Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 93: Fraqueza
— Toma essa…!
As fibras musculares tocaram notas gritantes na posterior da coxa direita da garota na aplicação do chute.
— Ugh…! — Ryan cambaleou para trás, atordoado. — Não pense… que vai a algum lugar…!
O contato rígido e doloroso do sapato deixou um leve sangramento no nariz do rapaz e, com a dor, veio o reflexo de proteção, a render breves momentos que teria de utilizar sabiamente.
— Argh…! — afetada pelos efeitos do súbito estiramento, se reergueu, trazendo o máximo de si para passar por ele.
Já havia algum tempo desde as últimas aulas de karatê e a ferrugem vinda da falta de prática a relembrou da importância de alongamentos diários.
“Eu acho que lesionei…!”
Mesmo com a profunda dor em forma de repuxado servindo de constante alarme para o fato de não se encontrar em bom estado para fugir, o impulso da adrenalina a levou a ignorar tal chamado, sugar o ar e tomar a decisão consciente mais drástica do dia.
“Por favor, caia…!”
Sem pensar, trancou os dentes e se jogou com o pouco impulso acumulado contra a estante em brasas à direita, acertando a madeira em cheio e levando-a a cair.
— Ugh…!
O impacto reverberou no corpo na forma de um eco e embora quisesse gritar, focou-se no objetivo, fixada no fato de que Ryan não iria parar tão fácil.
— Ugh…! — A reclamação dele foi ouvida de longe, o tom roxo tingindo a fumaça. — Não tem para ir! Eu vou te encontrar de qualquer jeito, garota… E olha que, mesmo depois dessa, eu ainda tô me sentindo em posição de ser piedoso…!
O Savoia surgiu das cinzas, carregando um grande pedaço de madeira, deixando, lentamente, que seu rosto aparecesse entre a atmosfera poluída.
— Eu bem que gostaria que as coisas pudessem rolar de um jeito melhor entre nós, mas…
O baque surdo do choque da arma improvisada contra o chão da biblioteca dispersou um tremendo eco. Ao ouvir, o coração de Ann se resfriou, quase a ponto de escapar pela boca.
Ryan dirigiu a ela uma encarada especial — afiada, a ponto de atravessá-la e se prender ao fundo da alma —, antes de deixar, outra vez, que o tom monótono narrasse os eventos seguintes.
— … As coisas não podem ser tão fáceis; elas nunca são… Certamente não foram para mim, até aqui.
Desesperada com a aproximação extrema, levou a força aos braços para tentar se erguer.
— Uhk…! — Dor afiada ascendeu do pé à cabeça, arruinando a tentativa. — O meu pé…!
A estrutura da estante caída se organizou do jeito certo — ou, nesse caso, errado — para envolvê-la até acima do tornozelo.
A peça em particular onde a perna atingiu se quebrou, formando uma verdadeira armadilha de urso.
— Não…! Não…! — Em pânico se debateu, tentando livrar os jeans presos.
O compartimento inferior, mais fragilizado pelas chamas, se partiu em algumas partes afiadas, que penetraram fundo, rompendo a barreira da calça e se firmando no tecido.
Os pedaços geraram cortes superficiais, suficientes para fazer jorrar quantidades substanciais de sangue e as zonas mais afiadas davam luz a intensas dores perfurocortantes ao menor movimento.
— Não vai usar a sua habilidade para tentar fugir? Não vai tentar me vencer?! Vamos! Mostre tudo o que você tem…!
Não houve como se evadir dos pedaços antes de ser alcançada. Ryan pisou firme na madeira, lascando os pedaços que a mantinham presa.
— Agora, você vai me dizer tudo o que eu preciso saber, quer queira ou não.
Bruto, usou cada fragmento da imensa força dos dedos para elevar o corpo inteiro da garota pelo pescoço, fitando-a nos olhos agoniados, desesperados por ar.
— Hkkk…! Hgggh…! — tentou chutá-lo, sem sucesso. — Me… larga…!
O irmão de Hannah se impunha, impiedoso, a trazendo para perto, até que as lentes castanhas da adolescente focassem e refletissem o roxo ilimitado dos cristais odiosos.
Ela sentiu a respiração aquecida, colidindo com a pele no centro de seu peito, e o contraste entre as chamas externas e o incapacitante frio do próprio sangue a consumiu.
A presença de Ryan espalhava seu caráter avassalador, derrubando portas e janelas internas no caminho e, sem titubear, fez pó das mais grossas muralhas por ela erguidas.
E quando ele, enfim, chegou onde queria, a menina vivenciou a mesma sensação de antes, igual em espécie e tipo, mas não em intenção.
Se tornou quase impossível crer que o mesmo sangue tão acolhedor e confortável de Hannah era o mesmo presente na tamanha ameaça a destruí-la de forma tão sistemática.
— Arkh…! Gahh…! — tentou lutar contra a invasão de proporções tão absurdas. — Hkkk…!
Ao contrário da irmã, Ryan não se convidou a entrar, escolhendo invadir o seu espaço mais íntimo do mais brutal, deixando um caminho de destroços por onde andava.
“Ele… tá dentro da minha cabeça…!”
Ouvia os passos pesados dele, ecoando dentro do crânio, tomada por dores e puxões ao senti-lo operando a maquinaria de sua vida inteira, de forma tão indiscriminada.
A ponte entre eles a machucava, extirpando-a dos prazeres e selecionando as dores e não para levá-las embora; Ryan as relembrava, uma por uma, caçando até o fundo de cada gaveta.
Os segundos passaram como horas e o sofrimento de tantas lembranças não tinha fim. Sem parcimônia, ele cavava fundo, buscando, sedento.
— Huh…?
Dado o conjunto, a súbita parada na invasão representou um baque tão grande quanto o início.
— Não… Tem alguma coisa errada aqui… Eu devo ter interpretado… do jeito errado…
Confusão tomou em cheio o garoto de tamanho poder, o levando a fraquejar, apenas suficientemente para que ela pudesse tornar a respirar.
— Não tem como ser verdade…!
A falta de foco exposta na cara pasma abriu a brecha estratégica pela qual tanto esperou.
“Tem que ser agora…!”
Ann teve todo o cuidado de esconder a agulha de forma que não a perfurasse por acidente, ao fincá-la no próprio tecido do grosso casaco de couro preto.
Então, tomou o objeto com cuidado e, sem ter condições para hesitar, enterrou o conteúdo profundamente no pescoço do Savoia.
— … Ack…! — Ao ser perfurado, ele titubeou, ameaçando jogá-la no chão.
Felizmente, a garota foi mais veloz, aplicando um golpe firme de uma das mãos contra o cotovelo dele, forçando-o a largá-la.
— Eu… fiz…! — E, para terminar, tomou proveito completo ao aplicar um soco no centro do rosto do oponente, desorientando-o.
O combatente em trapos cobriu o rosto, dando vários passos retrógrados em busca de estabilidade, garantindo-a tempo o bastante para correr o mais longe quanto pudesse.
— Urgh…! Isso… O que foi isso que eu vi?!
As visões retiradas das memórias da garota pintavam um quadro de qualidades alienígenas; aquela jamais poderia ser Hannah.
“Ela não ficaria escondendo esse tipo de coisa… Esse não é o tipo de pessoa que ela é…!”
Ignorando a dor e o sangramento de seu nariz, o Savoia mais novo se apoiou em posição de largada, com foco pleno na imagem evanescente da aleatória garota à frente.
— A Hannah… Não ia me trair assim…! — exclamou aos quatro ventos, indo ao encontro dela.
Não queria acreditar nas coisas que viu e ouviu escapando da boca daquela que sempre aparentou ser tão vulnerável e alheia ao cotidiano do mundo por baixo dos panos.
“Por que eu nunca consegui ler ela?! Por que eu nunca achei essa informação?! Isso é óbvio, porque não tem como ser ela…! É tudo mentira!”
O grande impulso de energia tornou a perseguição simples e em questão de poucos segundos, cortou espaço o bastante para capturá-la ao esticar o braço.
“Isso é… mentira…!”
Usou o máximo da força, mas, de repente, seus passos se tornaram lentos, permitindo-a fugir por pouco.
“Ela não… faria isso…!”
Parou, tomando por súbito cansaço, derramando pesadas gotas de suor da testa besuntada. Não havia mais ânimo nele para a perseguição.
Algo estava acontecendo com seu corpo.
— A minha força… Eu tô perdendo a minha força…! — encarou as duas mãos, cavando buracos metafóricos nas palmas. — A Hannah… Ela tá querendo tirar a minha força…?! Por quê?!
Se recusou a aceitar até não ter mais a estrutura para tal; as peças se encaixavam logicamente, formando um conjunto de sentido inegável, para dizê-lo o que jamais queria ouvir.
Hannah escondia segredos grandes demais, de alguma forma o mantendo afastado e ignorante acerca de sua própria realidade.
— Por quê…?
Caiu de joelhos, conforme a misteriosa droga fazia efeito. Pouco a pouco, a energia, aparentemente infinita, era drenada para fora dele, tal qual a água acumulada do banheiro escorre pelo ralo.
— Eu podia ter feito tantas coisas com esse poder…
A visão tornou-se turva e nebulosa, roubando-lhe as distinções de formas e algumas cores; as mãos, antes microscópicamente analisáveis, agora sequer podiam ser distinguidas do chão.
— Eu não teria pisado na bola tantas vezes… Se eu fosse forte, eu…
Dolorosas lembranças de tantas pessoas formaram sombras nos cantos da mente do adolescente, a grande maioria sendo simples desconhecidos, embora algumas vozes se destacassem.
— Eu teria feito melhor… Eu teria feito melhor… Eu juro… que eu teria feito melhor…
Mentia na cara dura, mas não tinha como se importar; apenas não queria ser obrigado a voltar para a estaca zero, quando as coisas não tinham solução.
— Eu tô cansado de ser fraco… Eu não quero mais apanhar, Hannah… Não quero depender deles para me salvarem, só para ficarem repetindo na minha cara sobre a minha fraqueza...!
Quando tudo parecia perdido e ele viu as cores da morte, aquela luz brilhou fundo no peito, e o disse as coisas que sempre desejou ouvir.
— Quando eu pensei que não dava para vencer…! Eu já tinha perdido as esperanças…! Cinco anos, Hannah... Cinco anos sem uma vitória na vida...!
O fez ter a certeza de que jamais teria de passar por aquelas situações outra vez, tornando-o invencível ao seu lado, se permitindo ser manipulada ao bel-prazer, para satisfazer qualquer desejo.
— Isso me deixou vencer… Hannah, eu venci…! Uma vez na vida…! Eu fui forte… e venci…! Eu… Eu fiz bem…!
Não podia entender.
— Então por que você não tá orgulhosa de mim, Hannah…?! Eu venci…! Eu venci!
Do fundo do poço, saiu triunfante e muito maior, logo…
— Então… Por que você… fez isso… Hannah…? Você… dizia que sempre queria o melhor para mim… Você ficava triste… quando eu aparecia machucado…
… Por que justo ela, de todos os suspeitos possíveis ou não, iria arrancar dele tamanha vitória?
— Por que quer me impedir agora… quando eu não vou… trazer mais cicatrizes para casa… — Mente e alma do leitor de mentes se escureceram. — Por que…?
Ao fim de quase um minuto, o efeito final se deu, levando-o a cair como uma pedra no chão imundo.
“... Acabou…?”
A atmosfera opressora cedeu, a ponto de até o próprio fogo aparentar ter resfriado e, ao invés de fugir, ela lentamente tomou passos curtos, usando os objetos como apoio, visando alcançá-lo.
— Ryan… — falou com fraqueza ao capturá-lo na visão.
Cessou a corrida ao notar a desistência da perseguição e, oculta num corredor perpendicular qualquer e nada memorável, ouviu as lamentações dele.
— Ela acertou sobre você… — parou, a poucos metros do desfalecido. — Eu acho.
Escutá-lo findou com o medo e a permitiu relacionar-se com seu sofrimento. De certo modo, ambos representavam a mesma face de uma atitude, embora existisse uma clara diferença.
Porque, diferente dela, Ryan foi forte até o fim.
Pela tela, acompanhou boa porção da movimentação e aprendeu que esse garoto foi muito mais forte na prática do que ela jamais se imaginaria capaz em meros sonhos.
Quando a realidade apontou que vencer seria impossível, continuou lutando e ela invejou tal atitude.
Desde muito pequena, a lógica foi sua principal força motriz — se algo tivesse boa chance de sucesso, faria — e tal preferência a levou a aceitar, de princípio, a impossibilidade do sucesso.
Aquele sujeito, grande demais, sumindo e ressurgindo dos cantos, longe do alcance, se elevou como obstáculo impossível à simples garota que abandonou o karatê há mais de um ano.
Um cálculo fruto de lógica básica… e ainda assim, ele se esforçou em superar os resultados e vencer.
Sabia que ele também fez as mesmas operações — viu naqueles olhos, analíticos —, mas optou por um caminho diferente, de ignorar os dados e dar o melhor de si.
— Hehe… Hehehe… E eu ganhei… também…
Nos últimos segundos de consciência, a dona das marias-chiquinhas sorriu, satisfeita por, pela primeira vez, ter sido capaz de agir assim, também.
… … …
— Obrigada, Ann… Sério mesmo.
Cuidadosamente, a enfermeira removeu a finíssima agulha da base do pescoço da jovem, descartando-a para o fogo cuidar do resto e, devagar, a conduziu ao corredor, deitando-a nas cinzas.
As dores de cabeça sumiram, simbolizando o cessar daquele temido evento.
— Minha nossa… Olhar para isso me faz sentir muito culpada por te mandar para cá…
Hannah deslizou a unha do polegar contra a pele do indicador esquerdo, criando um sutil corte. Dele, não demorou para se formar uma gota de sangue, conduzida ao tornozelo da menina.
— Vai ficar melhor logo. Você vai acordar novinha em folha!
A gota caiu sobre a série de ferimentos, rapidamente absorvida pelo tecido exposto. Agora, restava apenas uma coisa a se fazer.
— Eu confio em você, sei que não odeia o meu irmão e, de verdade, eu te agradeço muito por tudo — mirou o fogo minguante, morrendo, devagar, por falta do que consumir. — Mas… eu não posso deixar isso escapar daqui… Eu sei que você entenderia, se pudesse me ouvir.
Luz violeta incidiu sobre a face desacordada e o toque suave na testa corroeu as várias memórias formadas nesse dia.
Todas, com exceção de uma.
— Se lembre da nossa promessa, certo? De que você vai ajudar o meu irmão e vigiar ele por mim… Você não vai lembrar de quem eu sou, mas… Eu vou ficar muito grata, okay?
Nos segundos adiante, cuidadosamente remodelou as lembranças de Ann-Marie, se apagando da equação e fazendo parecer que ela própria tomou todas as decisões sozinha.
Ao fim do processo, arrumou uma mecha de cabelos avulsa e, novamente, agradeceu.
— Obrigada.
A mulher não se deixou intimidar pelo fogo, marchando rítmica e velozmente, de volta ao cerne. Ali, se abaixou, tomando o braço da figura caída, o arrumando sobre os ombros.
— Me desculpa a demora, irmão.
Com facilidade levantou, erguendo peso demais como quem faz compras nas férias de verão e até tomou alguns instantes para observar o pacífico cenho dormente, antes de começar a andar.
— Agora vamos para casa, sim?