Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 64: Máscara
— Vocês duas… Saiam daqui agora mesmo.
As palavras lentas, em tom tão grave, escaparam calmas por entre os lábios, tranquilas, diretas e sutis.
— ISSO NÃO FOI A PORCARIA DE UM PEDIDO! SAIAM DAQUI AGORA! E NÃO SE ATREVAM A FICAREM CORRENDO POR AÍ!
Elas o conheciam e a autoridade em sua voz foi a mesma presente em sua impiedosa encarada púrpura. Felizmente, ao menos dessa vez, não se pôs contra elas.
As pernas de Isabella clamaram por ação e movimento e em um súbito impulso de força, desequilibradamente ergueu a si mesma e à traumatizada Ava, que chorava sem parar.
— FAZ O QUE EU TÔ MANDANDO, GAROTA! SAI LOGO DA MERDA DESSE LUGAR!
A paciência dele chegava ao fim e nunca houve tempo para pensar e trabalhar o trauma de se estar em um inferno ardente.
A exclamação dele significou algo mais, porém.
“A gente tá atrapalhando ele…”
Somente soube, guiada pela firmeza em seu semblante. Ryan Savoia sabia o que iria fazer e as duas estavam em seu caminho.
Isabella não tinha o poder de escolher quem seria seu salvador e, em primeiro lugar, aquele momento trucidou qualquer impressão ruim que tivesse do rapaz à frente.
Pisou firme ali, para salvá-la e isso a fez compreender que ele tinha uma missão maior, algo muito além de sua compreensão e que, em honestidade, preferia não saber.
A moça de cabelos negros engoliu suas dúvidas diversas, sufocando-as ainda abaixo das suposições e apenas aceitou sua ignorância.
— Certo… — acenou. — Só tome cuidado… Ele… Solta fogo pelas mãos… De algum jeito…
Disse o absoluto necessário, antes de envolver os braços ao redor de Ava e sair com ela do recanto maldito, tão depressa quanto a adrenalina em seu sistema permitia.
Sem dizer uma palavra, o mascarado elevou sua mão a altura do ombro, fazendo surgir de sua palma uma pequena bola de fogo, que cintilou violenta, com somente um objetivo.
— Isso não vai acontecer.
Um livro colidiu com o projétil ao tomar uma trajetória assustadoramente precisa, forçando-o a explodir bem antes que chegasse sequer perto de queimar um fio de cabelo da garota ao longe.
— O seu inimigo sou eu.
Cada músculo entrou em visível espasmo por baixo das roupas pesadas, assombrados pela visão que tinham.
— Eu me pergunto uma coisa… Se você colocou tanto esforço em incendiar um lugar desse tamanho em questão de poucos minutos…
Seus olhos roxos cintilavam em luminosidade sobrenatural. Profundas, as ametistas focaram no cerne de sua face coberta pela máscara, olhando através.
— … Então por que você não fez mais forte? Um ataque tão fraco desse jeito não mataria ninguém… Por que não colocou a mesma potência de fogo que tinha na explosão que destroçou a cadeira?
Se sentiu verdadeiramente visto, desnudo pela profundidade presente naquelas írises, sequer duvidando que ele de fato o pudesse reconhecer por trás do fraco escudo de plástico.
Assim como ele, esse também é especial e ao pensar nisso, tomou um pouco de coragem para questioná-lo.
— Você… Você também… Você também foi chamado… Por ele…
Foi apenas um murmúrio, embora alto o suficiente para ser ouvido.
— “Ele”? Mas do que é que você tá falando? Quem é ele? Quer dizer que eu tô mesmo a um passo de descobrir quem foi o arrombado por trás dessa baixaria?!
A fumaça cobria o espaço entre eles, dificultando a visão. Se fazia de forte, contudo, sentia os pulmões queimarem de novo, não somente por culpa do calor.
— EU TE FIZ UMA PERGUNTA, SEU FILHO DA PUTA!
Um longo segundo de hesitação foi partido de modo súbito pela resposta do incendiário, que se aprontou em uma posição de combate, espalmando as mãos.
— Você tá me forçando a isso…! Eu… Eu não vou dizer nada…!
Fogo surgiu por cima das luvas, sem causar danos. Intranquilo, ele tomou distância.
— Você… Você vai ter que morrer…!
Mirou, mas as fasciculações o fizeram errar. A bola de fogo que lançou viajou na trajetória quase correta.
— Ah, então é assim que vai ser…? Não vou mentir, eu já antecipava que ia ser assim…
Ryan tinha seu pescoço inclinado para a esquerda e logo atrás de si, uma estante explodia em fervorosas chamas recém-animadas.
— E para ser bem sincero…
Deixou vazar toda sua raiva com a situação, enrijecendo os músculos e tendões de seus punhos.
— Eu não achei que fosse ser de outra maneira…!
Avançou, sem qualquer cuidado quanto à possibilidade de ser queimado vivo pelo segundo projétil. Da primeira estante, agarrou um livro, puxando um conjunto específico de memórias.
[...]
— Meu Deus… Meu santo Deus…
A força da expressão ganhava de qualquer real significado que tais palavras podiam ter, pois de forma alguma se considerava uma pessoa religiosa.
“Mas o que acabou de acontecer…? O fogo… Tudo virando um inferno de repente… E aquele cara todo coberto de roupas e com a máscara no rosto… Eu… Será que eu tô só alucinando tudo isso…?”
A negação ainda caía forte e por mais amante de literatura que fosse, tinha uma distinção clara do que deveria ser real ou não.
“Pessoas… Pessoas não soltam fogo… Elas… Elas não soltam fogo…”
Isabella sempre teve uma noção forte daquilo que julgava ser a verdade, apreciando o valor das narrativas pela criatividade de seu autor. Nesse ponto, se diferenciava de Emily por inteiro.
“Então… Então…”
Porém, a demonstração de segundos atrás ia contra toda sua construção mental e todo o contexto a trazia problemas.
“A gente vai ficar bem… A gente vai ficar bem…”
Não queria aceitar. Não desejava guardar para si que as coisas mudariam de uma forma tão brusca e…
— Isabella… Isabella…? A gente… O que vai acontecer com a gente…? A gente… A gente vai morrer…?
De fato, ela ainda tinha o mundo real para se preocupar e, se qualquer coisa, presenciar as lágrimas de Ava a preencheram de uma estranha felicidade.
— Não, não, não…! Não vamos pensar assim, Ava…! Não vai acontecer… Não vai acontecer… Nós vamos nos esconder e vamos fazer isso juntas…!
A abraçou com força, tentando esconder o pequeno sorriso.
“Eu só tenho que fazer o que ela faria no meu lugar…”
Ainda tinha uma utilidade, a de reunir todas elas e garantir sua segurança, afinal, é isso que Emily faria se estivesse ali.
“É isso! Eu só tenho que fazer como a Emily!”
Isabella vestiu uma fachada, acumulando confiança e estufando o peito. Podia pensar em todas essas coisas depois, pois, agora, deveria se dedicar a dar 200% de si.
— Ava, nós temos que encontrar a Olivia!
Precipitada, agarrou a pequena mão da amiga, desbravando o caminho entre a fumaça espessa.
— Isabella… Eu… Eu não quero mais isso…
A maior das duas parou quando seu corpo foi puxado para trás pelo pequeno, embora firme, braço de Ava. Curiosa quanto ao motivo de terem parado, a questionou sobre.
— Do que está falando, Ava? Nós estamos em uma situação de perigo! Não podemos ficar discutindo agora!
Não notou, mas sua voz derramava gotas de um veneno terrível entre as linhas.
— Eu… Eu não gosto da Olivia! Ela me maltrata com palavras, fala coisas que me deixam triste…! Eu não quero me encontrar com ela de novo! Eu não suporto mais ela, Isabella…!
— Huh?! — Isabella rebateu. — Ava, você por acaso está percebendo isso…? Você está sendo completamente egoísta!
— Eh…? — A loira travou, incapaz de formular qualquer esboço de resposta. — Isabella, eu…
— Você, você, você… É sempre tudo sobre você…! Você sempre chora quando não tem a atenção que quer, quando escuta qualquer coisinha… E agora, quer que eu abandone a Olivia por sua causa?!
Não teve como responder, engasgada nas próprias emoções. Isabella estava com raiva, furiosa.
— Sabe, talvez ela tenha razão! Deixa de ser uma criança e aprende de uma vez que o mundo não gira ao seu redor, Ava!
“Isabella…”
Demorou em buscar as palavras para dizer o que se passava em seu espírito e no instante em que as encontrou…
— Brigando outra vez? Que definição de amizade é essa que temos…
Ali estava ela, recostada na grande estrutura metálica do bebedouro.
— Olivia…!
Isabella sequer hesitou em abandoná-la.
— Você está bem?! Oh, céus! Eu estava tão preocupada…!
— Eu estou bem… Em minha maioria…
Seu moletom, antes rosa, lembrava um velho pedaço de trapo manchado.
— Isabella… Devo admitir que já fiquei cansada de me arrastar tão devagar… Pular com uma perna só é um tanto mais complicado do que eu imaginava que seria. Estava aqui tomando um pouco de ar e tentando recobrar as energias para reencontrar vocês…
— Nós já estamos aqui…! — respondeu prontamente, agachando-se para ficar ao seu nível. — Minha nossa… Eu… Posso ver o quanto isso está inchado… Mesmo por baixo da roupa…!
— É… Algum acéfalo fez a questão de não olhar para onde ia na hora do pânico e, por isso, pisou no meu tornozelo. Qualquer tentativa de mover dói mais do que qualquer outra coisa pela qual já passei.
Sorriu de todo o coração, gargalhando.
— Se você está aqui, significa que o Savoia interviu no momento certo. — Apressada, apoiou a mão destra no chão e ofereceu a canhota para Isabella. — Pode me ajudar a levantar?
— Ah, claro…!
O puxão foi cuidadoso e lento, aplicado de um modo suave para não forçar qualquer lesão. Ao enfim estar equilibrada sobre seu pé direito, percebeu o braço amigo por baixo de suas axilas.
— Aquele cara… Esse Savoia… Ele resolveu ficar…
— Ficar? — assistida, deu seu primeiro passo. — Que motivos ele teria para ficar?
— Eu acho que… A gente pode conversar sobre isso depois, não? É melhor só procurar um lugar para se esconder e esperarmos a poeira baixar… Figurativa e literalmente…!
O leve riso desconcertado buscava aliviar o humor, porém, entre suas leves gargalhadas, outro barulho de destacava no espaço virtualmente vazio: o som de choro, proveniente da distante Ava.
— Ava! — contente, chamou pela terceira. — Pode me ajudar a levar a Olivia? Ela está bem machucada e…
— Eu tô cansada… Eu tô cansada disso… E eu odeio vocês…!
Mostrou os dentes, juntos de um semblante besuntado por rios de lágrimas, de um coração destruído pelas palavras e cenas tão duras que viu e ouviu.
— Olha, Ava… — Isabella tentou argumentar. — O que eu falei… Eu sei que exagerei bastante, mas…
— “MAS” NADA, ISABELLA! — exclamou, enraivecida. — Você falou tudo o que realmente pensa naquela hora! E pela primeira vez! Você é mesmo a pior…!
Aquele momento a ensinou que Isabella sempre a considerou tão inconveniente quanto Olivia, a diferença sendo o seu caráter passivo e harmônico, que nunca a diria isso.
— Ava, por favor… Não é assim!
No entanto, quando não tinha mais a energia mental para manter a máscara…
— Sempre agindo como quem se importa com os outros acima de tudo… Você é uma pessoa tão boa, não é, Isabella? Mas… Olha só para você… NEM CONSEGUE SE LEVAR A PEDIR DESCULPAS!
— Ava…!
Brava, deu uma volta em 180 graus, se perdendo em meio à fumaça tão profunda.
[...]
“Eu odeio… Odeio, odeio, ODEIO…!”
Sem rumo, escolheu qualquer lugar. Seu destino não importava, contanto que fosse bem longe daquelas duas.
“Eu nunca mais quero ver elas… NUNCA MAIS!”
As pessoas nunca a levavam a sério, então desde cedo aprendeu a compensar com uma personalidade forte, em uma tentativa de, enfim, impor algum respeito.
Com isso, fez os valentões e baderneiros pararem de incomodar, embora ao mesmo tempo ficasse conhecida como alguém incapaz de socializar e que não tinha amigos.
Em virtude disso, às vezes lia ou escrevia para passar o tempo, criando seus próprios cenários e mundos, onde as pessoas eram boas e se vivia de um jeito feliz.
Sua confiança na própria escrita era tanta que resolveu submeter uma pequena crônica para um evento de Literatura Inglesa, escrita com tanto carinho.
“Naquele dia… Eu pensei que as coisas mudariam…”
Ao fim do evento, foi abordada por alma ambiciosa e entusiasmada que até então só tinha ouvido falar sobre, lhe trazendo a animado convite para compor parte de seu clube.
Pensou em recusar, mas ao pensar melhor, se perguntou “por que não?”
“Eu pensei que faria amizades de verdade ali…”
Durante o período de pouco mais de um ano como membro do Clube de Literatura, foram poucas as vezes em que se sentiu de fato incluída no grupo. Dentre as outras três, Emily foi a única que sempre a tratou do jeito como merecia.
“Emily… Por que você teve que ficar doente…? Por que você também decidiu me deixar…?”
Sem Emily ali, foi jogada de volta ao abandono.
“Elas não se importam comigo de verdade… Só me tratam como um peso morto…! Eu detesto elas… Eu detesto cada uma delas…!”
Pensar naquela cena a fazia querer socar uma parede até que seus punhos quebrassem e, em simultâneo, chorar até alagar a escola inteira.
“Ela me deixou de lado… Me jogou fora daquele jeito… Para ficar sorrindo para ela…!”
Foi a gota d’água para todos os seus pesados dias, a confirmação de que nunca foi relevante.
O rumo que tomava não fazia diferença, já que duvidava muito estar sequer sendo seguida.
“Eu não suporto mais a minha vida…”
Sem amigos, com uma má reputação… Quem iria querer viver desse jeito?
“Eu não aguento mais isso…”
Foi amaldiçoada pelo destino, fadada a nunca ter a felicidade com a qual tanto sonhou.
— Se eu estivesse morta… Elas nem ligariam!
Tomou um caminho para a esquerda, sem olhar para onde andava.
— Ouch…!
Seu pequeno corpo foi mandado ao chão pelo impacto com algo rígido. À princípio, julgou ter sido outro fruto de sua má sorte, que a fez dar de cara com uma parede, porém…
— Foi isso que os meus ouvidos pegaram? “Se eu estivesse morta, elas nem ligariam”?
A voz a fez congelar.
— Ora, ora… Veja só quem eu encontrei por aqui…!
Seus olhos verdes focaram sua forma em um gesto reflexo, acompanhado pela onda de puro terror ao captar seus contornos.
— Eu me lembro bem de você, sua pirralha maldita!
Não confundiria o cabelo castanho desgrenhado e o físico sutilmente musculoso desse rapaz com um sorriso tão louco.
— E eu vou te fazer pagar por ter atrapalhado!
Ele levantou a mão e o fenômeno que se seguiu disso arrancou quaisquer restos de ar em seus pulmões.