Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 177: Relatório de Mudanças
— Ele tem apresentado um comportamento bem peculiar, digamos assim… — falou o guarda armado, de prontidão em frente à clausura selada.
— "Peculiar"? — respondeu a agente de postura desajeitada, parando de morder o lápis amarelo. — Pode me descrever um pouco mais? O que observou nesses últimos turnos de vigia, Collins?
Somente os dois ocupavam os próximos trinta pés do corredor de iluminação fraca. Ali, uma única porta branca, selada por uma engenharia criada para ser inquebrável por mãos humanas, guardava algo de caráter sensível à nação.
O sistema de vigilância interna os deixava ter visão de cada espaço do alojamento, com exceção do vaso sanitário — um luxo, a considerar os padrões de monitoração da CIA — e dali, buscaram entender mais sobre o que, de fato, representava.
A expectativa inicial foi óbvia: esperaram uma rebelião, uma exposição explosiva dos poderes e capacidades que o faziam, em teoria, tão especial.
— Eu não sei o que esperar do comportamento dele, Agente Robinson… Recebi ordens de ficar de vigia por conta do protocolo, mas…
— Eu entendo como deve estar se sentindo, Collins. Eu também teria as minhas desconfianças se o próprio presidente emitisse uma ordem para ficar de olho em algo assim — tocou o braço do homem, em asseguração. — Mas pode me contar o que vê, estranho ou não? Não precisa ser nas melhores palavras, só… por favor.
O rosto de Collins se aqueceu ao ouvir as reconfortantes palavras de Robinson. Por um segundo, ele pensou estar prestes a se apaixonar pelo belo sorriso da novata, mas balançou esses pensamentos para fora, tão depressa quanto surgiram.
— Certo, certo…! — Um pouco desconcertado, quebrou o contato visual e coçou a nuca, portando um sorriso bobo. — É que… Não escreve desse jeito, mas esse moleque… Algo no jeito como ele age me preocupa…!
A frase, cheia de afirmação e emoção, criou mais perguntas e deu resposta nenhuma, fato que não alterou a compreensão no olhar castanho de Robinson, urgindo por mais.
— Ele é… estranho…! — deixou explícita a impressão de novo. — Já faz uma semana, mas ele continua fazendo as mesmas coisas de sempre…! Ele fica… socando o ar, treinando e… meditando, eu acho?
— “Meditando?” — O termo em específico chamou a atenção dela. — Por favor, me diga o que viu!
O caráter inquisitivo e um tanto opressivo adquirido de modo súbito pela mulher o surpreendeu; por bem ou não, ela o colocou contra a parede, experiência impossível de julgar como “ruim”.
Era como se a mera presença da novata o fizesse querer cuspir todas as verdades e também os maiores absurdos, fosse permitido ou não.
— Ele apaga em intervalos irregulares do dia, como se estivesse dormindo. Não temos qualquer cálculo de quanto tempo esses “cochilos” duram, mas é geralmente entre trinta segundos e cinco minutos; acontece de repente e quando vem, ele simplesmente apaga e cai onde estiver.
Na voz dele já não existia o menor traço de gaguejo ou hesitação — quisesse ou não, os lábios continuariam se movendo —, motivado pela encarada repleta de vontade da jovem agente.
— Quando ele acorda, costuma ficar parado por alguns instantes e alguns de nossos registros de áudio detectaram menções aos outros sujeitos que capturamos. Depois desses períodos, ele retorna aos treinos dentro da cela.
Um sorriso se abriu nos carnosos lábios de Robinson, ao fim de ter anotado até os menores detalhes. Concluído o interrogatório, ela marcou um ponto final teatral, satisfeita com as informações.
— Agradeço muito pela sua compreensão e pela paciência, agente Collins! — mostrou pleno contentamento ao esticar a mão para um cumprimento final. — Obrigada pelo seu tempo!
A perspectiva de uma despedida súbita chocou o coração do guarda. Nada nele queria se desconectar da agradável e hipnotizante presença da moça.
— Uh… Eu…!
— Continue trabalhando pesado, Collins! — presenteou-lhe com uma piscadela. — Logo vai ser promovido, eu sei disso! A gente se vê!
E antes que ele pudesse dizer algo ou fazer uma proposta, ela depressa começou um caminho distante no rumo dos infinitos corredores da instalação subterrânea.
“... Robinson…!” tentou alcançá-la, tocando apenas o ar vazio. — Droga, eu queria ter pegado o número dela ou uma rede social…!
Infelizmente, o único conforto para a recém-adquirida dor no coração viria de continuar o trabalho e, além do mais, ele não queria ser visto vadiando.
— Ah, esse moleque…
O agente acionou o sistema de câmeras no pequeno aparelho de tamanho similar a um smartphone, cuja única função, específica de vigiá-lo, se via executada em máxima definição.
— Huh… E falando nisso, lá vai ele de novo…
Precisava admitir: o garoto estava ficando bom nisso; a atitude dele parecia mais focada e os golpes, mais limpos e por mais que não existisse um combate real, suas capacidades de simulação faziam crer o oposto.
— Acho que cada um tem a sua forma de entretenimento, né…? — falou em voz baixa. — Queria eu ficar no meio dos assuntos mais interessantes…
— … É o que todo mundo diz, até as coisas mostrarem como realmente são…!
A súbita e inesperada resposta ao argumento retórico quase fez Collins derrubar o monitor, graças à pura surpresa.
Não haviam visitas programadas ou avaliações ao [Quebra-Mentes] para tão cedo pela manhã, então, a presença dele foi de se estranhar.
— Senhor Menéndez…! — enrijeceu cada músculo mediante a presença do sujeito. — Deseja algo?!
Aquele com a posição de um dos melhores no ramo investigativo surgiu acompanhado de uma escolta armada, formada por mais três homens, prontos para atirar ao comando dele.
— Sim, sim… Collins! — O homem de aspecto corporativo e repleto de cuidados sorriu de canto. — Desejo ter acesso ao sujeito de teste e tenho uma autorização.
Mostrou uma permissão escrita — rotulada como “segredo de estado” — apontando o aval de Grazianni para um interrogatório extraordinário. Em face do documento, nenhuma outra palavra se fez necessária.
— Sim, senhor!
A senha de seis dígitos, digitada no painel afixado à parede, destravou a porta, liberando a grande pressão acumulada nas estruturas metálicas em um “tssss…” ruidoso.
— Perfeito! — comentou, altivo. — Assim que entrarmos, pode voltar a fechar a porta.
— Não vai precisar de reforço na segurança, senhor?
— Não — confiante, abriu um sorriso mais largo, repleto de divertimento. — Prefiro que seja uma conversa mais tranquila, entre só nós dois!
E, enfim, tomou o primeiro passo, empurrando a porta quase sem resistência.
— E aí! Já faz um tempo que não nos vimos! Como anda, moleque? Gostando do novo endereço?
De igual forma, a entrada fechou-se e travou, isolando qualquer som que pudesse tentar ser ouvido.
[...]
… … …
— Te venci de novo! — disse o pálido rapaz, mais parecido com um vampiro de livros adolescentes. — Qual é! Tô pensando em te renomear de “meu saco de pancadas”, porque tu só apanha, apanha e não se liga de nada…!
Àquela altura, o cenário da quadra arruinada e largada ao tempo já se tornou rotineiro.
— Quanto é que tá meu recorde nesse cara mesmo, hein, Lira?
— 23 a 0 — apontou a menina de trejeitos asiáticos e energia delicada, embora feroz na igual medida. — É um desempenho patético, Ryan Savoia.
— Pfff! — O portador de olhos rubros como sangue riu por entre os lábios. — Tá ouvindo? Melhor começar a mudar um pouquinho de estratégia!
Dia após dia, treino após treino nos horários do intervalo de almoço, eles escapavam para lá, em uma empreitada que somente para eles parecia divertida de alguma forma.
— Urgh… — Entre as dores do corpo e os machucados de um ego cada vez mais ferido, ele se reergueu.
— Tu não é necessariamente fraco, Ryan… O negócio é que tu não faz a menor ideia de como se luta direito. Aprende a meter um jab que preste e aí a gente conversa!
Ouvir tais palavras não serviu de menor conforto para o novato na cidade. De pé, o mais alto e intimidador — ao menos de longe — tentou limpar as marcas de poeira da camisa preta.
— Isso aí não vai sair — afirmou Mark. — Mas e então, quer tentar mais um round?
O pálido, de certo empolgado com a constante trilha de vitórias, sorriu em antecipação; o treinamento não apenas serviria para “endurecê-lo” a um combate real, mas também tinha a função de ensinar.
— E aí, o que me diz? — pressionou a pergunta, assumindo postura combatente. — Lembra! Só precisa me acertar uma vez!
Para ele, porém, aquele “show” não passava de zombaria.
— … Eu não vou mais continuar com isso… Não tem sentido ficar me restringindo…!
A frustração de ser humilhado com tanta constância adquiriu um peso impossível de se carregar; eles se divertiam com cada queda e falha, ao ponto de não querer mais ter de dar-lhes a satisfação, a custo de aprender algo novo ou não.
— Por que eu tenho que te enfrentar sem os meus poderes, Mark?! — questionou, alto a ponto de ecoar pela estrutura escura. — Já tá mais do que claro que eu nunca vou conseguir te vencer!
A batalha de poucos dias no passado deixou marcas. A escola e a cidade ainda tentavam se recuperar e entre essas pessoas, estava ele.
— De que isso vai adiantar contra alguém que consegue te transformar num queijo suíço com um balançar de mão?! Não tem como eu vencer um cara daqueles só na mão, imagine essa Samantha, com um poder que a gente nem conhece!
Não fazia sentido desistir de sua maior potencialidade por mero capricho. Se pudesse copiar os movimentos de Mark e talvez aperfeiçoá-los, Ryan poderia lutar tão bem quanto ou até superá-lo.
— Se a intenção de vocês dois é só ficar zombando da minha cara, deixa quieto que eu treino sozinho…
— Para onde pensa que vai, Ryan Savoia?
“Hkkk…!” Ryan agarrou o centro do peito, familiarizado com a sensação de aperto frio originado pela Suzuki. “Ah, qual é…!”
O enfurecia quando ela fazia isso. Ryan já não se importava mais com a distância ou a constante menção de seu nome completo, mas os apertos no peito e manipulação de seu estado de espírito o faziam ranger os dentes.
— Você não vai a lugar nenhum. Não podemos correr risco de sermos encontrados e você é uma máquina de criar desastres.
“Se a sua preocupação é essa, não precisa pensar assim…!”, quis zombar, porém não teve a coragem de dizer em voz alta.
A pressão no peito aumentou um pouco a cada passo de proximidade da Suzuki; devagar, ela deixou o relativo conforto das arquibancadas e dirigiu-se a ele.
“Não dá para respirar…!” A sensação de compressão se ampliou e passou a afetar-lhe a garganta, roubando o ar antigo e impedindo o novo de entrar.
Bolhas roxo-escuras — medo — o rodearam, por ocasião estourando perto dos ouvidos, tornando o instante impossível de suportar.
— É essa sua atitude que vai acabar colocando tudo a perder algum dia… Nessa tua cabeça oca, tudo é fácil demais de resolver, seu bocó!
“Ah, cala a boca, Mark! Se eu pudesse dar um jeito de esmagar essa cara de vez…!”
A raiva pouco contida do Savoia bateu de frente com a seriedade opressiva do Menotte; Ryan queria afundar o rosto dele, prová-lo da hipocrisia e da falsa superioridade de seu discurso e…
— Lira, solta ele — ergueu a mão e de imediato, os efeitos da habilidade sumiram.
— … Vocês são sempre tão exibidos…!
Logo no primeiro segundo, Ryan chamou pelos próprios poderes e partiu para cima de Mark, o qual estava a poucos metros.
Como se fosse um especialista no ramo, o rapaz de olhos púrpura brilhantes mirou um chute giratório, somado a um salto no ar; movimento extravagante aprendido ao observá-lo.
— É disso que eu tô falando… mas você tá sendo teimoso demais para entender…!
Em resposta, Mark girou em sentido contrário, usando o chão de plataforma e aplicou um potente acerto do cotovelo no centro da perna de Ryan.
— Eh?!
O ataque, cancelado pela dor e a surpresa, recebeu seguimento de um soco forte, mirado no centro do peito.
— Uuuukh…! — Ryan outra vez caiu, cuspindo saliva acumulada no chão da quadra. — Aaargh…!
— Tá vendo, bestão?! Percebeu alguma coisa ou vai precisar de mais?!
O pisoteio forte lascou um pedaço da madeira e o barulho viajou entre o espaço aberto. Mark carregava uma expressão indignada.
— Vê se para de tentar me copiar…! — exclamou aos quatro ventos, enfático. — Você não sou eu e eu não sou você, seu otário…! Você nem sabe lutar sozinho, sem apelar para o “hack de copiar movimento alheio” e quer achar que não precisa de quem te ensine?!
Nenhum argumento serviria para rebater aquele fato.
— Olha aqui…! Olha na minha cara…! — fitou-o em raiva. — E se tu perdesse esses teus poderes?! E aí?! E aí que ‘cê tava morto, irmão! Então vê se aprende pelo menos o básico, para não ter que ficar passando vergonha e pelo ódio do capeta, não inventa de fazer pouco caso de quem claramente sabe mais que você e tá se voluntariando a te ensinar!
Por mais que desejasse por um argumento milagroso, foi obrigado a reconhecer a exatidão no julgamento do mais experiente.
— Agora são 24 a 0! Anota aí, Lira! — começou a tomar distância. — Treino de hoje acabou! Bora, hora do almoço! Tô rachado de fome.