Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 69: Branco

— Olá…? Onde… Alguém?! Alguém mais?!

O desespero enraizado brotou e cresceu de seu peito, sufocando o coração que lutava para bater. Por todos os lados que olhasse, existia apenas o infinito branco vazio.

— Alguém aqui?! Eu quero sair…! Alguém me tira daqui…!

Mesmo logicamente ciente de sua solidão, o espírito tomado por medo insistiu em clamar por socorro, em meio a passos cujos ecos produzidos corriam sem reverberar.

— Esse lugar… é horrível… Eu… tenho medo daqui…

Ajoelhou. Abaixo de seus pés, não via chão, percebendo como se estivesse meramente flutuando em lugar ausente do próprio conceito de gravidade.

— Eu… Eu sinto muito…

Abraçou os joelhos e deixou seus sentimentos vazarem em rios de lágrimas espessas. Logo ao deixarem seu queixo, as gotas se entregavam à imensidão, tornando-se tão nada como o resto.

— Eu não queria…

Frio, calor, barulho, silêncio, claro ou escuro… Esse era um lugar sem lugar, um oco na realidade, a coisa mais próxima imaginável do enigmático fenômeno da morte.

— Eu tô tão… sozinho…

Fechou os olhos e, mesmo assim, ainda via o branco, e em meio à sua melancolia, o nada ao seu redor tomou forma.

O branco se clivou e partiu, rasgando em várias cores diferentes. Aos poucos, esses tons contaminaram o cenário, movendo ondas violentas de tons, espessuras e densidades, unidas em porções distintas.

Um mundo tomou forma no quadro branco, o arrastando junto consigo. Sob seus pés, notou o movimento e isso o despertou.

— Huh…? Isso… Esse lugar…

Uma visão em terceira pessoa. Ao longe, viu um cenário peculiar a se desenrolar: uma memória.

— Steve, eu não quero mais saber de você.

A cena em frente a ele o fez lacrimejar outra vez. Uma memória, tão vívida, apreciada por uma nova perspectiva.

Ele tentou interagir com o cenário de alguma maneira e, talvez, salvar sua contraparte do passado de ter que passar por tamanha humilhação, porém, nada acontecia.

— Eu… Eu não posso fazer nada…?

Por mais que tentasse se mover, não tinha efeito, sendo obrigado a assistir, como um mero expectador, ao evento que mudou seu modo de ver o mundo.

— Mas… Stella, eu…!

A poucos metros, viu uma representação de si mesmo, do tempo em que seus cabelos eram castanhos, ao invés de na cor de fogo.

— Steve…! Faz alguma coisa…!

Sua voz não o alcançou; jamais iria.

— Nada disso! — Ela gritou. — Eu não quero mais saber de andar com um trouxa como você!

Um sorriso amargo escapou de sua boca, conformado com a situação.

— Então é assim que vai ser…?

Fechou os ouvidos, mas o barulho daquele diálogo surgiu dentro de sua cabeça.

Cerrou os olhos, porém, tal qual com o branco infinito, isso não o impedia de enxergar.

— Eu vou ter que me lembrar de tudo isso… Outra vez…?

O choro se intensificou, e tudo no que pensava era no quanto sempre foi tão estúpido.

— O Jeremy é muito melhor que você, seu pirralho! Considere que eu tive pena de você por todo esse tempo. Foi só isso!

— Eu… Eu pensei que…!

— Pensou errado, otário! — A garota se distanciou, chegando mais perto da terceira figura adiante. — E nunca mais se atreva a dizer a ninguém que a gente já se conversou antes!

Stella enrolou seus braços em torno do terceiro rapaz, mais forte e mais alto do que ele e, sem delongas, saiu, o deixando abandonado para suas próprias noções.

— Nunca no mundo que eu ia querer ser associada com um trouxa do seu nível…!

Esse foi o dia que o quebrou; o dia no qual tudo em que sempre acreditou foi por água abaixo.

— E ela ainda disse que gostava do meu jeito… da minha gentileza…

E tal qual se formaram, cada um dos construtos retrocedeu, voltando ao estável e cruel branco, sem formas, odores ou texturas.

— Nós sempre fomos amigos, desde a época de crianças… Ela disse que nunca ia me deixar… Foi a promessa que a gente fez… no meu aniversário de dez anos…

Queria se despedaçar de tanto chorar.

— Mas você cresceu, Stella… e todo mundo começou a te importunar por andar comigo… Eu sei… e foi por isso… foi por isso que eu nunca te culpei…!

Se odiou como nunca antes.

— Afinal… Quem ia querer ser lembrado por estar junto de um pateta que nem eu?!

O mundo mudou ao seu redor pela segunda vez e as cores revoltas se uniram em turbilhões e furacões, colorindo a paisagem com os tons de um verão passado.

— Eu… Eu não vou ter tempo para processar tudo isso… né?

A imutável natureza do preenchimento das cores o preencheu de agonia, e tendo sua suspeita confirmada, mordeu a ponta da língua.

— Isso… Isso é demais… Eu… Por favor, não me força a ver isso…!

Sem dar ouvidos, o cenário continuou a se revelar, mostrando seus desdobramentos escuros e tão pesados, de várias vestes negras.

— Ah… Oi. Desculpe estar incomodando vocês tão tarde e eu sei que já iam dormir, mas… Eu só precisava dizer uma coisa…

— Esse dia não…! — tentou implorar, correndo em direção à visão. — Eu não quero ver isso…!

— Já fazem três meses e ainda não temos nenhuma notícia… Eles… Eles estão pensando em encerrar as buscas pela Stella…

— Não… Não me mostra isso…

— Ela saiu com um tal de Jeremy para uma festa… Para ser honesta, eu só descobri sobre esse rapaz no dia seguinte ao sumiço dela… Ela fugiu de casa, saiu sem falar nada…

— Droga… Droga… Droga…! — Steve gritou, batendo no chão, no formato do piso de sua própria casa. — Por quê…?

— A polícia… descartou a possibilidade… de ela estar viva… A nossa Stella… Ela… Ela não vai mais voltar…

— Para… Só… para… Por favor…

— Minha filha…! Minha Stella… Era a minha Stella…!

“Por favor… Para…”

Não teve mais energias para vocalizar, inutilmente fechando os ouvidos com as mãos, enquanto uma corrente sem fim lhe deixava os olhos.

— Eu não fui forte… Eu não fui… Eu não consegui proteger ela…

… … …

— Ei, seu merdinha! É melhor você parar de incomodar a minha namorada, ou esse soco aqui vai fazer contato com sua cara…!

— Você deveria ter dito algo…

— Que foi? Quer outro?! Fala alguma coisa! Quero ver se tem coragem!

— Você deveria ter reagido…

— Eh, como eu imaginei… Um nerdola tímido! Vê se não fica muito confiante só porque ela te deu esse pouquinho de atenção por todos esses anos… Você só foi o cãozinho dela, seu trouxa!

— Você deveria… não ter sido desse jeito… Tão fraco…!

O tormento de suas lembranças deu lugar à sensação de súbita queda livre e com o novo conceito de aceleração adicionado a esse mundo, travou os dentes, para enfrentar a descida infinita.

— Você é sempre tão tímido… Deveria falar um pouco mais! 

“Eu sei que eu nunca te fiz orgulhosa, mãe… Você não merecia uma desgraça como eu…”

— Steve, desça do quarto para falar com as visitas! Agora!

“Você sempre esteve desapontado comigo, pai… Eu sei… Eu sei…”

— Olha como esse cara é… Todo esquisitão e isolado!

“Eu só queria ser um pouco mais… Mas como…?”

As vozes reverberaram, surgidas de seu âmago, o lembrando, outra vez, de tudo o que sempre soube. 

— Por que eu tenho que ser desse jeito…?

A queda chegou ao fim e o antes branco infinito foi convertido em um breu. Isso o convenceu de que o que viu antes não chegava perto de ser o absoluto vazio.

A ruína negra abraçou seu corpo inexistente, onde direções não faziam diferença — olhar para trás ou para baixo era a mesma coisa — e qualquer esperança de afogava no escuro tão denso que podia ser tocado.

— Você pode ser grande, Steve Evans… Pode ter tudo o que sempre quis.

A voz fez calafrios o tomarem, porém, não podia se mover.

— Tudo o que você precisa é aceitar. Pegue… Abra esse envelope e, depois, me diga como você se sente a respeito do que discutimos.

Nesse momento, era impossível se arrepender ainda mais.

— Você é alguém grande e eu estou te propondo essa oportunidade de ouro. Pode escolher não tomar, se assim quiser, mas eu suponho que, depois que descobrir todas as vantagens, vai acabar adquirindo esse pequeno produto, pelo preço de um pequeno favor que podemos discutir quando as coisas acalmarem um pouco!

Steve desejou rir, embora não por graça. Caso tivesse boca, escaparia por seus dentes um riso frio e sem vida, digno de alguém que tomou o conhecimento de ter sido enganado pelo diabo.

“Eu nunca teria tomado esse acordo maldito…”

Se pudesse voltar no tempo, rasgaria o maldito envelope na frente de seu “eu” do passado.

— Você é uma pessoa de valor, Steve! Não encontramos muitos como você por aí… Na verdade, eles são escassos demais e isso adiciona ao valor que possuem! Então, isso é só mais uma prova de que você é verdadeiramente especial!

“E pensar que ele conseguiu me conquistar com esse papinho… Uma conversa na qual eu caí, igual a um patinho… Eu só precisei ver o que ele podia fazer… E eu pensei que queria fazer aquilo também…”

Não necessitou que a lembrança fosse mostrada para se recordar do brilho azulado em seu único olho exposto, exalando graça e energia, comparáveis às de suas palavras, recobertas em açúcar.

Ele desapareceu, bem diante de seus olhos, assim que deixou o pequeno envelope branco em suas mãos.

“Aquele cara… Me usou como parte de um plano…”

Não fez perguntas demais, não revelou sequer o necessário e sequer se apresentou. Seu charme, tão distante, o comprou pela pessoa patética que sempre foi.

Afinal, que tipo de pessoa diria “não” a uma oportunidade tão brusca de mudança de vida?

“Eu queria me tornar um herói… e encontrar o meu próprio valor nesse mundo…”

A escuridão se moveu em cordas líquidas, densas ondas em um oceano noturno, conduzindo sua pisque pela infinidade, tornando-o nauseado.

“Eu queria ser alguém que tivesse algo pelo qual se destacar…”

A corrente sem destino o revelou o nojo final de si mesmo, o conceito que sempre pensou em combater, mas mentia, afirmando não ter as forças necessárias.

“... Eu não queria ter vivido esse tempo todo só na minha zona de conforto…”

Nunca os orgulhou porque nunca tentou um pouco mais. Nunca se superou porque nunca teve o desejo de dar um passo maior do que o habitual.

Durante dezessete anos, Steve Evans foi mediano: notas medianas, amizades medianas, atitudes medianas, levando a resultados medianos.

“Eu queria ter feito mais… Mas agora… eu não posso.”

Inferno — não um oceano de lava, cheio de almas gritantes, carne chamuscada e demônios —, o lugar onde seus piores erros são eternamente lembrados, onde se vivencia o auto desgosto da forma mais densa.

Era ali que ele estava.

“... Se eu tiver que passar a eternidade aqui…”

As vozes alegres de seus familiares e amigos, agora sem ele para atrapalhar, soaram firme em sua consciência a boiar.

“... É melhor que eu me acostume.”

Sem olhos para fechar, se deixou afundar no escuro, pronto para descer a um nível inferior de seu eterno tormento.

[...]

— Desistir… Então essa é a sua… primeira opção…

Seus olhos saltaram e toda a consciência entrou em conflito, envolta pela dor que sequer sabia apontar de onde veio.

— Que pena… porque não é isso que vai rolar…

Depois do que foram anos a fio, privado de todos os seus sentidos, com a exceção da autoconsciência, estar de volta em sua própria carne foi uma experiência assombrosa.

— ONDE?! O QUÊ?! — levantou em um sobressalto. — NÃO! OUTRA LEMBRANÇA NÃO…! NÃO!

— Se acalme…

A mão à sua frente lhe deu um tapa no rosto. Agora, um pouco mais orientado, seu cérebro apontou com perfeição a origem do incômodo.

— Isso… Eu…

E como peças em um jogo de encaixe, seu contexto passou a fazer sentido.

— Você não morreu… e nem isso é o inferno… Bem, até que parece ser… mas não… Você não morreu…

A temperatura extrema a colidir com sua pele foi a primeira coisa sentida e quando os olhos se ajustaram outra vez à intensa luminosidade alaranjada, seu senso de realidade retornou em plenitude.

— A biblioteca…! Eu… Aquelas garotas…! E…!

— Elas estão bem… longe daqui… eu espero…

O viu novamente, de pé à sua frente, apoiado na parede ao lado da porta de entrada, e a primeira coisa a se perceber foram seus terríveis ferimentos.

— Você… Como você…

— O nome é Ryan… Ryan Savoia… — ele disse, tendo dificuldades. — A gente só não morreu… porque eu consegui… impedir o seu ataque…

“Ryan Savoia…” repetiu seu nome, internamente.

O estado de Ryan o fazia questionar como permanecia de pé. Por seu nariz e olho esquerdo, ele escorria sangue, que gotejava por seu queixo até atingir o chão, já tendo formado uma pequena poça.

“Ele… Ele me impediu… Ele…”

O braço direito de seu casaco já não mais existia, consumido até um pouco abaixo do ombro, expondo um membro superior em carne viva.

Seu estado geral também não era dos melhores, pois mesmo apoiado naquela parede, parecia estar a poucos segundos de desmaiar por exaustão.

— Ei…

Seu chamado firme o arrancou de sua observação, levando-o a subitamente arrumar sua postura.

— Err… Sim?!

— A gente tem coisas para conversar… — falou, soando exausto. — … coisas sobre isso tudo…

Steve sabia que esse momento chegaria e, ciente de não estar em condições tão boas, não poderia fugir.

“Não… Para sincero, eu não quero mais fugir…”

Reunindo coragem, tocou o chão com sua destra.

“Eu fiquei fraco…”

O último ataque de fogo consumiu todas as suas energias e a mais simples mudança de posição seria suficiente para desmaiá-lo. Desse jeito, seria impossível levantar…

— Vamos…

Ryan o puxou por seus dois braços, depressa o pondo em pé, um feito de força que o impressionou, dado seu estado tão abatido quanto.

— Vamos sair daqui… esse lugar… vai ruir logo…

Os olhos púrpura focaram na imensidão, tomando nada além do destino, e em passos robóticos, forçou suas pernas a funcionarem.



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