Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 89: Território de Caça
— Daqui… não tem mais para onde ir.
Remanescentes de energia se uniram nas pontas dos dedos de Ryan. Caso posta em uma lâmpada, a eletricidade gerada por suas junções neuromusculares sequer a faria piscar.
— … Eu preciso fazer essa loucura acabar aqui…!
E foi por isso que ele uniu momentum ao realizar um giro de corpo inteiro, impulsionando o livro em uma trajetória não tão certeira.
Jacob não respondeu — não que ele pudesse —, se resumindo a encarar algo que não via de fato, logo à frente, permitindo que o objeto vergonhosamente passasse a vários centímetros de seu ouvido.
— Merda…!
A mira do Savoia denunciou as condições de todo o sistema ao falhar de modo tão penoso; de certa forma, ele manter-se de pé detinha de todo o direito a ser chamado de “milagre”.
A visão dele apresentava os primeiros sinais de apagamento e borrões singelos que, embora passassem com algumas piscadas, não se mantinham longe por muito tempo.
Cada músculo doía, presos em um estado de absurda e contraditória euforia, se degradando enquanto desejam por mais movimento, mesmo que incapazes de executá-lo.
“Se pelo menos o resto do meu corpo reagisse à dor desse jeito…!”
Para o agradável, sempre haveriam outras dez coisas detestáveis e enquanto os músculos mantinham entusiasmo frente ao desafio, o cérebro era mimado demais para isso.
Impaciente, a massa neuronal forçava os vasos sanguíneos em seu crânio a pulsarem vigorosamente, gerando amplo desconforto, agindo da forma mais exigente quanto possível por novo suprimento de glicose.
“Aí vem ele…”
Mas, infelizmente para o órgão, nutrição teria de esperar um pouco mais.
CRACK! CRACK!
Os passos guiaram o olhar vazio da carcaça incendiada daquilo que abandonou sua humanidade. Se Ryan andar se denominava um milagre, Jacob meramente existir urgia de uma denominação maior.
O ser humano é um ser frágil, passivo de acabar morto graças às a um ou outro pequeno buraco no corpo e a julgar por tal lógica, a cena à frente não deveria ser possível.
Afinal, como alguém pode continuar vivo e tão letal, quando coberto de incontáveis queimaduras, profundas a ponto de gordura e ossos serem feitos visíveis?
“Eu não tenho como ficar pensando nisso agora…!” Ryan se retirou da distração, preparando-se para correr mais longe.
Cansaço não o alcançava, dor não o impedia, racionalidade não mais existia para fazê-lo parar e se questionar e a coisa a perseguí-lo tão impiedosamente não faria quaisquer juízos, nem aqueles a respeito de si próprio.
CRACK! — Jacob pisou no chão repleto de madeira queimada, espatifando-a. De seus pés, ascendeu a vibração no ar, espalhada pelo corpo inteiro, contida sobrenaturalmente.
“Ele vai preparar um ataque…! Eu preciso sair do caminho!”
Os objetivos mais efetivos são aqueles ausentes de um raciocínio complexo; comida e bebida, sono e sexo, são coisas perpetuamente embutidas no fundo da psique, desejos fundamentais e irrisórios.
— … — Jacob inclinou o próprio corpo, deixando a perna direita à frente da esquerda, acumulando a energia na planta do pé destro e, sem hesitação, saltou alto.
“O quê?!” O Savoia entrou em pânico, se obrigando a agir para evitar o curso do impacto.
Com a energia gerada, foi capaz de se impulsionar em trajetória parabólica, alcançando acima das estantes mais baixas ao auge da altura, o levando ao contato brusco com o chão rígido.
— … — Em silêncio, penetrou no fundo da alma do outro rapaz ao vê-lo de lado, a menos de dois metros dele.
E antes mesmo que pudesse existir qualquer reação, os arredores explodiram em intensa vibração e barulho, suficientes para desnorteá-lo brevemente.
— Ghk…! — Cobrindo o rosto com os braços, Ryan atravessou outra terrível onda de tremores pela extensão pela de sua carne.
O impacto expulsou copiosas quantidades de cinzas e fumaça, abrindo um vácuo temporário que teve o Egan como peça central. Ao fim do evento, houve um piscar de olhos trocado entre eles.
“...!”
E o embate se iniciou, com o manipulador de sons tomando o partido, se mostrando irrestrito pela condição de sua carne ao preparar um soco potente, carregado com o excesso de energia sonora.
— Porcaria…! — reclamou, realizando um giro improvisado de corpo inteiro para se evadir.
O punho fechado resvalou a bochecha esquerda em extrema velocidade e o estranho contato vibratório foi o que apontou não ter acabado ali.
— Hkk…!
Forçando a agilidade ao limite, Ryan se ajoelhou, mastigando através das dores nos músculos dos joelhos; tempo nenhum depois, o ar foi mobilizado em uma nova explosão.
O intenso impacto pressórico o ensurdeceu e em plena agonia, Ryan cerrou os dentes, apoiou-se nos braços e aplicou um potente chute das duas pernas contra os joelhos de Jacob.
— Hkk! Argh…! — O organismo reagiu em agonia, suplicando-o para parar e ver o oponente caído o conduziu ao perigo de quase se entregar. — Eu não posso… desistir agora…!
Jacob tentou lhe agarrar um tornozelo, mas o invasor de memórias foi o mais veloz, rolando no chão.
— Gahk…! — Em tortura por si mesmo, se arrastou no chão.
Ryan quase caiu ao se colocar sobre os dois pés, movido pelas últimas moléculas ativas da adrenalina incendiante a lhe perfundir entre o sangue; em sua vista quase cega em meio ao caos, abriu espaço sem rumo certo.
“... Eu…”
Colidiu com mesas e cadeiras espalhadas, derrubando restos de madeira fragilizada, cansado demais para se importar com presença ou não de dor.
“... Eu pensei que isso fosse… facilitar as coisas…”
A lógica por trás do plano fazia sentido, pois, sem garganta ou uma pele para chamar de sua, não demoraria para que Jacob sucumbisse à combinação de asfixia e calor.
“... Não tá funcionando…”
Ele subestimou a força visceral que o guiava — a coisa cujo nome não podia ser “amor” —, presença além das limitações da carne, de rigidez sem comparação.
“... Como caralhos eu vou vencer disso…?”
Não se sentia à vontade para admitir, porém, vivia na pele o mesmo desespero, em nível e espécie, daqueles mortos pelas mãos cegas de vontade, pertencentes a Jacob Egan.
“O que eu… vou fazer…?”
O dia extenuante o drenou de parte de sua visão, não o permitindo ver a cadeira espatifada à frente.
— Ack…! — tropeçou, recebendo por todo corpo uma intensa onda dolorosa.
Por sorte, foi capaz de se apoiar em uma chamuscada estante de livros. Aquecido em excesso, o material queimou através da mão direita, derretendo a pele superficial.
— Aaaargh…! — trancou os dentes e, ao cair sobre o lado direito, abraçou o punho queimado, se contorcendo em sofrimento, como um verme.
Os estímulos eram vários.
— Para…! — gritou para si. — Para de doer…!
Se pondo e acumulando, uns sobre os outros; mistos, embora tão separados e discerníveis.
— Por que dói tanto…?! Por que não passa…?!
Barulhos agudos, temperatura escaldante… onde o desejo de vomitar as próprias vísceras se misturava a tantas outras coisas, diversas variedades de um único e temido fenômeno.
— Grrrrrrk…!
Dor.
… … …
— Ah… vê se fica calado… por um instante…!
Apoiou as mãos no chão de cinzas, tentando se erguer. Ao fazê-lo, a musculatura dos braços reclamou como nunca antes, o levando ao chão em tremores tetânicos.
— Me deixa continuar tentando…!
Tentou outra vez… Falhou, mais miseravelmente, em comparação à primeira vez. Nenhum dos insuficientes esforços o arrancaria do final de seu abismo.
— Por quê?! POR QUÊ?!
Ao atingir o fundo, sentiu dor.
— … Por que eu não posso continuar tentando…?
Dor, ao se deparar com a própria fraqueza; na vergonha de ter sido petulante em aceitar tamanho desafio.
— … O que eu tô fazendo errado…? O que tá me faltando?!
Dor, em imaginar que as coisas mudariam e refletir sobre ter crescido, em corpo e espírito, somente para descobrir o quão pouco de fato se progrediu.
— Eu pensei que tinha uma chance…!
CRACK! BOOM!
Não muito longe, ascendeu ao topo uma pluma de chamas e brasas. Sob ele, o chão tremeu, e o ar, pobre em oxigênio, se dispersou, levando altas doses de cinzas.
Jacob estava perigosamente perto e ele sequer tinha condições para se reerguer.
— Ahahaha… — Dentre os lábios secos, nasceu um riso amargo. — O que eu tô fazendo…? Brigando por pessoas que nunca deram a mínima para mim…!
A gota de suor, em fuga, evaporou logo ao tocar o chão.
— Eu tenho certeza de que nenhum deles ia se dar ao trabalho de me dizer um “obrigado” depois, porque são orgulhosos demais para isso…!
Memórias dos mortos na entrada vieram à tona; pessoas que ele não conhecia e com as quais não detinha qualquer obrigação, sujeitos além da salvação, que, por algum motivo, jurou vingar.
— Eu podia ter sido inteligente e fugido… Ao invés de querer bancar a porra do herói…! Eu nunca servi para essa porcaria…!
PAH! CRAACK!
A fumaça foi insuficiente para obstruir a forma cambaleante ao longe, tão tranquila e focada. Ao vê-lo, ao invés de ficar assombrado, Ryan se percebeu tomado por peculiar amargor.
— Filho da puta…
As células gritantes da garganta liberavam um gosto horrível e amargo: o sabor de se invejar alguém.
— Mas que merda é isso que te move…? Será que é mesmo a porra do poder do amor?! — Ele riu, mas não existia graça alguma. — Vai se foder com essa determinação…!
Não queria morrer, mas o destino não selecionou o seu lado e olhando para trás, notou ter sido a escolha certa, afinal, o destino a quem carece de objetivos é um presente jogado no lixo.
— E eu só queria continuar vivendo em paz…!
Ryan pôde gritar e reclamar, ciente da incapacidade de Jacob para compreender processos tão complexos. De certa forma, tê-lo como oponente vinha com a vantagem de não ser julgado.
Aquele cara não iria zombar dos motivos dele ou das frustrações; o queria morto e seguiria até o fim, sustentado por ossos e pele ausentes de consistência, mas ainda assim, melhor que ele.
Ele não precisava se fazer grande diante do Savoia, dado o simples fato de ser aquele de pé servir para elucidar tal ponto.
CRAAAACK…!
— … — O toque do sapato derretido na base da construção fez surgir pequenos abalos sísmicos.
O alcançou, agora a menos de dez metros do lugar que Ryan foi incapaz de deixar. Novamente, os dois se entreolharam, e a raiva dele foi respondida pelo mais profundo vazio.
“Não dá para colocar em palavras o quanto eu odeio tudo isso.”
A onda de som moldava o ar, fazendo-o dançar. A energia aumentava a cada mísero instante, alimentada pelos cliques das brasas e quedas de objetos incendiados.
“O Mark pode criar ilusões e sabe bater como ninguém, a Lira manipula sentimentos a ponto de literalmente esmagar o seu coração…”
O acumulado se uniu na mão direita, preso entre os dedos chamuscados, de músculos e tendões visíveis, e o brilho amarelado das írises contou o ataque final.
“E olha só para você… consegue destruir crânios com um toque. Mas olha o que eu posso fazer… Eu leio a porra de umas memórias…! É um poder patético!”
BOOOOOOOOOOOOM!
A liberação do grande foco sonoro veio em forma de onda, concentrada ao ponto de ser visível sem grandes dificuldades. Em câmera lenta, assistiu a aproximação da Lâmina de Som, amargurado, conforme um filme cruzou sua cabeça.
“Eu acordei sem saber quem eu sou…”
Cinzas levantaram e o fogo dançou, apagado pela passagem violenta da explosão.
“Tomei escolhas questionáveis…”
Restos da estante à frente foram feitos em serragem, num piscar de olhos.
“E agora, eu tô pagando o preço…”
Já podia perceber a vibração incidente na pele do rosto.
“E vai doer para cacete…”
A massa atingiu seu objetivo, arrasando o que havia pelo caminho, tornando em pó.
… … …
“Mas não vai ser em mim.”
Ryan apoiou-se sobre a perna esquerda, realizando um salto lateral, resultando em um desvio imperfeito, porém, suficiente.
“O ar respirável se acumula nas zonas mais baixas da sala quando ocorre um incêndio, certo, Olivia?”
O choque estraçalhou partes da mobília e atingiu de raspão o lado direito do corpo, espalhando a angustiante sensação de parestesia ao longo do braço.
“Eu sinto agora, e por mais que não queira admitir com todas as palavras e nem concorde com os seus métodos, entendi o que você quis me fazer aprender, Lira.”
As pontas dos dedos, tais quais outras partes do corpo, tinham conexão direta com o cérebro, graças aos vários nervos.
“E é por isso que…”
Os instintos mais alertas de Jacob vieram à tona quando sua presa, de aparência tão incapaz, fugiu entre as ruínas ardentes. Atento, ouvia as indicações dos instintos, que apontaram algo perturbador.
“... Até eu posso lutar bem se tiver uma boa memória dos seus movimentos, Mark.”
Ryan não mais fugia, muito pelo contrário. Confuso entre o som do fogo, os opressivos batimentos cardíacos se destacaram depressa.
— …! — Os instintos mais primitivos do rapaz se afloraram, conscientes do espaço geral e daquilo que vinha com ele.
Os ventos mudaram e junto deles, os sinais interpretados em sua pele quase ausente, e se antes via algo indigno de toda sua força, verdadeiro perigo agora o invadia.
— …
Não se preocupou, todavia, pois uma presa determinada não deixa de ser uma presa.