Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 176: Vida no Limite
A data 16 de Junho marcou pouco mais de uma semana do ocorrido de escopo cinematográfico ocorrido na pacata cidade de Elderlog, Montana.
A passos de bebê, a cidade recuperou uma porção do vigor ao longo dos dias e as equipes nos mais diversos pontos perduravam em árduo trabalho para tornar tamanha tragédia em somente mais uma memória.
— … Eu e a equipe temos ajudado em resgates e ajuda humanitária faz um tempo, garoto — disse o homem de porte avantajado, confiante. — Você é quem dá o nome! Já estivemos em todo canto desse mundo e é sempre um prazer ajudar. Essa cidade logo vai poder sorrir de novo!
Porém, apenas quem viveu a realidade crua do evento — a incluir os bastidores sangrentos e bizarros — podia olhar e dizer:
“É impossível fazer as coisas voltarem para como eram antes…” pensou, sem querer fazer desfeita da esperança mais que bem-vinda. — Eu espero que sim, senhor Marcos.
— Ah, deixe disso, rapaz! Só “Marcos” já é bom demais! Ninguém me chama desse jeito tão educado lá no Rio e aqui eu me sinto em casa também, então me chama como se eu estivesse nela!
— … Certo, Marcos…! — riu de canto, desconcertado pelo intenso bom humor do voluntário estrangeiro.
Ajuda humanitária chegou dos mais diversos locais do mundo, para além dos EUA, carregando em sua maioria mantimentos e materiais multiuso.
Toneladas de alimentos em conserva perderam viabilidade em consequência da queda de energia que perdurou por quatro dias.
Várias casas apresentaram problemas estruturais de pequena e média ordens, em consequência dos abalos advindos das explosões e as famílias vitimadas foram realocadas para a Grande Biblioteca até a resolução do problema.
Em suma, embora por fora o contexto parecesse se encaminhar para algo bom, a verdade do “acidente por negligência do governo” trouxe consequências desastrosas.
— Steve, percebi que você é bastante forte! — afirmou Marcos, apontando para uma pilha de mantimentos em caixas. — Pode me passar umas três dessas, se não for muito incômodo?
Os moradores menos afetados pela tragédia concordaram em ajudar as equipes, formando um esforço conjunto em prol de garantir o mínimo.
Por força de um sentimento desconhecido, criou-se uma “corrente do bem” e Steve não pôde evitar senão ser parte da causa.
— Ah…! Claro…! — reagiu de supetão, arrancado dos profundos pensamentos. — Indo…!
A mera lembrança do mundo de loucura vivido naquele domingo gelava o sangue do manipulador de chamas.
“Ela disse que a gente ia se ver de novo…”
— Ei, garoto…! Não precisa ser tão depressa, sabe?! — exclamou o voluntário à distância, em sarcasmo óbvio.
“... Nem pensar…! Não tem a menor possibilidade…!”
Correndo, Steve sustentou as três caixas solicitadas nos braços e foi o mais depressa que pôde.
— … Foi mal…! Acabei pensando alto…! — Devagar, repousou as caixas na porta da frente da residência. — Sinto muito pela demora…!
O sorriso desconcertado foi a única reação diferente da geral surpresa estampada nos semblantes de Marcos e da mulher, dona da residência.
— Steve… Você trouxe as três juntas… — anunciou o homem, mais devagar.
— Uh?! Não era para eu ter feito isso?! Era para ter pegado caixas diferentes?! Foi mal…! Eu troco, rapidinho…!
— Não é isso…! — manteve a entonação veemente. — É que… cada caixa dessas pesa quase metade de você…! Acabou de carregar quase um e meio de si mesmo, moleque!
— Uhhh…
Precisava buscar uma resposta convincente e, de preferência, capaz de desarmar a desconfiança dos dois, ou de qualquer outro que o visse repetir tal façanha por acidente.
— Ah… é que eu tô começando a treinar…! — tensionou o máximo de músculos em simultâneo e forçou um sorriso mais confiante. — … Se bem que foi um pouquinho pesado, sim…!
A proclamação não foi uma exata mentira — desde o fogo em Elderlog, ele iniciou o treino de seus poderes, somado ao trabalho físico proposto por Ann —, mas o desafio real seria convencê-los da viabilidade do argumento.
— Huh… — Marcos o analisou de cima a baixo, com as mãos na cintura. — Olha, moleque, se eu não soubesse melhor, diria que tá aplicando veneno.
— … Uh… “veneno”…?
— Tá vendo? Esse é o tipo de coisa que alguém que se envenena diria. Basta fingir que nem conhece!
— Mas eu nem…!
— Tô te zoando, guri! — interrompeu, em meio a risos altos. — Olha, vamos dizer que essa tua força de halterofilista é só mais um milagre da natureza, surgido para a minha conveniência!
“Para a sua conveniência nem pensar…!” revirou o pensamento. “Mas… É melhor pensar assim.”
Os feitos além-de-humanos iam além dos superpoderes, o levando a refletir a respeito, em face da própria mão sem marcas ou cicatrizes.
“Eu me recuperei de costelas quebradas em questão de dias… É bem óbvio que chame atenção.”
Para manter o status quo, precisaria assumir uma postura mais neutra e se misturar entre as outras pessoas.
“Afinal, eu não quero acabar capturado e ser usado em dez mil experimentos diferentes…!”
Um tapinha nas costas o trouxe para fora do mundo de infinitos pensamentos, o lembrando da necessidade de agir pela melhora e não apenas pensar em futuros catastróficos.
— … Bem, vamos passar para a próxima casa! É um prazer poder ajudar, senhora Hope — acenou o voluntário, de sorriso largo. — Vamos! Ainda vou precisar da sua ajuda! Tem muita coisa para movimentar e as minhas costas vão doer logo se eu fizer sozinho!
— O seu inglês é bem fluente, senhor… digo, Marcos…! — corrigiu-se em um pouco de pânico. — Eeeh… Como aprendeu?
— Acha mesmo? — coçou a fina barba escura, deixada por fazer. — Quer dizer, eu tô conversando com você de boa, então… Acho que foi a exposição?
— Huh?! Aprendeu a falar inglês sozinho?!
Ao chegarem ao caminhão no outro lado da rua, o mais velho tirou dali outra caixa de mantimentos básicos.
— São as coisas que você aprende quando coloca a cara à tapa — afirmou, cheio de simplicidade e uma ponta de descuido. — Se eu te jogasse no meio da Sibéria, você voltaria de lá falando russo, querendo ou não… bem, ao menos que acabasse morto por ursos ou pelo inverno! … Segura aí!
— Ooops…! — Por pouco, os mantimentos não se espatifaram no asfalto, resgatados pelos braços do Evans no último instante possível. — … Ei…!
— Olha só! Significa que os seus reflexos estão em dia…! — apontou em divertimento para cima. — Entendeu a mensagem por trás?
— Uuuh… — Ainda tentava equilibrar os suprimentos no invólucro, alguns a ponto de caírem. — … Que a gente precisa se envolver mais nas coisas…? Ahhh…!
Prontamente, o adulto empurrou o conjunto de alimentos não-perecíveis de volta para a segurança do armazenamento.
— Quase. Esse seu jeito de ver as coisas não é errado e é parte da mensagem também, mas é mais sobre extrair o máximo possível de experiências que vão contribuir contigo de alguma forma, por mais indesejadas que essas vivências sejam!
O posicionamento dos objetos parou de variar, então, ele pegou a oportunidade e adicionou outra caixa menor, acima da primeira.
— Somos voluntários, mas acabamos sendo pagos de alguma forma, é óbvio, mas isso não é tão garantido. Você ocupa esse ramo porque quer e gosta, mas também porque sente que pode vencer as adversidades e aprender coisas importantes com elas.
Sozinho, acumulou um peso maior em relação ao deixado nos braços do adolescente, carregando-o com um pouco de dificuldade.
— Se eu não quisesse viver na base de testar meus limites assim e só ficar de corpo mole, num trabalho CLT lixo, ou num curso de universidade detestável… — grunhiu ao elevar o grande volume. — Grrr… … Então eu nem teria a ideia de me juntar nessa loucura…! Bora, que isso aqui tá pesado!
— Qual é a próxima casa, Marcos? — questionou, internamente impressionado pelo significado do discurso.
— Tá vendo aqueles caras ali no fim da rua?! Almir e Douglas…! A gente vai neles!
— … Beleza…!
As palavras do homem mais experiente deixaram suas marcas no rapaz novato na profissão de “viver”, o conduzindo à reflexão.
“Ou eu entro de cara, entregando 100% de mim, ou não entrego nada…”
Medo e hesitação o seguraram de tomar incontáveis oportunidades de crescimento no passado, porém, em face das circunstâncias atuais, permitir-se temer seria não apenas perder.
“Eu e as pessoas que eu amo estão em risco de vida… Se esse é o caminho que tem para mim, é esse o caminho que eu preciso tomar de cabeça e coração.”
Embora em pensamento, Steve não estava distraído e acompanhou os passos firmes do brasileiro em direção aos compatriotas.
No caminho, cada detalhe do cenário da Oak Street lhe foi claro e a realidade se misturou à nova aspiração.
“Quem foi que fez aquilo?”
E tal visão também se estendeu ao cenário geral dos problemas não resolvidos e mistérios a serem descobertos.
“Quem foi que matou aqueles dois e descartou os corpos na floresta?”
O modo da execução carregava requintes diferentes dos esperados nos desaparecimentos misteriosos, tal como não pareciam associados à ação de Anastasia.
“A gente precisa descobrir… e não é só um ‘deixa para amanhã’.”
[...]
— … Emily… Emily…!
Longe de qualquer sinal de habitação humana, uma figura pálida, vestida em um pijama hospitalar, escrevia um único nome no solo barrento e úmido do pequeno leito de rio.
— Eu vou te buscar… estou chegando…! Vamos ser felizes… vamos ficar juntinhas…!
Os cabelos, escuros e desarrumados, cobriam a maior parte do rosto e um sorriso macabro, de dentes amarelados se destacava, desviante do esquema quase monocromático, junto às manchas rubras nas vestes.
— Meu coração me diz exatamente onde você está, meu amor…! Ah, como ele palpita… como ele bate sem parar pela chance de sentir o cheiro do seu cabelo… da oportunidade de lamber os óleos da sua pele, minha Emily…!
“Emily”, “Emily”, “Emily”... o nome se propagava ao infinito, escrito de novo e de novo, em face da menor imperfeição percebida pela mente quebrada de Isabella Clarks.
— Não… Não… NÃO! Um “m” muito pequeno… um “y” torto demais…! Preciso escrever de novo… Escrever até expressar a perfeição que a MINHA Emily é…! Não está certo… NÃO ESTÁ CERTO…!
Usando de um indicador trêmulo, em face de tamanha emoção, ela tentou outra vez.
— Não está certo… Nunca está certo…! — apagou a escrita em um gesto desesperado. — A palavra precisa ser perfeita… perfeita! PERFEITA…!
“Mania” — até essa palavra seria pequena para definir o estado de contentamento e euforia a se passar pela cabeça e se espalhar como ondas constantes de choque pelo corpo da menina retirada de condições impossíveis de melhora.
— Oh, minha Emily! Olhe só para tudo o que eu fiz…! E para tudo aquilo que ainda farei para poder chegar a ti e sentir-te de mais perto…!
Marcada para morrer, se viu outra vez capaz de dançar entre o mato e as folhas, resgatada por meios com os quais não detinha da menor condição de se importar.
— Quero abraçar-te, viver-te, sorver-te em meu infinito amor! Sentir o gosto doce de cada mordida… chupar o suco de cada caroço…!
E o desejo crescia a cada segundo, superando os limites de “real” e até de “possível”.
O [Amor] de Isabella venceria todos os desafios, quebraria todas as barreiras…
— Uh… Oi…?
— Huh?
— O que você tá fazendo aí, menina? E com essas roupas de hospital… — recolheu-se em postura defensiva, com a mão destra no coldre de couro. — … Quem é você, menina?
— … Você me interrompeu…
— O que disse? — puxou a arma. — Fica para trás, ou eu vou atirar…!
— Você… VOCÊ ME INTERROMPEU…!
— PARA TRÁS…! — deflagrou três cápsulas da pistola contra ela, acertando em cheio.
O nítido horror inicial estampado no semblante do homem comum, em seus quarenta e poucos anos, nem de longe se comparou à desesperança de presenciar o ocorrido depois do contato das balas.
— VOCÊ ME INTERROMPEU… ME PAROU DE PENSAR NA MINHA EMILY…! Homem nojento… Homem porco…! Sem homens entre mim e minha Emily… SEM NENHUM HOMEM MALDITO…!
Os buracos sangrentos — um no ombro direito e dois no tórax — tiveram nenhum efeito em impedi-la de partir para cima.
— Morra… MORRA…! — Em um gesto ágil, pegou um graveto do chão e avançou sobre ele.
— … Socorro… — suspirou, sem ar. — Socor…!
Os tremores causados pela surpresa de vê-la sobreviver sem danos o fizeram esquecer o fato de não ter mais balas e, entre o pânico e a incapacidade de reagir, o sujeito teve o destino selado.
— SEM NENHUM HOMEM PARA ESTRAGAR TUDO…!
SQUISH! — O graveto perfurou-lhe o centro da garganta, o deixando sem voz, incapaz de chamar qualquer possível ajuda.
— Sem homens no meu caminho… sem porcos que vão tratar minha Emily mal… sem os malditos que vão usá-la e ferir seu coração…
A fala não fazia sentido para o mero transeunte, que agora se arrependia amargamente de ter parado para dar atenção àquela fala vinda da mata.
O hálito podre e o fedor corporal da menina o nauseavam, os traços ferrosos do sangue, mais e mais identificáveis, com a proximidade dos olhos escuros a sugarem-lhe a alma.
— Homens vão machucar a minha Emily… Homens vão feri-la… Ela precisa de mim… DE MIM!
Torceu o graveto e, ao fazê-lo, dor em espasmos crescentes o fez contrair cada músculo.
— Só eu consigo amar ela direito… Só eu sei do que ela precisa, de como cuidar da minha Emily… Só eu posso amá-la de verdade…
Torceu de novo, girou, oscilou, afundou e puxou para a superfície da pele, gestos trazidos em uma tortura muda, feita de expressões agonizantes.
— Por favor, não pense que eu sou uma pessoa má, Emily…! Eu só quero te proteger desses homens… desses MALDITOS PORCOS!
CRACK — a madeira enfim quebrou e junto dela, quebrou-se também a vida daquele homem normal, vítima da pura coincidência.
— Ele vai morrer também…! Vai, vai sim! E nós vamos nos casar onde os restos dele estiverem enterrados, Emily…! Aquele homem que se atreveu a te roubar de mim… ELE VAI SOFRER… SOFRER CADA SEGUNDO!
Isabella roubou as chaves do carro do simples homem, convenientemente deixado na rodovia próxima e dotado de combustível o bastante para chegar mais perto de seu objetivo.
— Estou chegando, minha Emily… Logo vamos nos ver de novo…!
A placa na Rodovia 12 apontava pouco mais de trinta milhas até Helena.
— Eu posso ouvir o seu coração dodoi, Emily…! Vou chegar logo, não se preocupe!