Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 90: Frustração

A gota de suor escorreu da testa, gerando o mais barulhento dos ecos ao tocar o chão. Ao redor dos resquícios de pele, o cobrindo, o calor impiedoso não permitia conforto.

— …!

Para a direita — tinha a certeza de estar lá —, oculto no meio das estantes em pedaços, enegrecidas e feitas em pó. O movimento ativou os instintos mais primordiais e os passos, tão pesados, o disseram.

Ele vinha de trás.

— … HAAAAAAAGH…! — O par de lâmpadas arroxeadas contraste com os dentes brancos à plena vista.

O punho de Ryan conectou com a superfície do braço direito, cessando o ataque de forma instantânea e, caso pudesse pensar, Jacob admiraria a forma como jamais foi uma ameaça.

— Isso ainda não acabou…!

— …! — Algo mudou, porém, e os mesmos instintos passaram a transferir uma mensagem diferente, de extremo perigo.

O ataque de Ryan não foi mais que a justificativa para algo maior — contato — e isso se provou na forma do fenômeno mais evitado e condicionalmente temido por todo ser humano: dor.

Kaaaaah…! — Na ausência de cordas vocais, a traquéia ressecada liberou ar, roubando-o da respiração venenosa do lugar repleto de fumaça.

Dor dos mais diversos tipos veio em um quociente veloz e final, formado de tantos métodos junto, embora separadamente sensíveis. Num piscar de olhos, o absurdo estímulo atingiu o cérebro, culminando no pior de tudo.

— Mais rápido…!

Outro soco, outra onda, sobrepujante a ponto da deformação muscular causada em seu rosto representar o menor dos problemas.

— Não é o bastante…!

Calor escaldante ferveu as terminações nervosas de pé a cabeça, levando cada célula a gritar em agonia, e conforme percebia-se envolto em metal fundido, outras cascatas ocupavam lugares distintos.

Buracos abriram em toda a extensão do corpo, feitos por lâminas dos mais diversos formatos e espessuras, invadindo o mais fundo quanto possível, sem atravessar, acumuladas dentro de um único instante.

Garras escalaram os braços, arrancando os restos da pele e a levando, em escavação rumo a algo desconhecido, irrompendo sem titubear até os ossos e os arranhando também.

Um agarro no peito, de dedos firmes, impedindo o coração de bater; sensação sufocante de agitação da mente…

… Mas só pela mente, pois somente disso ele precisaria e apenas nisso podia confiar.

— Eu preciso fazer mais rápido…!

Ryan Savoia se levava ao limite, seu estado atual o levando a crer que os dias de febre passados após lidar com Keith Webb não foram nada.

— Mais rápido ainda…!

Não era o suficiente, nunca seria. Enfraquecido, jamais seria capaz de fazer a condução nervosa em direção ao seu punho correr de forma tão eficiente.

— Droga…!

Soco a soco, os pensamentos se misturavam, conduzidos por um caminho não-habitual, injetados em fulgores pelas pontas ósseas das mãos fechadas. A informação sempre chegava com um delay e isso o tornava insatisfeito.

— Eu não vou morrer para você…!

Não podia mais sentir a mão destra, que sequer abria mais, de tão exausta. As inervações nas pontas dos dedos não detectavam mais nada.

— Mais… intenso…! — formou uma careta, forçando a mão a fechar pela última vez.

Passou a tentar algo que nunca fez antes, repassando para Jacob cada fragmento de sua raiva, deixando-o sentir, em detalhes, cada segundo de sua tortura nessa escola.

“Eu tô cansado de ter que passar por isso…”

Trancou os dentes, mirando no alvo atordoado adiante. Não haveria como errar e ele se certificaria disso, repassando as piores sensações, focado em fazê-lo sofrer.

“Eu tô cansado de continuar sofrendo por conta dessa merda!”

Frustração é o nome da energia que o movia, levando-o a encarar fundo no centro do peito chamuscado desse que jurou como inimigo e definir já ser hora de acabar com tal história.

“Esse cara tem que morrer…”

No instante em que viu tantos corpos, aceitou a realidade do jamais esquecimento e o extremo senso de responsabilidade que sempre repousou nos ombros.

“Eu vou ter pesadelos com aquela cena essa noite e em muitas, muitas outras…”

Olhar para aquilo o levou a, pela primeira vez em cinco anos, fazer uma promessa que de fato planejava cumprir, ao invés de um mero artifício para manter a boa convivência e usar pessoas.

“E para isso acontecer…”

O soco explodiu em potência, expulsando cinzas e fumaça do ar. Uma gota de sangue escorreu, despercebida pela perda acentuada de sensibilidade, advinda da extrema força das unhas contra a carne.

— … Eu vou ter que passar com tudo por cima de você, seu arrombado…!

PAF!

[…]

— Hkkk…! Ow! Ow! Ow…! — tomada por uma súbita dor de cabeça, a enfermeira ajoelhou, incapacitada.

— Eh…? — Ann, alguns passos à frente, voltou-se para olhar. — Hannah…! Minha nossa… Hannah…! Alguma coisa aconteceu?!

As preocupações que tinha com o ataque anterior tornaram-se mais contundentes ao perceber que, talvez, as coisas não correram tão bem quanto previamente imaginado.

— Você tá ferida?! Ele te acertou em algum lugar?! — ajoelhou, agarrando os ombros de Hannah. — Seja o que for, a gente precisa dar uma olhada…! Isso pode ser sério e…!

— Não… Não foi nada com o cara que nos atacou antes, Ann…

A interrupção da Savoia veio na forma de um toque firme no centro do peito de sua companhia. Tentando focar em suprimir a dor, a mulher em pijama hospitalar azul puxou o ar, lentamente, por entre os dentes.

— E ele… — disse, enigmática. — Tá ficando ruim… muito ruim…

Os olhos dela brilhavam em flashes de púrpura, ausentes de sincronia, e o pulso acelerado, visível nas salientes e quase vivas artérias de sua testa e pescoço, indicava o severo desconforto vivido.

Trêmula por espasmos dolorosos, a Savoia mais velha recostou na parede, sentada e puxando ar desesperadamente, ao mesmo tempo que tentava falar, com a vida, mais de cinco palavras por vez.

— Ele já não vai mais conseguir… É o que ele tá me dizendo… Não vai dar para isso se manter…  Eu sei… Eu sei… Eu tô tentando… Eu… vou chegar lá… Não… se preocupa…

“... O quê…?”

Cada palavra tomou um pedaço de seu entendimento da situação urgente e isso se intensificou quando Hannah passou a balbuciar coisas sem sentido.

— A gente precisa… parar ele… Eu… eu vou… Eu vou chegar lá…

A colocação das palavras e o modo como saíam de sua boca não pareciam ser dirigidos a ela. Era como se ela se comunicasse com outra pessoa, explicando coisas e se justificando para esse alguém.

“O que tá acontecendo…?”

E o conjunto das circunstâncias a fez ainda mais confusa. Ann não sabia o que fazer, como agir ou o que dizer, e a combinação disso com medos e traumas borrava as decisões potenciais de sua cabeça.

— Não… Não faz isso… É arriscado… demais… — suspirou as palavras, transpirando rios por cada poro. — Não… permita…! Em… hipótese… nenhuma…!

As últimas palavras saíram carregadas de emoção, assustando-a com o grande sobressalto. De respiração acelerada, a enfermeira focou em um ponto adiante de forma breve.

— Não pode fazer isso…! Não faça…! — exclamou ao topo dos pulmões empobrecidos. — Eu… Eu tenho uma ideia…!

Sem aviso, a assombrada Hannah agarrou ambas as mãos da garota.

— Eh?! — tomada de surpresa, Ann tentou recuar, sem sucesso.

— A biblioteca…! Você precisa ir lá…! Precisa fazer isso agora…!

— Uhh…! Eu…!

— Eu não vou aguentar muito…! Não vai dar para segurar…! Vai lá… Vai e para ele…! Para o meu irmão…!

A sempre tão tranquila personalidade luminosa minguou em algo feiamente desesperado e frágil; ela conhecia esse olhar, a súplica de alguém que não tem outra alternativa.

— Por favor…! — apertou mais forte. — Vai…! Só você pode…! Só você pode fazer isso por mim…! Hhhhhhrg! Aaaaaargh…!

A dor de cabeça se intensificou e logo, sangue passou a vazar das narinas e, incapaz de conter somente com a própria força de vontade, segurou a cabeça e se entregou a rolar no chão.

Ter de presenciar tamanho sofrimento fez lágrimas surgirem nos cantos dos olhos.

“O que… eu faço…?”

Ann-Marie Young encarou as próprias mãos trêmulas, besuntadas do suor frio.

“O que eu faço?!”

As afundou no próprio cabelo, puxando as marias-chiquinhas até doerem. Ela queria ajudar e iria, mas…

“Eu… tô com medo…”

Não queria vê-lo de novo e ter de se sentir desprotegida outra vez. Não desejava relembrar aquele sorriso podre, sempre observante…

“Eu não consigo…!”

Lágrimas rolaram e passou a hiperventilar, relembrando os dolorosos dias onde sequer podia fechar os olhos sem imaginar estar sendo assistida e feita de presa. Não pediria por mais daquilo.

“Eu não vou conseguir!”

Memórias, emoções e experiências se misturaram em um turbilhão incompreensível e medonho, elevando-se como um tornado no oceano, pronto para naufragar, estrangular, e…

— … Você… consegue…

“Huh…?”

Uma intensa, porém minimamente localizada dor a despertou para a realidade.

— Você… é a única que pode…

Uma grande agulha saiu de sua coxa, ausente de traços de sangue, mesmo estando tão profunda. No topo dela, uma seringa vazia, cujo conteúdo agora corria no sistema dela.

A sensação de calma e quietude de espírito foi imediata.

— Eu… confio em você… Faça isso… por mim… Por favor…

Hannah deu um sutil aperto na panturrilha da garota, antes de se encolher em posição fetal, para continuar amargando as intensas dores em marteladas no interior do crânio.

[…]

O choque com o alvo não aconteceu e o punho de Ryan parou no ar. A energia do impacto com a invisível parede sólida correu pelo braço, até culminar no ombro. 

— É claro que não ia ser fácil assim… Seria conveniente demais.

A parede feita de som teve sua energia hiperacumulada na forma de película, formando uma parede fina, porém, sólida e inamovível. Se Ryan pudesse sentí-la, perceberia uma sutil vibração, progressivamente mais intensa.

— É claro que isso não ia te derrubar…! Por que derrubaria?!

BOOM!

Jacob reagiu estarrecido, em seu próprio modo não-verbal, ao acrobático salto para trás dado pela presa. Antes fraco e incapaz, o Savoia viu-se envolvido em súbita nova energia.

— Não se distraia…! — Focado, segurou os resquícios de uma cadeira. — Não vai deixar as coisas mais fáceis para mim agora…!

Os restos de madeira quebraram a barreira criada pela fumaça em velocidade recorde e, estarrecido, o queimado por pouco desviou, atingido de raspão no ombro esquerdo.

— Vem para cima…! Eu quero quebrar essa tua cara de frente…!

Cada célula do rapaz leitor de mentes vibrava em absurda motivação, agindo como unidades carregadas ao pico do limite. 

Sobrecarregados, os músculos tensionavam sem relaxar por completo, ansiosos pela nova sequência de contrações e, se tivesse de descrever, afirmaria ter sido subitamente conectado a um gerador de alta potência, a derramar toda a carga produzida diretamente em seu corpo.

— Agora… — saltou, agachando-se e agarrando outro pedaço qualquer, antes de saltar alto. — … Eu tô me sentindo melhor que nunca…!

Foco transbordou em forma de sorriso ao ganhar os ares da biblioteca, derramando a intensa e ofuscante luz púrpura, espalhada na atmosfera tóxica.

Pouco a pouco, a sombra ficou mais clara e visível em meio ao branco acinzentado, separada em duas, com motivos diferentes de ser.

— Ah… Eu não entendo o que tá rolando comigo agora… Eu nunca fui forte desse jeito…!

A primeira sombra e a menor das duas repetiu o padrão do último ataque. Como uma lança, a madeira foi lançada com extrema potência, errando o Egan por meros centímetros.

— …! — Mas, quando ele notou a localização da segunda, já era tarde demais.

— … Mas eu não vou reclamar…!

A voz surgiu de trás e o chute em pistão no centro da lombar veio demasiado depressa, sugando o ar para fora dos pulmões danificados pelas temperaturas extremas.

— Isso… Eu sinto como se pudesse fazer tanta coisa…!

O corpo quase desfalecido decolou como um boneco por quase cinco metros, parado bruscamente ao se chocar com uma estante. Ao bater, dezenas de livros em chamas caíram, derramando restos de brasas sobre a carne queimada.

A ocorrência não significou nada para ele.

— … — Se ergueu roboticamente dentre a bagunça, utilizando uma explosão de som para mandar o papel em brasas para longe.

O evento criou uma chuva alaranjada nas imediações e Jacob fitou fundo nos olhos do inimigo, expressando ódio em forma de ar avulso, a sair pela traquéia, renovando as promessas de morte.

— Se eu ao menos tivesse essa força toda antes…!

Ryan se tornou algo completamente diferente.

— Se eu pudesse ter sido assim antes…!

Focado, eufórico e decidido, motivado ao cúmulo, constantemente se movendo e alongando a musculatura, incapaz de se manter parado.

— Que se foda, eu não tenho como ficar me preocupando com isso agora!

E, em especial, furioso, fato manifestado na luminosidade opressiva das jóias púrpuras, dirigida ao fundo da alma, desejando morte.

— Porque eu vou amassar qualquer um que ficar de gracinha no meu caminho… E você vai ser o primeiro — falou em tom frio, tomando um passo à frente.

Os sentidos do usuário de som se aguçaram, mas quando os olhos focaram na imagem móvel, não viram nada…

“...?!”

Nada, além do mais puro branco.



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