Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 70: As Fraquezas da Mente

— Precisamos conversar sobre como cada fração dessa história se movimentou até chegar nessa bagunça, mas antes disso…

A fala rasgada lutou para ecoar entre a fumaça e o caos generalizado. Por toda a extensão do corredor da biblioteca, qualquer coisa além de dois palmos à frente se tornava impossível de ver.

— … Vamos achar um lugar onde a gente possa ao menos ter um pouco mais de ar fresco…

Sem hesitar, Ryan chutou a primeira porta que viu, enviando um imenso estrondo pelo caminho.

As dobradiças que uniam a madeira à parede se soltaram como parafusos mal-apertados, oferecendo resistência quase nula à tremenda potência.

“Esse cara…”

Steve já pensava nele como um louco desde seus primeiros segundos de interação, porém, agora, tal perspectiva foi elevada ao quadrado e ele ainda não conseguia navegar entre o fato de ele estar tão ferido e apresentar tanta força.

De qualquer forma que fosse, ele permanecia inexpressivo, sequer se importando com a linha de sangue constante a escorrer de seu nariz.

— Você espera aí fora — comandou. — Vou checar o estado da sala e ver se dá para discutir alguma coisa aqui dentro.

Ryan tomou o primeiro passo na sala. Ali de fora, a fumaça não os permitiu verem, e logo que ele saiu do cobertor tóxico, se deparou com algo que poderia ser ambos ótimo ou terrível.

Kyaaah! — Uma garota gritou a plenos pulmões, fechando-se em si mesma e no aglomerado ao lado. — Por favor… Por favor, não… não nos mate…!

Ela se juntou a um grupo de mais oito estudantes e dois professores, acumulados em um canto próximo da torneira e, por coincidência, do armário com bandagens.

“Ótimo. Tive sorte o suficiente para acabar esbarrando na enfermaria.”

Nunca se sentiu tão feliz, diante de tantos instrumentos para o cuidado da saúde e kits de primeiros socorros, porém, mesmo em frente a tamanha vitória, o elefante no cômodo não podia ser ignorado.

“... Ou melhor, a galera que escolheu se esconder no cômodo…”

— Por favor… Não faça nada com a gente… A gente… a gente promete que não vai dizer nada…! A gente… promete…!

“O que gente em pânico não diz só para tentar sobreviver…?” fez uma pergunta retórica. “A verdade é que isso é tanto o maior clichê, quanto a maior mentira a ser dita numa situação dessas.”

Mas ele não tinha tempo a perder e usar sua habilidade estaria fora de questão, então, foi forçado a tomar o caminho óbvio e, ironicamente, em seu caso, o menos utilizado.

— Eu não vou fazer nada com vocês. Tudo o que eu quero são as ataduras e esparadrapos que estão bem aí atrás.

Anunciou do jeito mais sério e neutro quanto pôde, deixando os ombros soltos e os braços ao longo do corpo, para não posar como ameaça, os encarando de frente, sem expressão alguma.

“Tomara que isso funcione…”

Levou vários segundos de uma encarada sem piedade por parte dos 13, até que, enfim, a mesma garota resolveu quebrar o denso silêncio.

— Você… não tá aqui para matar a gente…? — Em pânico, riu. — Você não tá aqui para…

— Não. — Ele a interrompeu. — Eu não quero matar vocês, nem fazer nada de mais… E eu espero que isso tenha ficado bem claro.

Outro tempo sem reação por parte da massa fez a angústia enterrada no peito do rapaz crescer um pouco mais.

“Esses babacas estúpidos… Não é à toa que morrem quando algo assim acontece…!”

Se aprendeu algo em cinco anos, foi que a mente humana é muito mais fraca do que se gosta de admitir, e qualquer pequena coisa — até mesmo o menor dos medos —, mais do que serve para quebrar esse sistema tão delicado.

Logo, ele seria tão estúpido quanto por não tomar vantagem disso.

“Vocês pediram por isso…”

Revirou discretamente os olhos, antes de levantar os braços e as mãos, tomar uma expressão ampla de surpresa e…

Boo!

… … …

KYAAAAAH! SOCORRO…!

Em uma fração de segundos, a manada se levantou e correu, um tanto desorganizadamente, para além da porta de entrada. A velocidade de fuga foi astronômica, demonstrativa do puro terror que sua pobre tentativa despertou em seus corações.

“Aliás… Eu nem sei se posso chamar isso de ‘tentativa’...”

Tomado de surpresa pela eficácia de seu método, engoliu o seco e fitou o armário com portas de vidro, cheio de dezenas de rolos com cheiro de produto de limpeza.

“Vou precisar cobrir esses ferimentos…”

Com as janelas abertas, teria um suprimento de ar fresco, água da torneira e um lugar para planejar os próximos passos. O bom cenário o fez impaciente, a ponto de negligenciar seu estado.

— Droga… — suspirou, agarrando-se na parede próxima.

— Ryan? — Steve foi ouvido ali fora. — Aconteceu… alguma coisa…?

O ruivo entrou na enfermaria, para dar de cara com uma visão que parte de si já dizia estar prestes a acontecer.

— Ryan…!

— Eu… eu tô legal… Foi só parte do efeito colateral…

Ajoelhado, sua mão destra foi coberta de sangue, jorrando em abundância por seu nariz.

— O único motivo de eu e você termos sobrevivido àquele seu “ataque final” foi a minha interferência… Porque, se eu não tivesse aparecido…

Assistiu horrorizado à imagem do rapaz se erguendo com dificuldades, alcançando o armário e rompendo através do vidro com um soco.

— … A essa altura… nós dois seríamos pouco mais que duas pilhas de cinzas… E antes que você questione… eu sei que você não é imune ao fogo… uma vez que ele não esteja mais no seu domínio… né?

O jovem de cabelos em padrão e cor de brasa estremeceu com a revelação.

— Como… como você sabe…?

— É o que eu faço… — disse, frio e factual. — Eu leio mentes. Faço isso… há algum tempo… um pouco antes que você…

Em gestos robóticos, tomou um rolo de gaze e deu início à aplicação sobre a carne viva de seu braço. Seus giros, frenéticos, acompanhavam a tenacidade de sua encarada, que sequer piscava.

E enquanto isso se dava, o sangue não parava de gotejar, em um fluxo mais intenso.

— Você tinha metade da coisa feita… e quando eu tomei noção do tamanho que aquilo ia ter… e da destruição que ia causar…

E somente com um pouco mais de atenção que Steve notou: seus olhos estavam brilhando, transmitindo uma luminosidade quase imperceptível.

— … eu entrei em pânico… e fiz o meu máximo para te impedir… Nós dois devíamos ficar gratos… por ter funcionado…

“... Então foi isso…”

O mesmo riso amargo de seu inferno pessoal lhe escapou por entre os lábios.

— Então… Tudo aquilo que eu vi… Tudo não passou de criação sua, né? Foi só você tentando me mostrar coisas para me convencer?

Ele tinha alguma esperança, única coisa que sempre teve em uma relativa abundância.

— Você fez alguma coisa que encheu a minha mente com aquelas imagens, né? Eu acho que tô entendendo…

Quis poder crer naquilo que até seu próprio espírito tinha a ciência de ser mentira.

— Errado… Eu não criei nada…

A pronúncia seca foi a pior parte, por ser a que carregou os fatos, detalhes que não se proporia a aceitar.

— Eu não criei nada… Eu não tive como… Faltou… o tempo para isso… porque, como eu disse… Eu entrei em pânico…

Seus olhos focaram nele, sentado em uma das macas, pé direito a tocar o chão, bebendo de uma bolsa de glicose que, em condições normais, iria para o sangue de alguém em maus bocados.

Em poucos goles, esvaziou a coisa toda e jogou no chão, do lado de todos os cacos de vidro.

— A única coisa que eu pude fazer foi aprisionar a sua consciência por uns poucos segundos…

Seja por impressão ou pura realidade, o açúcar o encheu com uma dose extra de vida, mostrada quando ele saltou da maca, alongando a musculatura do pescoço.

— Pense nisso como eu te prendendo dentro da sua própria cabeça. Tudo o que você viu quando esteve lá são coisas em que sempre pensou, tópicos recorrentes, mundanos, etc.

Não parou a explicação, tirando do tempo de fala para catar o máximo de ataduras e as guardando nos bolsos internos do casaco em trapos.

— Seu cérebro vai te lembrar do que você julga ser importante, e as informações mais importantes são as que vão aparecer, significando dizer que as coisas que se lembrou foram as que mais tiveram impacto para você, no momento.

— Então… Então o que você tá tentando me dizer é…

Desejou pensar em sua experiência como uma lição de moral boba, criada artificialmente com restos do que Ryan foi capaz de juntar, amarrada às pressas, na tentativa de escapar do fogo.

— Isso. Você se mostrou aquelas coisas. Eu tive zero influência, além de te jogar lá para me defender.

Mas não encontrava modos de negar suas palavras, no fundo ciente do sentido que tinham. Ele não mentiu.

Um quase-silêncio permeou o ar, impedido de ser pela pilhagem do mais alto às prateleiras, levando a qualquer coisa que julgasse importante. Nesse tempo, Steve tomava coragem para falar.

— Quando ele me entregou aquela carta, eu pensei que as coisas fossem melhorar…

Não houve resposta diferente do som de objetos sendo revirados e isso fez os poucos segundos nos quais estiveram ali adquirirem a sensação de terem se esticado.

— Ele saia de todas as minhas fraquezas, de todos os meus sonhos… Ele me contou tudo o que eu sempre me contei, mas com uma esperança que eu nunca tive… com uma confiança que eu nunca tive…

Fechou os olhos e repousou a testa na maca mais próxima, ajoelhado pateticamente no chão frio.

— Ele me mostrou que eu podia ser grande, me convenceu de que eu ia conquistar coisas, de que ia deixar de ser essa… falha… — engoliu, em pausa. — Ele me convenceu com argumentos que, olhando agora… soam tão patéticos que eu nem consigo acreditar que caí neles…!

Descontou a frustração no tecido branco, acertando-o com seu punho. No local do contato, pequenas brasas se formaram, espalhando vagarosamente, para logo morrerem.

— Eu sou fraco… tão fraco… E mesmo depois de ganhar esse poder… eu ainda continuo fraco…!

O choro caiu na escura marca circular, apagando os últimos resquícios do escarlate devorador. Em angústia e agonia, fincou as unhas no metal, moldando-o.

— Eu quase matei pessoas…! — exclamou, abafado. — Gente que não tinha nada com isso… gente que não tinha porcaria nenhuma haver com a minha vida…! Eu me odeio…!

Três socos na maca levantaram uma chama viva que queimou, odiosa, por algum tempo, apagada antes que o lugar se enchesse de tanta fumaça quanto os corredores, por uma ventania vinda das janelas.

— Mas você já sabe disso, né…? Com o seu poder de entrar em mentes e tal… Eu te contar essas coisas… Isso é irrelevante… Significa que eu tô só sendo tão chorão como sempre e…!

— Pega.

— Huh…? — O leve impacto de objeto macio com sua cabeça o puxou para a realidade. — Isso…

Um rolo de esparadrapo, um pouco desarrumado pelo modo como foi jogado. O tecido rolou pela maca queimada, até parar quase na borda.

— Guarda isso no seu bolso, porque a gente vai ter um trabalho e tanto para fazer.

Ryan não deixou seu lugar, mais próximo da porta. No momento, ele tinha sua mão esquerda — enfaixada da ponta dos dedos até o ombro — na maçaneta.

— Mas… A gente…

— Com certeza ainda tem muita gente perdida e desesperada no meio desses corredores — interrompeu. — E essas pessoas vão precisar de ajuda, se não quiserem acabar morrendo, até porque, nesse tumulto, não tem como não se ferir, mesmo que você não seja um dos que esteja brigando.

Levou a mão ao chão e ao levantar, revelou uma sacola plástica transparente, cheia de tudo o que pôde pegar da enfermaria, desde soro fisiológico a pomadas diversas.

— Aqui, pega essa também.

— Woah…! — Com dificuldade, tomou o grande saco esvoaçante entre os braços, como um bebê. — Mas isso…!

— É para fazer primeiros socorros. Eu vou te deixar com essa tarefa.

Abriu um armário metálico ao seu lado e tirou uma bolsa com glicose da prateleira de cima, também jogando para ele.

— Pode beber sem medo. O gosto é meio brando… até porque isso aí é só água doce — riu de canto. — Vai restaurar um pouco das tuas energias.

“Eu… Eu vou fazer primeiros socorros…?”

— Ei, vamos logo. A gente não tem esse tempo todo para ficar perdendo.

O coração do Evans saltou em taquicardia ao notar a distância da voz de Ryan, já fora da sala. Em um sobressaltou, juntou as poucas coisas que caíram e o seguiu.

— Ei…! Espera por mim…! Eu vou contigo…!

… … …

“O próximo passo é rastrear quem fez isso…”

Agora, o Savoia tinha uma imagem clara de quem procurar.

“Pele pálida e cabelos pretos… olhos azuis, um deles oculto por uma franja…”

— Ei…! Ryan! Espera por mim…!

“Quais serão as motivações desse cara…?”

Seus sorrisos e maneirismos rebuscados soavam todos os alarmes errados.

— Como você andou tão rápido?! Eu quase não te alcanço…!

Quase no fim do corredor, os dois viram a mudança para melhor nos níveis de claridade.

— Foi você que ficou pensando por tempo demais — apontou com o olhar. — Mais alguns metros e chegamos na entrada.

A fumaça perdia densidade a cada passo, tornando mais fácil calcular os passos.

— Ei, Ryan…

— Fala.

— Quantas pessoas você acha que tem lá…? Digo… Lá fora, para resgatar.

O extintor de incêndio na lateral esquerda o apontou estarem na entrada. Seriam precisos mais alguns passos.

— Eu não faço ideia, mas eu sei que…

Simultaneamente, os dois puseram os pés no saguão principal, notando não existir quem precisasse de qualquer resgate.

— Kuh…!

Porque todos já estavam mortos.



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