Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 66: Emoção
A conveniência do banheiro estar ali não importava mais. Fosse ou não um fruto da sorte, sua proteção momentânea não deveria se estender mais.
“Mark… Onde é que você foi parar…?”
Engoliu a saliva, fixando o chão frio e branco, um pouco molhado. Não saía de sua cabeça o resumo dos segundos de agonia após a queda do extintor e o súbito desaparecimento de seu mais fiel escudeiro.
“Eu tenho que encontrar ele. Não posso ficar aqui, perdendo esse tempo todo.”
Talvez, não fosse mesmo um golpe de tanta sorte, mas ter sido enquadrada nessa série de circunstâncias poderia ter benefícios.
— Ei… Você tá se sentindo melhor agora?
Seus instintos afiados a levaram a mirar sua mão. Com certo cuidado e uma boa porção de firmeza, a jovem à sua frente acariciou-a de leve, em asseguramento.
— Olha, eu vou te pedir desculpas de novo pelo que ele fez. O Mike não sabia que quem estava entrando era uma pessoa, então… Foi mal…
Não precisou de seus poderes para confirmar a culpa legítima. A garota de fios loiros vacilava em encará-la, deixando o sorriso quebrado tomar o lugar das palavras.
— Não foi nada — respondeu, seca. — Além do mais, é irritante ficar pedindo desculpas o tempo inteiro, sabia?
Sua rispidez trouxe frieza ao gesto tão caloroso. As unhas se fincaram na pele por um breve instante, impedidas de afundar e fazerem doer demais.
A menina, acuada, as trouxe de volta ao seu próprio peito.
— É… Acho que você tenha razão… Embora você não tenha respondido a nenhum dos meus outros pedidos de desculpas…
Sua voz baixa não se propagou além de seus próprios limites carnosos e a atmosfera pesada da socialização falha a preencheu de agonia.
Sendo assim, sentiu-se feliz ao escutar as três batidas leves na porta.
— Hey, vocês duas tão de boa aí? — questionou a voz do outro lado. — Porque, aqui do lado de fora, o negócio ficou bem limpo!
Sem cerimônia, abriu-a e entrou, ainda levando consigo o grande, porém não tão pesado, extintor de incêndio.
Sentou-se, expulsando do moletom acinzentado alguns poucos insetos cambaleantes. Sem cuidado, repousou sua “arma” ao lado, pronto para contar do que viu.
— É estranho… — começou, inconformado. — Quase todos os insetos sumiram dessa área aqui, mas parece que o pessoal lá embaixo ainda tá sofrendo com isso…
Tomou seu tempo para dar uma olhada na janela. Em um suspiro, deixou caírem os ombros, catando de seu cabelo uma formiga restante e esmagando-a entre os dedos.
— O negócio é que parece ter outra coisa rolando, sabiam? Alguma coisa pegando fogo!
A revelação foi surpresa apenas para uma das duas garotas. Logo ao receber a informação, a loira pôde sentir seu coração saltar pela boca.
— Meu Deus… — agarrou a própria cabeça, em pânico. — Será que os ataques terroristas finalmente chegaram aqui na nossa cidade?
Lira não se atreveu a falar e, tomando o amargor das palavras dele, maquinou o seu plano.
“Vejamos se eu consigo manipular as emoções deles…”
Tirou sua mente da conversa, agradecendo o fato de a população geral não ter o menor conhecimento da verdade.
Mesmo abaixo de seus narizes, suas psiques limitadas não somavam por “a mais b”, temerosos de perderem seus lugares no mundo.
“Não vêem, mesmo que esteja tão claro.”
Em todo o caso, sentiu-se grata que não sabiam, já que, apenas assim poderia focar no necessário para mover as engrenagens de seus corações.
— Eu não fui muito longe, Lindsey… Quando os barulhos dos insetos começaram, eu soube que tinha que voltar… Não dava para ficar… Não com aquelas coisas querendo te comer vivo!
— É… Eu não acho que posso te culpar por ter feito a coisa certa…
A desconfortável ausência metafórica da terceira pessoa os levaram a notá-la mais, vista os encarando ao mesmo tempo que agarrava os próprios joelhos, pensativa.
Lindsey não precisou pensar demais para identificar sua pesada insatisfação.
— Mike, eu acho que você tem que se desculpar direito com ela… — chamou o garoto para mais perto. — Acho que ela pode ter pegado alguma raiva de ti.
Discutindo entre si, não perceberam o sutil sorriso nos lábios da Suzuki.
“Isso. Continuem produzindo os sentimentos que preciso puxar.”
Em questão de segundos, formulou um plano maior, um no qual já haviam se encaixado.
— Mas, eu já pedi desculpas…! E ela disse que não liga — buscou com os olhos — Eu não preciso falar mais nada, né?!
A meio-asiática se encheu de um semblante rancoroso, exibindo os dentes e expirando por entre suas brechas.
— Olha só! Eu disse que ela ainda se sente mal com o que você fez! — reclamou a segunda moça. — Você não fez direito!
— Ei…! — Ele tentou se defender. — Eu fiz por autodefesa! A gente podia ter morrido se fossem os insetos!
— Não interessa! Ela ainda está brava e você é o culpado!
“Droga…”
Ela esqueceu de contar com um fator terminantemente importante em tudo isso: a tragédia em si, ocorrendo nesse exato momento.
“A atmosfera emocional da escola continua muito carregada. As pessoas lá embaixo ainda estão passando por situações complicadas.”
As semanas de experiência a ensinaram várias coisas e a primeira delas é que algumas emoções se dissipam muito mais depressa do que outras.
— Tá vendo?! Se você tivesse pensado mais, a gente não estaria nessa, Mike!
— Beleza, mas do que adianta ficar colocando a culpa em mim depois que já aconteceu, hein, Lindsey?! Isso vai fazer as coisas voltarem? Eu acho que não!
— Mesmo assim! Você é o responsável! Assuma!
— Ah, cala a boca!
— Cala você!
A pequena briga se desenrolando logo adiante a lembrou de um conceito importante.
“Dá para dividir essas energias em positivas e negativas. Coisas como alegria, prazer e paixão fazem um impacto pequeno demais.”
— A gente se colocou nessa porque você resolveu me seguir! Eu ia me virar sozinho!
— Então você ia me abandonar?! Ia me deixar naquela sala, para ser pêga pelos insetos?!
— É, eu ia! E não me arrependo de pensar assim!
“E por outro lado, os negativos são muito mais potentes e energéticos, além de interferirem de uma forma mais intensa com o ambiente e as outras pessoas.”
Nesse mesmo segundo, a escola inteira se via coberta por uma densa névoa de negatividade e seus efeitos se refletiam aqui e agora.
“Emoções negativas em grande quantidade são capazes de contaminar as pessoas.”
— Você é horrível! Eu nunca deveria ter confiado em você!
— Ah, é?! Tarde demais, gênia! Agora eu tô preso contigo!
“Eu já sei o que fazer.”
— Quer saber?! — Mike agarrou o extintor. — Eu vou calar essa sua boca…!
Sem sua maior arma, teria de improvisar para escapar com vida do que mais soava como uma perfeitamente planejada armadilha.
“Eles não passam de meras pessoas normais, de mentes fracas e despreparadas.”
Mike, ensandecido pelo misto de raiva e pânico, mirou a cabeça de Lindsey com intenção assassina legítima. Consumido por seu ódio, se via certo do que faria.
— Agora… Agora você vai me matar…? Com ela nos olhando…?
A loira o evitou até sentir a parede em contato com suas costas, ciente de que seria morta, e tão furiosa quanto ele, gritou.
— MIKE, SEU MERDA! VOCÊ VAI ME MATAR NA FRENTE DELA?!
Ele não proferiu o menor dos sons, balançando o cilindro acima da cabeça, cego pelo vermelho em sua vista.
“Okay. Agora é o momento certo.”
Meros momentos antes do golpe final, se colocou no espaço entre eles e os tocou, esticando os dois braços para que tocassem seus tórax.
— Vocês dois… — Ela proferiu, em voz de comando. — Vocês dois irão me ajudar a chegar no andar de baixo.
O banheiro foi tomado por uma miríade de reações e emoções com a ação absurda e, de repente, todo o ressentimento desapareceu.
— Mike e Lindsey, vocês agora irão me servir de todo o coração.
O toque rasgou e triturou seus corações, os costurando de volta ao bel-prazer da Suzuki, preenchendo-os de um novo e efervescente desejo superior.
“Não posso manipulá-los à distância, mas o toque me permite ter uma ligação melhor.”
Seus gestos calculados a levaram ao resultado perfeito. Dali para frente, não tinha mais como errar.
— Preciso que me levem para fora daqui. Tenho coisas que preciso resolver no andar inferior, mas, claramente, não posso chegar lá sozinha.
A afiação dos olhos asiáticos mudou do rosto conquistado e refém de Mike para a surpresa de Lindsey. Sem perder tempo, os largou, estendendo suas mãos a ambos.
— Se sentem que foi mesmo tão mesmo tão ruim o que me aconteceu mais cedo, me paguem com esse favor.
Um básico jogo de inverter polaridades; um dos usos mais básicos de seu talento.
— Tá bom… A gente… A gente vai te levar… para onde você quiser…
Não poderia descrever o que sentiu, mesmo que tivesse todas as palavras do mundo. Era como se o simples gesto de ter o contato com seus dedos finos a fizesse parar de se preocupar.
Pessoas gritando lá fora? Irrelevante. Um possível incêndio? Sequer se importava.
Seu coração foi envolto com uma capa luminosa e quente, a revelando sua missão de vida.
— Vamos, vocês dois. Quero que me levem até o andar de baixo.
As histórias de sua religiosa avó falavam sobre aquela sensação — a pura e sufocante felicidade, capaz de vencer até mesmo o livre-arbítrio —, o contato com um anjo.
Lira não passava de uma completa estranha e sabia o quão complicadas as coisas estariam, assim que cruzasse aquela porta, porém… Sua mente não queria pensar.
Podia ver o mesmo estampado no rosto de Mike. Ambos, de algum modo que não importava, foram conquistados em uma questão de segundos.
— Para que ponto do primeiro piso você quer ir?
Se sentia feliz, plena na perspectiva de poder servir Lira. Se tivesse que dar sua vida por ela, o faria no exato segundo quando isso fosse solicitado.
Afinal, Lindsey a amava, embora sequer soubesse como ou por que.
— Como disse, preciso que me levem depressa para o andar de baixo — reforçou seu comando. — Quanto mais rápido puderem fazer isso, melhor.
— Positivo…!
Mike tinha o rosto tão rubro quanto um tomate, mas isso não o impediu de se dirigir à porta, desconsiderando todo o perigo envolvendo abri-la, sem pensar na chance de morrer.
— Perfeito. Vamos agora.
Sorriu um pouco, em satisfação, ciente de que, não importava como, sua enorme capacidade de passar por cima de qualquer problema falaria mais alto.
“Esses dois vão ser os servos perfeitos, ao menos por enquanto.”
Ser o biscoito mais esperto da vasilha não era tarefa fácil, mas seu raciocínio sempre a compensaria, no final.
— Esperem um pouco… Eu… Encontrei isso…
Lindsey chamou a atenção ao mostrar um cabo de vassoura, retirado do interior de uma das várias cabines. Não seria muito para lidar com insetos, porém, a defesa seria válida.
— Acha que isso está bom, Lira? — perguntou, hesitante. — Eu… Eu não sei se vou poder te proteger direito com isso…
— Não se preocupe com isso.
Os dedos em sua bochecha a fizeram tremer em um estranho prazer, distante do carnal. Na súbita encarada, vinda de tão próximo, viveu um carinho em seu próprio espírito.
— Contanto que você vá se sacrificar por mim, Lindsey, tudo é válido. Esteja pronta para atirar a sua vida em meu favor e a qualquer momento.
A influência de estranha origem em seu coração a forçou a dizer um grande “sim”. Sangue fluiu para suas bochechas pálidas, repletas de satisfação por estar sendo útil àquela que amava.
— Sim…! Eu… Eu vou…! Eu vou atirar a minha própria vida no ralo para te salvar…!
Agarrou o cabo com mais força, sem se importar com esse estranho brilho rosado nos olhos tão penetrantes e sedutores dessa que sequer conhecia o nome, mas queria tanto servir.
— Eu… Eu também…! — exclamou Mike. — Eu vou… Vou até o final para te ajudar…!
— Então vamos. Me guiem para o andar de baixo em segurança.
Não se incomodou em agradecer e, se qualquer coisa, achou a coisa toda fácil demais. Geralmente, seus alvos costumam dar um pouco mais de trabalho em manipular.
“Esses dois não devem questionar as minhas ordens por um tempo. Com a minha influência, os seus corações são meus.”
Puseram os pés para fora do banheiro pela primeira vez em quinze minutos, e o resultado disso a surpreendeu pesadamente. Não existia um único inseto no lugar todo.
“Mas isso ainda significa que eu tenho de tocá-los de tempos em tempos, ou os efeitos vão começar a passar.”
— Deixa que a gente te guia. Não queremos que se machuque.
O rapaz tomou o primeiro passo nos estranhos corredores vazios, brandindo o extintor comoum cavaleiro.
— Fica atrás da gente. Vamos te proteger.
Seja o que fosse, tinha pleno julgamento de não ser comum.
“As coisas não podem estar tão tranquilas assim…”
Conforme andavam, não viram sequer um sinal de ataque ou risco de serem pegos e isso a preocupava.
Com o tempo e a progressão no caminho, alguns poucos insetos surgiam, embora esparsos e comuns.
As mariposas não expressavam desejos de carnificina e as formigas preferiam muito mais os cadáveres congelados de seus semelhantes do que a carne fresca e quente do trio de sobreviventes.
— Lira, olha lá — apontou Lindsey. — Uma garota…!
Do corredor à direita do trio surgiu uma menina, com o braço apoiado na parede, andando em passos lentos.
— Será que deveríamos ajudar? Ou… Você prefere só seguir caminho?
A adolescente vestia um casaco preto e jeans comuns, com nada em sua aparência fugindo do ordinário: cabelos pretos, pele clara, um pouco acima do peso e de aparência cansada.
“Nada especial.”
Não encontrou motivos para perder tempo com ela.
— Vamos embora.
Os dois não ousaram questionar sua decisão e, portanto, fizeram o mesmo. Logo ao darem o primeiro passo para longe, porém, ouviram seu chamado.
— As borboletas… Elas… estão neles…
Caiu de joelhos e apenas com isso ficou clara a mancha sangrenta a escorrer de sua bochecha. Algo havia deixado profundos cortes de garras, logo abaixo do olho direito.
— Por favor… Eu não quero morrer nas mãos deles…
Com dificuldade, apoiou-se de pé outra vez, usando de cada remanescente de determinação para andar um pouco mais perto.
— Eles… Não vão ficar presos…
Crack.
— São eles… — disse, assombrada. — … Eles estão vindo…!
Crack, creak, crek. Os sons da madeira a partir ficavam mais altos e isso os disse que não faltava muito tempo para algo ainda pior acontecer.
“Merda…”
Lira aprontou a pistola, tomando noção da existência de uma quinta forma humanóide, logo atrás da dita garota.