Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 94: Ressentimento
— Por que caralhos… você tá aqui…?
Grudado no chão ancião da quadra abandonada, Mark tentava manter os tremores sob controle.
— Mas que merda… Você tá fazendo aqui?!
Foi um reflexo — no preciso instante em que ela deu início à sua marcha tirânica, expondo-se das sombras, ele voltou para trás, sequer sentindo os próprios pés, desesperados por distância.
— QUE PORRA É ESSA?! — gritou, em alto e bom tom. — COMO TU SAIU DE LÁ E VOLTOU ATÉ AQUI SEM TEREM TE PEGO, SUA PUTA?!
— Ah, para…! Tu tá feliz em me ver, eu sei!
Ela — Samantha Wilson — abriu o mais largo dos sorrisos para ele, expondo ambas as carreiras de dentes semi-amarelados, antes de, lentamente, revelar o rosto inteiro, fora da escuridão.
— Você entendeu bem o que eu disse, Mark. Não me force a me repetir.
Por baixo desse semblante tão contente, raiva fervente evaporava pelos olhos castanhos da mulher. Na destra, levava um machado de emergência, tingido de líquido pútrido, vermelho.
CLIIIINK — a ferramenta deslizou pelo chão, deixando marcas em escarlate morto, as mesmas que tingiam o casaco e calça em jeans, esbanjados por ela.
Quem a visse não demoraria para categorizá-la como um sujeito perigoso.
— Ah, Mark…! Você não faz ideia do quanto eu esperei por esse dia…!
Terrível pressão exalava por cada poro daquela pele, vivenciada por ele, mesmo ainda tão distante. Os passos dela eram pesados, criando ecos impossíveis, mobilizando a estrutura.
Ficava mais óbvio não se tratar da mesma garota que vira pela última vez já faz pouco mais de um ano.
— Sabe como é que as coisas funcionam na cadeia, Mark? Sabe como te tratam quando você dá o seu primeiro passo lá dentro e eles entendem que chegou carne nova no pedaço?!
Os níveis de animosidade escalaram ao céu em questão de segundos, manifestando-se na forma do agarro no peito vivido pelo rapaz de fios negros; jamais admitiria seu terror, embora sequer precisasse.
Afinal, ela captava o odor no ar.
— Lá, você aprende muita coisa na marra. Não é nada igual aqui, um mundinho perfeito onde você faz quase tudo o que quiser… Lá dentro, se você quer ter o mínimo de dignidade, tem que seguir os passos direitinho e dançar numa batida podre.
A loira balançou o machado, respingando sangue em uma linha reta, perpendicular à mira dos olhos, aproveitando do impulso gerado para brandir o objeto lustroso, exibindo o intenso brilho da pintura.
— E quando você finalmente sobe, percebe que todo o seu caminho foi em vão, porque as pessoas não te respeitam de verdade; elas só te temem por seja lá o que tu tenha feito lá dentro e…
— … Por que você tá me contando essas coisas, sua puta desgraçada…?
A voz dele quase falhou em vencer a resistência imposta pelo ambiente, saindo como algo fraco e interrompido, por pouco inaudível.
— O que te faz pensar que eu quero ouvir esse seu monte de merda?!
Brilho rubro emanou da visão do Menotte, somando à dentição exposta. Num turbilhão de emoções, o jovem se mostrava disponível a quebrá-los com a mera pressão da mandíbula, a encarando.
— O que rola dentro da prisão…? Mas por que porra eu ia querer saber o que tem atrás de umas grades?!
Como no ano passado, rugiu, envolto na exata mesma raiva de antes. Ele não esperava que as coisas mudassem.
— Cala a porra da boca, sua fodida…! — falou com suficiente intensidade para mandar saliva esvoaçante à frente. — Por que eu ia querer saber se tu sofreu lá dentro?! Eu quero mais é que se foda…!
Ela, em resposta, se divertia com o ódio dele.
— … Até porque não fui eu que fiz por merecer…
E Mark não conseguia suportar ver o trabalho ir em vão.
— Até porque… não fui eu que matei uma pessoa.
Os dois se olharam e o sorriso da moça sumiu. Nos segundos seguintes, se formou entre eles um vácuo — a presença do nada, vazio tão profundo que se tornava sufocante.
— Mark…
Castanho e vermelho, negro e dourado, colidindo desenfreados em ondas de caos, ritmadas nas puxadas de ar.
— Você sabe que não foi desse jeito que aconteceu…
Os dedos da garota fincaram marcas na arma, espalhando mais frações de impaciência e, já no limite, bradou o bordão de seus últimos dias livres ao topo dos pulmões.
— NÃO FOI DAQUELE JEITO QUE ACONTECEU…!
A voz reverberou e ela foi ao encontro de seu eterno rival e jurado inimigo. Entre as sombras, Samantha moveu-se como um relâmpago, traçando uma linha reta em direção a ele.
— A mesma bosta de história de novo?! Ninguém acredita nessa merda…
Mark reagiu de imediato à investida veloz, chamando o máximo de si para um desvio calculado e mesmo diante de tamanha velocidade, os reflexos do rubronegro não falharam.
— … Porque todo mundo sabe que é a maior mentira…!
Respondeu com um salto para trás, seguido de três cambalhotas e ao aterrissar, tocou a bochecha esquerda, no exato ponto em que a lâmina de vento passou.
Felizmente, não houve sangue.
— Olha aqui, sua filha da puta…!
O vermelho profundo a emanar dele somou-se ao sombrio tom e, ensandecido, estalou as vértebras do pescoço, enquanto puxava o máximo de ar.
E ele a atravessou com os olhos, de maneira assassina.
— Tu espera mesmo que eu acredite nessa tua lorota? É sério?! Vai me dizer que não foi por sua causa que ela morreu?! Mesmo depois de um ano, tu ainda tá nessa?! Nessa porra de ficar inventando mentiras? De tentar se justificar?!
Trouxe a canhota ao rosto e a cobriu e, de repente, começou a gargalhar.
— Ahahahaha… Ah, sim… É nisso que você esperou que todo mundo acreditasse… Foi desse jeitinho que você olhou para a galera da polícia, quando vieram te catar…! Essa mesma cara fingida, de quem tenta enganar, dizendo que tá se sentindo mal por alguma coisa…!
O cintilar sanguinolento vazava por entre os espaços nos dedos, deixando o ambiente mais escuro e frio. Em pouco tempo, já não se via mais nada, além da pouca coisa abrangida pela luz vinda de cima.
— Se passou um ano, Sam…! Se passou A PORRA DE UM ANO INTEIRO…! E a primeira coisa que tu me faz quando chega aqui é mandar essa caceta de história?!
Mark se revelou, chutando a enferrujada grade de proteção que dividia a quadra das arquibancadas. O impacto do chute sobre a estrutura fragilizada fez cair uma grande barra de metal.
— E EU NÃO ACREDITO QUE TU AINDA ESPERA QUE ALGUÉM PENSE QUE UMA PESSOA CAIR GRITANDO LÁ DE CIMA FOI A CARALHA DE UM ACIDENTE…!
Houve um piscar de olhos e o rapaz sumiu entre as sombras, brandindo a nova arma. Em resposta, os instintos da loira se aguçaram, a levando a trazer o machado para mais perto do corpo.
Essa, porém, não era o detalhe mais interessante de longe.
— Tentando me intimidar agora, Mark? — Samantha sorriu, nada surpreendida.
Trouxe força para o braço direito, girando por completo com o corpo e o barulho do impacto entre os dois metais revelou algo não mais possível de se chamar “segredo”.
— Só conversa… Você sempre foi assim, Markinho, e eu nunca tive medo dessa sua atuação de merda, de quem vive de fingir que luta por alguma coisa…!
Outro impacto criou algumas faíscas. As íris, antes marrons no tom de mel, tomaram um forte brilho azulado profundo e com um único golpe, ela abriu um grande buraco na estrutura da quadra.
A barra tingida de verde se partiu em duas, rolando em direções distintas, dividida em metades perfeitas.
— Hey, Mark… só para você saber… — murmurou, quase suspirando.
O êxtase em doses incomparáveis tomou-lhe a corrente sanguínea, algo que sempre acontecia no uso daquele estranho talento, afinal, poucas pessoas entendem o real significado de se ter poder.
— Eu consigo te ver escondido aí, sabia?
Os dois pontos azuis travaram uma região única do mar de sombras e o fato de virem mais ataques serviu como a confirmação, quando o ambiente quieto disse o que mais quis ouvir.
— É um truquezinho legal. Pelo teu tipo, já deve ter pegado uma porrada de mina usando isso aí, né? Eu te conheço, sempre querendo se amostrar, pagando de bonzão… Essa porra de naipe teu nunca mudou.
O campo visual desviou para a esquerda em reflexo, seguida da reação do braço direito, agarrando algo firme em meio às trevas do palco ilusório.
A ilusão foi desfeita de imediato, revelando a perna esquerda dele entre os dedos finos e repletos de cicatrizes. Mark se via horrorizado com a ausência de blefe.
“Eh…?”
Não teve como reagir do modo mais apropriado, lutando para balancear o corpo no ar, ao ser jogado para longe.
— Hkkk…! — O jovem de vista rubra girou em pivô descontroladamente, cessando ao colidir com as grades de proteção à distância.
O baque gerado reverberou pela estrutura como um todo. As barras derrubaram pedaços de si mesmas, as redes entortaram e o ar escapou dos pulmões, roubado por potência jamais antes vista.
— É, você não mudou… Aliás, por que eu tive a impressão de que mudaria? Nunca te surgiu a necessidade disso, né?
— Cof…!
A pressão de poder respirar de novo o despertou em sobressalto. Assombrado, o pálido rapaz levou a destra ao peito, sentindo o coração pulsar, acelerado.
“Que poder… é esse…?”
A região dorsal doía em qualquer canto apontável e, da perna agarrada, pulsos inflamatórios o diziam que algo foi ferido desde o princípio, algo tão surpreendente que sequer pareceu real.
“Como ela pegou naquele pó…?”
Apoiou os braços no chão, realizando impulso para se levantar e o corpo ergueu somente um pouco, antes de cair ainda pior que antes, sem forças.
“Por quê…?”
Ele não podia esperar pela chance de apagar aquele sorriso de merda da cara dela, tal qual nos velhos tempos.
“Por que tinha que ser logo ela?!”
Mas até ele sabia que as coisas não podiam ser tão simples, afinal, a situação não era, de longe, a mesma do tempo em que a vida não acompanhava tantas preocupações.
“Por que logo ela tinha que ser compatível com aquela bosta?!”
Uma ironia do destino, evento impossível a níveis práticos e fundamentais; a maioria esmagadora das pessoas morria em questão de dias, ao ser exposta àquele composto.
“Então quais são as chances…?!”
Tentou se impor novamente, usando das barras para se levantar, na ausência do equilíbrio. Chutado para longe de qualquer orgulho, o de fios negros expunha os dentes sujos de sangue.
“Quais são as chances dessa porra ter se aplicado justamente a nós dois?!”
Não podia ser certo — os autores da causalidade chamada “destino” cometeram um grande erro e, em grande pressa, criaram a situação mais incompatível.
— Heh, olha só para você… Se não fosse tão engraçado te ver desse jeito, eu, só talvez, tivesse até um pouquinho de pena.
Nunca na vida ele foi tão consumido pela vontade de esganar aquele pescoço, até a última vértebra quebrar.
— Pelo jeito como você tá agora, tô vendo que as coisas andaram bem pacíficas, enquanto eu estive fora…! — A risada veio, sem sabor. — Parabéns, Mark! Você cumpriu mesmo aquela sua missão idiota de proteger a escola!
Queria apagar a gozação, fazer aquele sorriso afogar no próprio sangue e mostrar de exemplo para o mundo ver.
— Porque, pelo que eu tô vendo, mesmo com esse poder seu, não teve progresso nenhum! Você não mudou um pouquinho desde que a gente trocou porrada pela última vez, antes daqueles arrombados me jogarem na viatura…!
O reflexo de tosse, proveniente da dor em pontada, quase levou à perda do progresso em levantar. Já de pé, Mark cuspiu sangue, tomando-o entre os dedos brancos, cheios de calos e marcas.
Cerrou o punho, prometendo a si mesmo tingir o rosto dela da exata mesma cor.
— Se separar de mim te deixou fraco… Admite, vai! Eu era a única motivação para você buscar brigar melhor! No fundo, sempre me quis lá, porque eu legitimava a sua violência…!
“Cala a boca… Cala a porra da boca…”
— As coisas ficaram chatas depois que eu fui, né? Porque não tinha nenhuma outra barreira, nenhum outro inimigo para vencer… Do nada, você virou o maioral, e ninguém teve os culhões de te questionar por isso!
“Vê se para de falar merda…”
A temperatura do ódio interior do rapaz atingiu ponto crítico.
— Mas me diz, tu se sentiu bem? Tomar o trono deixou teu pau duro? … Responde! Eu tô tentando aprender o que rolou enquanto eu fiquei de fora do jogo!
Nem mais um segundo.
— Ah, olha só para ele…! — Samantha suspirou, satisfeita. — Tão putinho! Tão…!
— Já chega.
PANG…!
O fulgor rubro em forma humana acelerou para atingi-la em cheio, usando da grade arruinada como plataforma inicial; como um foguete, Mark se impulsionou de corpo inteiro, preparando um chute.
— Heh…! — riu, em mania odiosa. — Olha aqui, seu arrombado, deixa eu te dizer um negócio…
Vê-lo enterrado sob sete palmos de terror absoluto foi como música para os ouvidos da enrijecida dama.
— Tu não é o único aqui que tá puto até a ponta da língua…
A energia dispersada na partida dele lascou a madeira e expulsou poeira, apenas para acabar refém de uma simples e relativamente fina barra de ferro, pintada de vermelho.
Samantha sequer titubeou ao receber a imensa carga; uma parede impenetrável, assumindo a forma de mulher.
— … ENTÃO VÊ SE NÃO FICA QUERENDO TANTO PALCO…!
Fechou os dedos e deixou que a mente acelerada dele fizesse o trabalho de descobrir o resto.
— Por tudo o que tu fez comigo… Vai se foder, Mark!
Mal houve tempo o bastante para formar uma defesa improvisada com os braços e se estabeleceu um atraso no instante do contato; o fluxo cronológico se dilatou e, frente aos olhos, a quadra girou.
— GAAAACK…!
Quando o cérebro de Mark resolveu pegar no tranco, já era tarde demais para apartar a carga de voar por mais de sete metros da maneira mais adequada.
— URK…! GAH…!
Os choques consecutivos e variados de seu corpo contra o chão rígido e quebradiço se uniam à excruciante queimação chocante nos antebraços. Em tal ritmo, quicou oito vezes como uma bola de basquete, antes de, enfim, ser parado pelo atrito.
— Vai se foder, Mark…! VAI SE FODER E PARA DE FAZER ESSA CENINHA RIDÍCULA! Você não tem o direito de ficar puto! VOCÊ NÃO SABE O QUE É SOFRER…!
Por dois longos segundos, silêncio.
E, então…
— Eu não sei… o que é sofrer…?
Robótico, ergueu-se da pequena cratera formada no impacto final; envolto em sombras, dois pontos ganhavam destaque.
— Parar de fazer essa “ceninha ridícula”...?
Memórias do passado preenchiam os espaços vazios, os relembrando dos respectivos motivos daquele reencontro.
— Ah, por favor… Você não acabou de dizer isso, né, Sam…?
Vermelho.
— Aqui. Olha na minha cara e me diz isso agora.
“...!” Os apurados instintos exclamaram para que olhasse para trás.
PANG…!