma estrutura improvisada e, para além dos essenciais como pia e sanitário, veio junto uma pequena pilha de livros e revistas.
“Pelo menos eu posso ficar fazendo aviõezinhos de papel com as modelos nuas de 2002 a 2007!” zombou internamente, aplicando um forte chute reto. “Eles estão pensando em alguma coisa, me dando tantas mordomias assim…”
Foi fácil perceber a estranheza em todo o esquema — ele passou a ser tratado como “alguém”, mesmo estando em condições de encarceramento —, a iniciar pelo simples fato de existir um ponto cego no quarto.
“E ela até parou de aparecer… Será que estão tentando me dar uma falsa sensação de que eu posso ‘descansar’ agora?”
A Agente Melissa e seus interrogatórios desumanos viraram história. Já fazia um bom tempo que ele não a via e, até o presente momento, nenhum agente tentou contato com o superpoderoso.
“Tem o sanitário também”, afirmou mentalmente, antes de encarar o objeto. “Os ângulos das câmeras nunca se movem para lá… Me dar privacidade não é coisa que eles fariam… não em circunstâncias comuns…”
E as circunstâncias dele podiam ser qualquer coisa, exceto comuns. Ryan imaginava a presença de um esquema maior, onde cartas mais importantes ainda haveriam de ser jogadas.
“Eles estão me tratando desse jeito por causa dele…” cogitou, quase certo acerca da linha de pensamento. “Não tão tarde vão querer ver as minhas capacidades em ação… Ah, droga!”
O último soco da sequência rasgou o ar com força, tamanha a ponto de cortá-lo em um “ziiit” audível.
As gotas de suor mancharam o uniforme de “presidiário” — blusa e calças cinza-claros, feitas de um tecido fajuto — e o braço esticado revelou pequenas marcas.
“Eles continuam fazendo testes em mim, inconsciente” notou os pequenos ferimentos no cotovelo. “Mas não vão ficar satisfeitos só com isso.”
As aspirações percebidas na conversa com o presidente da nação em si o esclareceram do tom obscuro que as pesquisas tomariam, trazendo incerteza e temor para o rapaz.
“Ele quer se apropriar da minha habilidade de ler mentes e manipular memórias, então vai me manter vivo e cooperativo… Eu pensei assim desde o princípio, não foi? Desde que vi o sorriso torto daquele velho…” questionou-se de forma retórica.
Foram poucas as vezes nas quais pensou nas consequências de sua habilidade para uso mundial; Ryan nunca foi ambicioso ao extremo ou teve devaneios de poder que o fossem levar a tentar “dominar o mundo” ou algo do tipo.
“Controlar o mundo seria uma tarefa tão difícil que nem me animou de tentar e, afinal, invadir memórias de pessoas não é assim tão interessante e incrível na prática.”
Ele queria viver uma vida de facilidades — talvez dotado de um ou dois truques garantidores de vantagem —, mas nada além.
“Viver uma vida fácil é o que tem de mais difícil para mim agora”, puxou o ar, fundo. “E, pensando nisso…”
Criou um foco unidirecional máximo na figura imaginária à frente; de punho fechado, liberou o ar pressurizado em uma expiração explosiva e socou.
“Eu nem sei se o meu poder de invadir mentes e controlar as memórias continua funcionando do mesmo jeito. Pelo que parece, eu consigo acessar algumas das minhas próprias memórias, mas só de um jeito muito limitado… Vai ser um problema se me pedirem para provar.”
Desde o embate contra Jacob Egan, as coisas na vida do Savoia tomaram rumos drásticos de mudança, notadas, em especial, nos poderes.
“... Qual o significado disso…?”
As lembranças, quebradas, diziam quase nada, em sua maioria apenas fulgores breves de momentos da luta, juntos de fragmentos das várias sensações vividas enquanto saltava de um lado para o outro em meio ao fogo.
A temperatura, as dores no corpo, o semblante desfigurado do cadáver ambulante de Jacob e, acima de tudo isso, o senso de pura invencibilidade, de estar no topo do mundo.
E a cada vez que Ryan fechava os olhos, as impressões ficavam um pouco mais claras, rendendo-o a pensar em apenas uma coisa:
“O que vocês duas esconderam de mim durante cinco anos… Joanne, Hannah…?” perguntou-se. “Ugh…!”
Mencionar as duas lhe rendeu uma leve pontada na cabeça, algo cada vez mais corriqueiro.
“Não tenho condições de permanecer trancado aqui por mais tempo…! Preciso dar um jeito de escapar… e de achar principalmente você, Joanne!” afirmou. “Não sei se isso da minha cabeça é só loucura, mas…!”
Reergueu-se, determinado e pronto para recomeçar a sequência de combate imaginado, mas, antes de poder concluir o trem de pensamento, ouviu um som característico: a porta de entrada foi aberta.
TSSSSSS… — as estruturas pneumáticas das travas aliviaram a pressão mecânica e, sem hesitação, alguém entrou.
“HUH?!”
— E aí! — ergueu a mão em saudação. — Já faz um tempo que não nos vimos! Como anda, moleque? Gostando do novo endereço?
“Ah, é esse maldito…!” rangeu os dentes, em ódio.
— Calma aí! Não precisa olhar para mim com esse carão! — Atrás dele, a porta novamente se selou. — Se quer saber, fui eu quem te arranjei essas revistas! Devia me agradecer, moleque; o fato de te darem entretenimento aqui dentro já beira o inaceitável.
Três agentes armados o acompanhavam em posições táticas para interceptação de quaisquer tentativas de ataque; por mais que desejasse, quebrar o rosto dele não seria possível e menos ainda inteligente.
— Menéndez…! — esbravejou, liberando da raiva pouco contida. — O que você fez com a Abigail…?!
— Olha só para ele, todo bravo e corajoso! — riu. — Fico lisonjeado que lembre meu nome, mas me parece que a sua própria memória não é tão perfeita assim, hein, [Quebra-Mentes]? Eu já não te expliquei quando nos vimos?
— E como eu posso garantir que não tá mentindo?!
O pequeno movimento afrontoso levou os atiradores de prontidão a apontarem os rifles.
— Olha, isso não é coisa que eu tenho o dever de te explicar, moleque — rebateu, seco. — Mas de uma coisa eu te garanto: aqui, só maltratamos monstros e aquela garota não é um, diferente de você.
Jeitoso, o agente de barba e cabelos negros bem-cuidados puxou do bolso das vestes formais uma pequena ampola sem rótulo, cheia até a metade.
— Apenas saiba que temos os nossos meios de resolver problemas bem básicos — afirmou de forma vaga. — Novamente, eu não me preocuparia com isso, mas sim com o meu próprio destino, se fosse estivesse na sua pele.
Menéndez caminhou pela cela, descuidado a ponto de parecer estar na própria casa.
— Esse lugar aqui é bacana, até! Bem melhor do que os alojamentos reservados para os outros! Ah, mas você já esteve lá, então eu posso me poupar do trabalho de repetir.
Ele pegou um dos livros deixados na pequena estante — também branca — nas proximidades da entrada, de capa verde e aparência de ser um título genérico de fantasia medieval.
— O “grande homem” tem um interesse real em você e em suas potencialidades, garoto! Acredito que já tenha percebido isso — folheou algumas das páginas, desinteressado no conteúdo. — Alguns grandes planos estão sendo colocados em linha, esteja você de acordo com eles ou não!
THUD! — fechou o monte de folhas do modo mais barulhento de propósito e repousou o objeto em seu devido lugar, como o encontrou.
— Mas não sei… Não me revelaram informações o suficiente acerca dos outros… Talvez eles nem estejam vivos a essa altura do campeonato? — riu de canto. — Eu lá teria como saber…!
As tentativas de arrancar uma reação emocional surtiram algum efeito, mas Ryan, firme, insistia em não deixar os tremores de raiva o incomodarem demais.
— O presidente nem dá muita bola para aquele casalzinho — começou de maneira enfática, olho no olho. — Para ele, pouco interessa um moleque ilusório ou uma mulher-EMP! O que ele quer mesmo é descobrir o que te torna especial e quando o fizer…
Se aproximou. Àquela distância, Ryan poderia, talvez, pular e acertar um bom soco; uma decisão ruim.
— Talvez ele te deixe ver de primeira mão como o mundo vai se ajoelhar perante o poderio que teremos… isso se ele não tentar apagar cada traço seu, depois que conseguir! A gente já andou praticando coisas do tipo e são estratégias eficientes de verdade, incluindo um cantinho bem especial para você!
— … O que quer dizer com isso…?!
— Ah, eu não te dei edições de jornal, tampouco das mais atualizadas! Sinto muito, talvez seria melhor ter incluído no lugar das revistas…? Considerando que você tem se divertido de um jeito mais… impensado com elas.
O aviãozinho de papel no chão, de ponta um pouco amassada, mostrava a imagem de uma famosa modelo dos anos 2000, em uma pose sensual e despida por inteiro.
— Sua cidade andou explodindo recentemente, garoto, e eu não digo no sentido figurado. A gente tentou resolver uma baguncinha que deu bem errado, mas como não foi possível, jogamos umas bombas lá, simples e fácil.
A proclamação o abalou, fazendo-o sentir tonto dos pés à cabeça, até o fim do primeiro segundo. Quando esse tempo acabou, contudo, as ações falaram mais alto do que a razão.
— … Vocês fizeram o quê?! — trancou os punhos com firmeza.
Ao menor sinal de um possível ataque, os três atiradores alvejaram o corpo do rapaz de dardos e em questão de meros dois segundos, ao menos vinte deles eram contados em sua pele.
— Esse é o [Quebra-Mentes] que eu queria ver! Bárbaro… violento…! Hehe!
— Desgraçado… Olha na minha cara e me diz…! — tentou mover o corpo, sem efeito. — Urgh…!
Ryan perdeu a força muscular e caiu de joelhos, nas últimas tentativas de resistir ao efeito da toxina abundante em seu sangue.
— Hehe! Gostou? — zombou, vendo-o de cima. — É um sedativo bem potente, desenvolvido por algumas mentes brilhantes, capaz de apagar em meros segundos.
— Urkkh!
— Antes de desmaiar, eu vou te contar o seguinte: logo, os testes mais práticos irão começar, e eu adoraria ver como vai reagir ao que temos reservado para você!
O sorriso auto-satisfeito do agente foi a última coisa vista antes de perder a consciência.
“Esse… maldito…! Eu… ainda vou dividir essa cara dele em duas…!”
As falas de depois não passaram de meros zumbidos e, ao fechar os olhos…
… … …
— GAH…!
Fazia calor — muito calor —, o ar pesado arranhava a garganta e o alaranjado, dançante e destruidor, arrasava os objetos e criava o princípio de uma ruína.
— … A biblioteca…?!
O som da madeira lascada pelas chamas fazia o único barulho audível para além do próprio fogo e a visibilidade alterada o colocou em estado de alerta para o futuro imediato.
— … Se essa é mais uma memória, então…!
Passos se destacaram entre os estalos, de sapatos pesados esmagando a madeira das estantes destroçadas, mais perto a cada segundo.
De mãos erguidas, Ryan se preparou para reviver a luta que o trouxe até aquele ponto, arrastado pelos acontecimentos. Ele enfrentaria Jacob mais uma vez e, dessa vez, iria vencer.
— … Espera… — cedeu da posição de combate, diante do inesperado.
Vê-lo fez cada um de seus músculos aliviar a tensão; os sinais de perigo não diminuíram e pelo contrário, se ampliaram em centenas de vezes.
Ryan não pode evitar senão temer ao cúmulo a coisa que surgiu das chamas.
— …? — A encarada da figura peculiar, fria e vazia, indicou tê-lo notado, desviando a atenção.
Ele mantinha uma garota na mão esquerda, sustentada pelo pescoço. Em clara agonia, ela o chutava e esperneava, sem efeito algum, tal qual tentar destruir uma montanha usando meros petelecos.
Pouco a pouco, os dedos dele cavavam mais fundo na carne, fazendo-a chorar de dor.
“... Huh…?”
Quando o viu, no entanto, largou-a em meio ao fogo, em face do novo objeto de interesse.
— … Ei…!
Algo como um sorriso surgiu no semblante dele, conforme se aprontou para perseguí-lo, esticando a própria presença opressiva por todo o ambiente, o fazendo incapaz de se mover.
— … Não… Não… NÃO…!
Tentou fugir, mas nenhuma tentativa adiantou; foi como se seus pés houvessem sido afundados em concreto denso e endurecido.
— NÃO!
A figura sorridente andou até ele, esticou o braço e arrancou-lhe o olho esquerdo, antes de devorá-lo em um único gole nojento.
— URGH…!
A passagem de um canto ao outro demorou, mas ao chegar, deparou-se de novo com o fundo escuro, cujo teto continha uma rachadura. Ryan esticou a mão para dentro da falha e alcançou a luz.
… … …
— Toma.
Quando abriu os olhos de novo, houve dor — de todos os cantos, de todas as formas, tamanhos e tipos.
— Arrgh…! — A boca se moveu sozinha, mas anunciou a coisa certa e, dessa vez, ele não ocupava o lugar de um observador. — Por favor, pode não fazer isso?! Eu tô quebrado aqui…!
A qualidade do cenário lhe era familiar, mas mais ainda, era a pessoa de pé, na frente do banco de praça molhado.
— Heheheheh! Mas que super-herói fraco! Não aguenta um pouquinho de frio e veio morar em Montana!
Foi a única e última vez em que viu qualquer brilho naquele par de esmeraldas, o dia quando ele mentiu a respeito das coisas poderem continuar bem.