Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 71: Vermelho

— Isso… Isso não era parte do plano… ISSO NÃO ERA PARTE DO PLAN…!

Steve não pôde manter seu café da manhã no lugar onde deveria ficar.

Um passo em uma das áreas de tráfego e a dupla de rapazes se deparou com o pior cenário de suas vidas. No chão, paredes e até no teto, restos humanos pendiam, separados de formas não-coesas, impossíveis de se reconstruir, mesmo que mentalmente.

Ao longe, o braço de uma garota apontava para cima, desconectado na altura do cotovelo. A peça continuava a jorrar sangue, mesmo aparentemente não tendo como comportar a quantidade vista.

Um olho, intacto, foi a única coisa além de roupas e ossos que permaneceu inteira, sobre uma gigantesca poça rubra e gelatinosa. A pupila, ainda contraída, mostrou o estado de terror de seus últimos momentos.

Um trecho do teto, recoberto do esbranquiçado gelatinoso que existe dentro de todos os crânios, gotejava seu conteúdo quase periodicamente, servindo de alimento para os insetos rastejantes, incapazes de se importar com a origem.

Por horas, as qualidades mais grotescas do que há não tanto tempo foi um espaço de ensino, como todos os outros, poderiam ser individualmente citadas até o ponto que não se pudesse mais lembrar como o relato se iniciou.

— Ele disse que eu não precisava matar ninguém… Ele disse… Ele disse…!

— Steve…! — exclamou Ryan, em tom sério. — Sobreviventes… Precisamos buscar por sobreviventes!

Um fragmento de hesitação foi sentido em meio a tanta segurança, quando o Savoia não calculou seus milésimos, cortando caminho em meio às mortes, já que, em meio a tanta destruição, encontrou um sobrevivente.

— Você! Você ainda continua viva…!

Não pôde se manter sério, falhando em ocultar a desesperança por trás do roxo de seus olhos, diante da imagem decrépita que descobriu.

— Ah… Savoia… Você… você veio… me ajudar…

Rastejando no chão, tão sujo, ele viu vida, e a única que se perguntava era se já houvera escutado o nome dessa garota.

— Dói… meu corpo… dói… e eu… não… sinto… minhas pernas…

Mas, embora houvesse vida, não havia esperança.

“Você não tem mais pernas…!” Foi o que ele quis dizer, vontade essa reprimida na altura da garganta.

A adolescente não tinha sua metade inferior, mas de algum modo, ainda vivia, rastejando, fracamente, em seu próprio sangue, com braços de uma força sem origem possível.

— Ei… Savoia… Você… vai me… levar… no seus… braços…? Eu… eu não… consigo… ficar em… pé…

A fachada de seriedade caiu, quando viu os intestinos, desfeitos em pedaços, escapando como cordas do ferimento aberto.

— Vai ficar tudo bem… — murmurou.

Gentilmente, levou a mão destra até sua testa, entrelaçando os dedos entre os fios loiros, agora vermelhos, por conta do excesso de sangue.

— Ah… que… quentinho… — Fracamente, sorriu ao toque. — Que… calor… ótimo… Tá tão… frio… Eu tô… com tanto… frio…

Mordeu o lábio inferior, até um fino traço de sangue escapar.

— Vai ficar tudo bem…

Não tinha a mínima noção do que dizer, além de mentir de novo e de novo, ambos para ela e para si mesmo, ciente de que, em pouco tempo, as mãos trêmulas não sustentariam mais as suas mentiras.

— Ryan…! Tá tudo bem aí?! … Ugh..!

— Ah… Oi… — Ela sorriu. — Você veio… me ajudar… também…?

Ao contrário de Ryan, Steve não foi capaz de ocultar o profundo misto de pena e desgosto com a cena presenciada.

Para evitar de gritar, o usuário de chamas cobriu sua boca com as ambas as mãos, deixando cair a sacola de primeiros socorros e, quando as gazes e curativos atingiram o chão, não passaram despercebidas.

— Você… pode ajudar… os meus… amigos…? Eles… precisam… de… ajuda… Eles… também… estão… com… dor…

Um pouco depois dela, vários corpos despedaçados se espalhavam em suas próprias poças escarlates.

— Ajuda… eles… primeiro… — pediu, ainda mais fraca. — Eles… estão… gritando… com… dor… Eles… sentem… dor… Alto… gritam… alto… de dor…

Nenhum dos cadáveres esboçava um rascunho de movimento, agora não mais que partes de carne e ossos, tomadas pelos insetos.

E foi quando ele não pôde suportar mais.

— Lilliana… Você gosta do Havaí, não gosta?

— Havaí…? Eu… eu… gosto… — Ela riu. — O… sol… quentinho… tão… quentinho…

— Você gosta da praia, não é? Você adorou ir para lá quando tinha nove anos, não foi? Você até brigou com a sua irmã lá.

“Ryan…”

Steve, molhado em lágrimas, travou, absorto, ao captar o que seu antigo inimigo havia planejado.

— Você gosta de lá; é a sua memória mais querida, de quando você ainda podia ver a sua irmã. Você queria poder ver ela de novo e falar tudo o que não disse, estou certo?

“Ryan…!”

Não iria suportar assistir mais daquilo, então, sem olhar, catou a sacola do chão e se afastou, cobrindo os olhos com o braço.

Steve encostou no trecho mais limpo da parede, assim que não os pudesse ouvir mais, e chorou.

— Eu ajudei a fazer isso… Eu ajudei a fazer isso…

Mesmo que indiretamente, ali estavam os resultados de suas ações; os frutos do contrato que assinou com o próprio diabo, em busca de interesses tão egoístas.

— Eles não teriam morrido se não estivessem desesperados por conta do fogo… Teriam se escondido e sobrevivido…!

Os choques de seu punho contra parede sólida criavam faíscas tão fracas quanto sua coragem para se opor a isso antes que fosse tarde demais, pois, em verdade, sempre soube se tratar de uma péssima ideia.

— Tocar fogo na biblioteca só para salvar todo mundo depois…? O que eu tava pensando…? Mas que merda… que merda de plano foi essa…?!

Bateu na parede até manchá-la de seu próprio sangue, que ferveu, desbotando a tinta.

— Eu vou me odiar tanto… Eu vou me odiar… para sempre…!

Pôde chorar por três minutos inteiros, até que escutou passos vagarosos, porém pesados, se aproximando.

— Ela tá no Havaí agora, comendo peixe assado, debaixo daquele sol tão quente, vendo o céu tão azul…

Ryan olhava a própria mão, tingida, com alguns fios amarelados presos entre os dedos. Em sua expressão, transparecia um imenso vazio.

— Ela tá se divertindo… com seus pais e, principalmente, com a irmã, que ela já não via há tanto tempo... Ela pediu desculpas por tudo o que disse para a irmã quando elas brigaram, também.

Tal qual na chegada de uma tempestade, o ar mudou de modo súbito.

— EU JÁ ENTENDI A MENSAGEM…! AGORA, DÁ PARA PARAR COM ESSA PALHAÇADA?!

O Savoia entrou em um acesso de fúria. Tomado por um ódio de proporções indescritíveis, pegou um extintor vazio do chão, arremessando-o o mais distante possível.

— Queria me ensinar uma lição de moral?! Queria que eu aprendesse?! Olha, eu aprendi…! Eu aprendi, caramba…!

A raiva pura e visceral em seus olhos roxos assombrou o usuário de chamas, que, mesmo inconsciente do contexto por trás das afirmações, temia o resultado de ficar em seu caminho.

Assim, se afastou, observando de longe a imensa destruição feita por ele, usando de suas próprias unhas para arrancar papeis e informativos do quadro verde.

— “Isso não é problema meu”, hein? Olha só, como o mundo dá voltas… — encostou o rosto na parede, cerrando os dentes à vista. — Eu vi ele, e eu não gostei da cara daquele maldito, logo que os nossos olhares se encontraram…

Puxou ar de um modo agudo, ao ponto do barulho gerado, semelhante a um assobio, fazer doer os ouvidos.

— Ele pareceu suspeito, no típico perfil de pessoa que estava pronto para fazer uma burrada das grandes, e ainda assim, eu fiz vista grossa e deixei ele ir embora… Do que custava eu ter dado um toque de cinco segundos na cabeça do cara, depois nocauteado ele e o jogado numa esquina qualquer dessa porcaria de cidade?! Para mim, isso não ia levar dois minutos…!

Vários segundos passaram sem uma frase a mais, com o absoluto silêncio sendo impedido de existir pelos sons das respirações erráticas do mais alto, intercaladas com algo que soava como risos suprimidos.

— A gente vai parar ele… Ou, ao menos, eu vou… Eu deixei esse problema ir longe demais com a minha preguiça de fazer alguma coisa… Eu vou colocar um fim nisso…

[...]

— Alô… É… Eu... Eu preciso da polícia...

Quase deixou o celular cair por entre os dedos trêmulos, por pouco o mantendo o mais próximo possível de seu peito, servindo de única fonte de luz na sala em breu.

— 911, qual a sua emergência? — A voz feminina do outro lado citou, roboticamente, o mesmo de sempre.

— Eu… Eu preciso de ajuda… Na Elderlog High… Um massacre… Ele… Ele matou…! Ele…!

— Senhora, por favor, tente manter a calma! — O tom, antes tão massante, se alterou ao seu oposto. — Um massacre? Você se encontra em um local seguro no momento? Pode descrever o assassino?

A mulher, exaltada, a encheu de perguntas que não tinha fôlego ou condição de responder, não ajudando suas circunstâncias já tão repletas de desespero.

— Eu… Eu…!

E conforme pensava nas palavras a citar, esquecendo de fonemas e significados, ouviu algo ao longe, e esse som fez sua espinha congelar.

— Eu posso te escutar…!

Uma voz cantarolante, acompanhada de um solo suave de guitarra, perigosamente próximo do ponto tão abandonado que escolheu para se esconder.

De tão aterrorizada, esqueceu que ainda tinha de responder às ditas perguntas.

— Senhora? Senhora?! Você ainda está na linha?! Senhora?!

— Chamando o 911? Tá de boa. Não tem como eles virem antes de eu terminar com vocês e mesmo que venham, vai dar em nada.

Sua sombra foi visível pelo pequeno espaço entre o chão e a porta da sala inutilizada do Clube de Música.

— Não… Não… Não…!

— Senhora?! Por favor… Senhora?!

— Não… Não…! Alguém… ALGUÉM ME AJUDA…! Eu… EU NÃO QUERO MORRER…!

A porta explodiu e seus pedaços se espalharam por todos os lados. A onda de choque gerada perturbou a densa camada de poeira recobrindo os velhos instrumentos, já abandonados há alguns anos.

— Interessante que você diga isso, levando em conta que foram as últimas palavras dela, também… Parece que, no final, vocês menininhas dos livros são todas rosquinhas de um mesmo pacote!

A atendente não mais a inquiria, graças ao impacto da onda de energia sobre o aparelho, causando interferências e erros no sistema, levando a tela a piscar em padrões indiscerníveis, trocando entre todos os aplicativos.

— Uma já foi e agora é a vez da segunda. Depois de você, só vai faltar mais uma.

O sangue nas roupas e pele de Isabella Clarks não lhe pertencia e afirmar que sua pele tinha qualquer ferimento seria um enorme engano.

— Me desculpa… Me desculpa… Por favor, me desculpa…

A carne em suas unhas, branca e com consistência de creme, não a deixava, por mais que tentasse limpar. As marcas haveriam de perdurar, para sempre lembrá-la de seu pecado.

— Me desculpa, Ava… Me desculpa…

Chegou na hora exata, a tempo de ver seus últimos segundos de desespero, antes de ter o crânio estourado como uma melancia vítima de uma marretada.

O mais aterrorizante não foi o contato da massa encefálica com sua bochecha, ou o olho verde de sua amiga rolar até tocar seu pé, muito menos assistir aos fios de cabelo voando, longe do escalpo.

— Eu deveria ter sido uma amiga melhor… Eu deveria ter te escutado… 

Mas sim, o olhar, clamando por ajuda, quando mais uma vez, ela não fez absolutamente nada.

— Eu não faço a menor ideia de que rolêzinho interno foi esse que vocês tiveram, mas é melhor parar de falar com um cadáver como se ele pudesse te ouvir!

O punho firme de Jacob a tentou alcançar, olhos exibindo o mesmo brilho amarelado da primeira vez.

— NÃO!

Isabella tentou fugir para trás de um grande piano, porém não teve sucesso e faltando tão pouco para se ocultar na mobília, teve o tornozelo agarrado.

— SOCORRO…! ALGUÉM ME AJUDA… SOCORRO…! — fincou as unhas no chão, as levando a quebrar e sangrar. — NÃO! NÃO…!

— Para de se debater! — Jacob acumulou energia na palma da mão.

O ar em torno do punho a segurar a articulação da garota se distorceu e vibrou.

— AAAARGH…! GAAAAAAAAH!

Os gritos chorosos de Isabella ecoaram por todo o corredor do terceiro piso, mas, por mais longe que fossem, não seriam ouvidos em meio ao caos.

— Agora, vamos para o outro tornozelo!

— NÃO! POR FAVOR, NÃO! … GAAAAAAAAH!

— Com qual das duas mãos quer começar?

… … …

Pelo fim da tortura, Isabella não tinha forças para gritar ou chorar.

— Duas já foram. Falta apenas a terceira… E eu não gostei do jeito que aquela me encarou…

Tomou a guitarra, admirando uma última vez sua criação.

— Eu quero… morrer…

O suspiro baixo quase não foi captado, vindo de um corpo distorcido. A jovem, antes perfeita demais — ao menos a nível externo —, agora não passava de algo quebrado.

Não pôde evitar rir um pouco do que ela pediu.

— Não! — riu, em deleite. — Você não vai morrer! Olha só que incrível!

— Não… Eu… quero morrer… Me mata… Me… mata…

— Não vai morrer. — Final, impôs. — Mas se quer tanto, porque não tenta sozinha? Fica de pé e pula dessa janela! Ah… Parece que não dá, né?

Incapaz de qualquer coisa, chorou e soluçou, pedindo desculpas, incontáveis vezes.

— Sabe, minha audição é muito boa e eu ouvi a conversa de vocês antes. Olhando assim, você merece a sua condição.

Saiu pela porta destroçada e estalou os dedos, pronto para mais um solo durante sua caçada pela que mais odiava entre as três.

— Pensa bastante, porque é só o que vai poder fazer, a partir de agora.

E ele a deixou, sozinha com seus próprios pensamentos, com uma vida desprovida de todo o seu valor.

— Ava… Me perdoa… Me perdoa… Isso dói… Dói muito… Me perdoa… Eu quero morrer… Quero morrer…

O que antes eram pés e mãos foram feitos em massas disformes de ossos pulverizados e seus cotovelos e joelhos, inteiramente destroçados; músculos perderam inserções e ligamentos se rasgaram além de qualquer reparo.

— Morrer… Eu preciso morrer…

Tentou morder a própria língua e causar uma hemorragia, porém sequer para isso tinha energia. Confinada em seu próprio corpo, olhou para o alto, mirando o teto escuro da sala deixada para trás.



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