Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 72: Mania
— Yaay! Hehehe!
— Ei, me devolve isso…!
— Vem pegar de mim…!
Mais um fim de semana, de um tempo onde a única preocupação era o pânico de ter que voltar para a escola na segunda-feira.
Tempos simples, felizes, onde a pequenina de trejeitos mistos se escondia por entre as pernas longas e esbeltas de sua defensora, temerosa quanto ao tão estimulante mundo lá fora.
— Oh, Lira… — A mulher chamou, soando desapontada, mesmo por entre as doçuras de sua voz. — Você não pode continuar tendo medo das outras crianças… Elas são como você, afinal!
Mas a menininha veementemente recusou em insegurança, estampada em cada parte de seu pequeno semblante. Com firmeza, se agarrou ao tecido vermelho, repleto de padrões florais, do vestido de verão, para não mais soltar.
— Mas, mamãe… Eles não vão gostar de mim…
Ao seu ver tão imaturo, presenciar a diversão das outras crianças no meio daquele parque amplo e cheio de grama exalava pura hostilidade. Desde muito pequena, sempre teve para si que havia um jeito de guiar as coisas.
— Se eu entrar, eles não vão me aceitar… Porque eu vou estar atrapalhando…
Ainda lhe custariam muitos anos de maturação até que tivesse as palavras certas, porém, nada a enganava quanto à hostilidade das pessoas à invasão de um estranho.
— Eles não vão gostar de mim…
E mergulhar em sua surpreendentemente profunda linha de pensamento fazia a garota de sete anos parecer ainda mais fofa, aos olhos de sua observadora.
— Lira, você não pode ter certeza disso…
A vontade da mulher que chamava “mãe” era a de apertá-la em suas bochechas e prendê-la contra si por ter dito algo tão complexo e de um modo tão adorável, contudo, como toda a boa de seu tipo, ela sabia melhor.
Alice Suzuki sabia que aquilo do qual sua garotinha mais precisava era aprender mais sobre si mesma e os outros, em um nível separado de sua já tão intrincada racionalidade.
— Olhe, Lira… Eu vou te contar uma coisa muito importante agora e você precisa me prometer de que vai guardar até o fim, certinho?
Pelo ponto de vista de sua filha, Alice era a mais linda, com seus cabelos castanhos, ondulados e esbeltos, e um par de olhos tão diferente e bonito, brilhante em um rosado firme, cheio de carinho.
Os olhos sempre foram sua parte favorita, em especial por tê-los herdado, também. As duas até compartilhavam uma piada interna sobre a vista preta e sem fundo de seu pai, se perguntando como ele via o mundo, em meio à escuridão.
Ela agia de forma gentil em todos os momentos e não tinha dias ruins, já que, mesmo com as brincadeiras infantis ocasionais de sua idade, nunca se irritou ou descontou frustrações.
Em resumo, a mulher mais perfeita que esse mundo já viu e em todas as esferas possíveis.
— Eu vou te contar um segredo muito legal, mas que você tem que me prometer que vai guardar! Acha que consegue?
A pequena Lira assentiu de modo firme, cheia de determinação. Se fosse algo vindo de sua melhor pessoa, com garantia a escutaria.
— Certo, então eu vou falar no seu ouvido, certinho? — Alice sorriu. — As pessoas têm um segredo, então para se dar bem com elas, o que você precisa é…
Se ajoelhou perante a tensa e apreensiva garotinha, para começar a dizer.
[...]
BANG!
O par de segundos do mais pesado silêncio tomou proporções eternas nas almas e corações do trio de qualidades tão ordinárias.
— Vanessa… Vanessa…! — Lindsey gritou, em pânico extremo. — ATIRA DE NOVO, VANESSA…!
A bala falhou em atingir o corpo de Lira por uma margem ampla, deflagrado rumo ao nada, atingindo um ponto aleatório da parede que sequer se deram o trabalho ou o serviço mental de procurar.
— Saiam… do meu… caminho…
Ela permanecia viva e inatingida, olhando, com uma única encarada, para o fundo de suas almas.
— Uhhh..! Gente…! — Mike, na retaguarda e ferido, estremecia de medo. — Isso… Ficar aqui não é uma boa ideia…!
— Ah, sério que você só tá descobrindo isso agora?! — Vanessa, com a arma em mãos, manteve a postura, apontando o cano para a forma em aproximação. — É melhor não dar mais um passo, Suzuki…!
Não estava menos assustada que os outros dois e, passo por passo em sua marcha retrógrada, a máscara de coragem e confiança deixava cair seus pedaços.
— Eu tô dizendo…! Para de andar na nossa direção, Lira…! Para…! — apertou o metal, coberto com o suor das próprias palmas, com quase o dobro de força. — Não me faz atirar de novo…!
Porém, Lira podia se importar mais com as ameaças, os observando, travada em um semblante intenso, de olhos largos e afiados. Sequer sabiam que ela tomava tudo o que tinha à disposição.
— Uuuugh…! Eu…Eu não…
O ar se tornou opressor, a ponto de não permitir que fizesse qualquer coisa diferente de tremer e hesitar.
— VANESSA, ATIRA LOGO…! MATA ELA!
— EU NÃO CONSIGO…! — respondeu intensamente. — EU NÃO CONSIGO ME MEX… UGH…!
— VANESSA…!
A moça de cabelos negros caiu de joelhos, agarrando com firmeza ao centro do peito, rolando de corpo inteiro pelo chão cheio de insetos, sofrendo de tamanha dor que lhe faltava o ar para vocalizá-la.
— Ghhhk… Guuuh… Haaack…!
A marcha rítmica de Lira ficava cada vez mais próxima e, em proporcionalidade, pioravam os sintomas.
— Lira… LIRA…! — Lindsey esbravejou. — Para com isso… Não chega… NÃO CHEGA MAIS PERTO…!
A encarada vazia foi a resposta, quando, com cerca de dois metros de distância da forma agonizante de Vanessa, de repente, a resistência alcançou seu fim.
— Não… Fica… longe… Não…!
Vanessa foi morta, assassinada por seja lá qual força essa fosse, mas que se intensificava com a proximidade da inexpressiva asiática.
Cada passo de proximidade ampliava a dor de cabeça, batendo como tambores em um festival, contra a calota craniana, mista de mais sinais que se manifestaram aos poucos.
— Lindsey… Eu sei que isso vai parecer estúpido de mim, mas… O seu… seu nariz… tá… sangrando muito…
Foi apenas com o sinal dele que enfim notou o volumoso fluxo rubro a descer por sua narina esquerda, culminando em uma trilha de gotas, sobre as quais Lira fez questão de pisar.
O medo os incapacitava de correr ou fugir, assim como de tomar qualquer ação, suficiente para desencorajar até o mero pensamento de fazer algo contra a figura monstruosa à frente.
— Socorro… Alguém… Por favor…
Lira tomou a arma dos dedos sem vida, sequer por um instante parando para contemplar. Impassível, a Suzuki mirou em direção ao seu rosto e atirou.
BANG!
— Lindsey…
O corpo caiu, acertando o chão frio, em pura convulsão; a bala, no centro da testa, servia de terrível intruso na fina arquitetura do sistema nervoso, confundindo sinais, levando embora o sopro da vida.
— Ele tava certo… Você…
Mike foi forçado a assistí-la, movendo os braços para todos os cantos, os balançando como chicotes, enquanto os olhos revirados miravam acima, em padrões erráticos.
— … Você… Não tem como ser humana… Você… é um monstro…!
Em seus últimos instantes, acompanhou Lindsey ser asfixiada pela própria língua, enrolada contra sua garganta.
— Um… monstro…! — abraçou os joelhos, sentado e escondeu o rosto.
BANG!
— Vocês precisam sair do meu caminho, merdinhas insignificantes…
Não viu qualquer obstáculo. Enfim, o caminho ficou livre.
— Agora, eu finalmente posso acabar com isso… Finalmente…!
Um largo sorriso maníaco se estampou em seu rosto, sujo com o sangue das malditas barreiras que ousaram atrapalhar o seu progresso.
— Eu vou acabar com isso, e quando terminar, vou encontrar o Mark de novo…! Hahaha!
Deu um tiro para o alto, danificando a lâmpada logo acima. Com cuidado, ela bailou entre os corpos, repleta de graça, ao evitar manchar seus sapatos com o vermelho asqueroso.
— Eu me pergunto como ele vai me agradecer quando isso acabar…! Hahahaha! Nós vamos sair, e ele vai me comprar sorvete…! Ele vai me levar até lá!
Lira se sentia extática, muito melhor e mais alegre do que em qualquer outro momento de sua existência inteira. A alegria não tinha fundo ou base, não se importava com o que dizia ou pensava, somente focada em existir.
— Ele vai me elogiar quando eu terminar… dizer todas as coisas boas sobre mim…!
O mundo tinha as cores mais belas, os tons mais fortes e a única sensação vivenciada por sua carne era de querer saltar, cantar, rir e brincar.
— Eu vou matar…! Eu vou matar…! Eu vou matar todos eles…! — cantarolou, saltitante. — Eu vou matar todos os que ficarem no meu caminho…! Hahaha!
Uma onda excruciante de felicidade, pulsando através de cada veia, escapando sob a forma da trilha de saliva a correr pela bochecha esquerda.
— Só espere, Mark! Porque, quando nós nos encontramos de novo, vamos ser felizes juntos… Para todo o sempre…!
Não restava espaço para lógica ou raciocínio. Tudo o que, um dia, foi Lira Suzuki, se viu devorado por pura emoção.
— Hahaha! Ele nunca, nunca vai me deixar…!
A metros de distância da tão visada porta de madeira escura e qualidade rústica, escutou um zumbido característico, vindo de perigosamente perto.
— Huh?
BZZZZZ!
Do corredor adjacente à esquerda, a enorme massa de insetos, vinda do andar superior, mirou seu foco nela, visando obstruir sua passagem até a porta.
— Ora… seu bando de vermes nojentos…!
Em um piscar de olhos, seu temperamento mudou. Lira abandonou, de repente, todos os trejeitos infantis, dirigindo uma encarada furiosa para a massa coletiva.
— Vocês vão ficar longe… COMPLETAMENTE LONGE DO MEU CAMINHO…!
Estendeu a mão e os insetos, de uma vez só, caíram mortos.
— É ISSO QUE VOCÊS MERECEM! É ISSO QUE TODOS VOCÊS MERECEM…! ASQUEROSOS! ASQUEROSOS!
Mesmo após mortos, os pisoteou até se formarem em uma massa de corpos esmagados, propagando um odor horrível pelo corredor.
— MERDA! MEU SAPATO…! MEU SAPATO TÁ SUJO E É CULPA DE VOCÊS…! IMUNDOS!
Pisoteou mais e mais, veias saltando na face avermelhada, exibindo os dentes para deixar bem claro que, por dentro e por fora, a Suzuki cozinhava de pura raiva.
— É ISSO QUE VOCÊS MERECEM POR FICAR NO MEU CAMINHO! É ISSO…! QUEIMEM TODOS NO FUNDO DO INFERNO!
Por mais poucos segundos, continuou seu massacre contra o que não tinha como parecer pior, até tomar nota do estado de seus sapatos.
— Sujos… Eles estão sujos… Meus sapatos… Completamente sujos…!
Agarrou a própria cabeça com toda a força restante, em pânico diante da descoberta de que havia arruinado o imaculado branco do solado.
— Não…! Meus sapatos estão sujos…! Eles não podem ficar sujos…!
Desesperada, a garota caiu sobre seus joelhos, ainda com as mãos nas laterais da cabeça, e chorou.
— Hic… Meus sapatos… Hic-hic… Eu sujei os meus sapatos…! Hic…
As lágrimas caíram de modo a parecer que ela derramaria os próprios olhos, algo que durou minutos a fio.
— Os meus sapatos…! Hic!
Gritou, esperneou, bateu no chão e nas paredes, reduzida à mera sombra da pessoa tão fria e analítica que sempre exibiu ser.
Absorver energia demais a tornaria lábil e por mais que soubesse disso, foi sua única opção no momento.
— Eu sujei os meus sapatos…! — bateu em si mesma, dando chutes no ar.
E essa arriscada manobra a desviou de seu foco, já que, fosse por alegria, tristeza, raiva ou qualquer outra coisa, não teria o controle sobre si mesma até liberar o excesso.
… … …
— Oh, então esse é o resultado de se absorver os sentimentos de uma escola inteira? É mesmo muito interessante!
A voz, surgida do nada, foi o suficiente para ativar o circuito mediador de sua instabilidade. Lira se ergueu, respirando de forma pesada e lhe exibindo as unhas.
— Já mudou tão depressa? Devo dizer que…
— CALA A BOCA! — O interrompeu. — EU VOU TE MATAR…!
Puxou a arma e deflagrou uma cápsula diretamente na cabeça da figura desconhecida.
— Heh. Sinto muito, mas não vai conseguir isso tão fácil…
Desapareceu logo quando o gatilho foi pressionado, levando a bala a deixar sua marca na parede detrás, e quando reapareceu, o fez a tocando por trás, no ombro.
— Eu tenho uma certa proposta que gostaria de discutir e…
— MORRA! — atirou.
— É uma coisa que envolve algo importante, do seu intere…
— MORRA! — O fez outra vez.
— Eu acho que você vai querer me escutar, mas…
— SÓ MORRA…!
Lira apertou o gatilho, mas nenhuma bala saiu. Ileso, o pálido rapaz, um pouco mais alto que ela, sorriu.
— Eu não estou aqui para lutar, então pode baixar essa arma.
— Morra… — murmurou, devagar.
— O que estou aqui para discutir é a respeito do que existe detrás daquela porta. Você está curiosa para saber, não está?
— Morra…
— A pessoa ali atrás… É uma pedra no meu sapato, e “oh, que coisa” seria se alguém fizesse o favorzinho de dar um sumiço nela…!
Nada que ela fizesse o machucaria e sua segurança nisso o permitia ficar ali e zombar de tudo, mesmo no epicentro de uma zona tão instável.
— … Porque eu vejo que você está fazendo um bom trabalho aqui… Não é a primeira vez que eu presencio uma flutuação de energia e, para ser honesto, a sua ainda é ínfima demais, se comparar com a de um certo alguém que eu conheço, mas…
A própria realidade se distorcia no horizonte visível, evento esse muito mais intenso conforme se aproximava da Suzuki. Ao seu redor, o ar estremecia, dançando em cores, formas e até sons.
E, ainda assim, ele permanecia inafetado, sem mover um fio de cabelo.
— … Isso que você está criando vai servir… Ou melhor, não vai, mas eu sei que vai terminar com o serviço por si mesma, afinal, quer ele de volta… É bem adorável da sua parte, sabia?
Se materializou na lateral esquerda da garota, tão absorta em seu poder cataclísmico que sequer podia notá-lo. Se aproveitando disso, a tocou outra vez, dizendo:
— Acho que vá querer ter uma conversinha com ela, afinal, foi a responsável por levar Mark Menotte.