Chamado da Evolução Brasileira

Tradução: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 87: Id

— Ah… então é aí que você tava, Jacob Egan…

Imaginou que seria mais complicado, pois, em geral, se deparar com o Ego de alguém costuma exigir um pouco mais de trabalho, em comparação a somente saltar entre um par de Espaços Mentais.

“Mas eu não tô reclamando disso. Na real, tá até bom demais, me encontrar tão cedo assim com ele.”

As energias do Savoia estavam baixas e um próximo salto tinha altas chances de ser o último. De qualquer forma, não lhe restava muito tempo, tinha de fazer o que devia e rápido.

“O problema é que essas barreiras não vão deixar isso ser assim tão fácil.”

O objetivo podia até estar a poucos metros, mas alcançá-lo só se tornava mais difícil a cada momento passado, pois os problemas, de rostos e corpos tão belos, lutariam até o fim para não permití-lo sequer aproximar-se.

Dezenas de Abigail compartilhavam o espaço do sótão escurecido. Debaixo da fina luz lunar proveniente da janela, suas formas, perfeitas e polidas, exalavam profunda animosidade pelo invasor.

Ao contrário das primeiras, essas eram representações idênticas à verdadeira, em todas as suas cores, tons e expressões, desprovidas de falhas ou faltas, focadas em amá-lo e protegê-lo.

E o fariam, por mais doloroso e limitante; presas em um estado de organização que somente as próprias compreendiam, tomavam turnos em demonstrar um amor doente pelo rapaz em seus braços.

Ele se sentia longe de satisfeito e não foi preciso mais que uma encarada do Savoia para deixar isso bem claro e, entre carícias, beijos e declarações, o que restou ao adolescente foi olhar de volta ao novo observador e clamar por ajuda.

“Então é isso que deixou ele tão louco. Agora eu entendo tudo…”

O senso de “eu” perdeu seu lugar para tamanha carga emocional e instintiva. Jacob agia como um animal, pois esse era o melhor que sua cognição tão alterada tinha condições de fornecer.

O Ego de um ser humano deveria ser livre, mas Jacob? Não apenas se encontrava envolto por tantas criações de sua psique, como elas o aprisionaram, mantendo em absoluto cativeiro.

“Isso tá destruindo ele por dentro…”

A gosma roxa o prendia ao chão, endurecida, e mesmo visivelmente se debatendo para escapar, nem mesmo semblantes de movimento podiam ser iniciados. Tentava gritar, mas a mordaça grudenta abafava qualquer barulho.

“... O que fez isso…?”

Desejou continuar fazendo perguntas, mas os demais elementos da sala foram velozes em revelar as suas combinadas impaciências.

— Saia daqui…! Você não vai encostar um dedo nele! Ele pertence a nós!

A voz veio da Abigail de papel mais central na estranha dinâmica. Sentada sobre os próprios joelhos, ela tinha a cabeça de Jacob em seu colo.

— Ele não quer falar com você. Ele nos ama e quer ficar aqui conosco! Saia!

Ela o encarava de cima, dotada de um largo sorriso maníaco, satisfeito ao cúmulo. Do topo da cabeça, os longos fios, roxos e lisos, cintilavam ao cair sobre o rosto dele.

— Ele nos ama, e só precisa de nós. Nós amamos ele, e é apenas disso que precisamos. Outras pessoas não são bem-vindas, e todos os incômodos precisam ser eliminados! Nada tem o direito de ficar no caminho do nosso amor infinito!

A espinha de Ryan gelou. Logo atrás, ouviu sons de madeira e somente então percebeu que o verdadeiro quociente de entidades no quarto era bem maior do que antes pensado.

— Nosso! Ele é nosso! Nosso, e nós somos dele… somente dele…! — O tom dela ficou mais louco, rachando ao fim das frases. — Nada vai passar por cima do nosso amor! Nada é maior que essa coisa que nos une…!

No colo, os olhos de Jacob se arregalaram diante do sorriso, afogados no pânico e, com mais força do que nunca, tentou se mover e escapar, incapaz de desviar o foco dela.

— Não se preocupe, querido! Vamos lidar com esse inconveniente, e assim que terminarmos aqui…

O deixou, se erguendo entre as várias outras idênticas a si mesma e de forma quase espontânea, o cenário mudou em velocidade alarmante, tal como fez a própria representação de Abigail.

“Isso não tá com uma cara boa…!” Ryan pensou, chegando a uma conclusão. “Não dá para um simples pedaço de cognição fazer coisas assim…!”

O chão ao redor deles estremeceu e as demais Abigail se transformaram nos mesmos construtos de gosma vistos no primeiro Espaço Mental, o rodeando outra vez.

— … Então nós vamos nos amar, para todo, todo o sempre…! — O encarou, repleta de incomparável felicidade.

“Eu não sei o que essa coisa é, mas disso aqui eu tenho certeza…”

Em um piscar de olhos, as paredes decaíram em gosma roxa, assim como fez o restante do cenário ao redor deles; como uma infecção, o púrpura devorou cada canto e brecha, somando à sua massa.

Jacob foi levado embora por meio de um buraco aberto no chão, que se fechou logo em seguida. A cidade depressa sumiu, derretendo e cedendo a um terreno de violeta infinito.

Em cinco anos lendo mentes de centenas de pessoas e invadindo os confins mais profundos, ele jamais presenciou algo remotamente semelhante ao que essa coisa podia fazer.

— ... Isso não é só o fruto dos pensamentos e desejos do Jacob… — falou, mais alto do que gostaria.

A antes agradável forma feminina tornou-se monstruosa, esbanjando um enorme buraco escuro no centro de seu peito, do qual escorria o fluido roxo, desta vez mais líquido, tal qual o que saía de seus olhos.

— Ei! Eu não te dei a permissão de falar o nome do meu amor tão descabidamente assim…!

A mera menção a ele a tornou furiosa. Abaixo de seus pés, “Abigail” detinha o controle de grande volume da substância roxa.

— Só eu tenho o direito a isso! Só eu e mais ninguém…!

Se moldava em forma de grandes tentáculos, a cobrindo de forma defensiva. Do topo de seu reinado, ela o olhava com o mais absoluto desgosto.

— Ah, não… — percebendo o que ela planejava fazer, Ryan entrou em pânico. — Ah, não! Ah, não…!

— Morra! Hehehehe!

Bastou levantar a mão e um dos grandes braços roxos rumou em alta velocidade na direção dele.

— Argh…! — Antes que fosse tarde demais, saltou. — Não vai dar…! Não vai dar para… encarar isso…!

— Não te dei permissão! Não pode entrar aqui! Não pode… ATRAPALHAR O NOSSO AMOR…! — estalou os dedos e a massa, novamente, mudou de forma.

— Droga…!

As redondezas adquiriram vida ao seu comando e da imensidão magenta, formas se estamparam e escaparam das paredes, esticando os longos dedos em função de atacá-lo.

— Ele me ama… Ele me ama muito! Ama, e sempre… sempre vai me amar…! Ahahahahaha! — “Abigail” arranhava o próprio rosto, em êxtase, arrancando pedaços da pele, revelando o roxo por baixo.

“Eu já tô ficando cansado de todo esse roxo…!”

Ryan batalhou para ficar de pé no meio do oceano mucoso criado por ela e tão logo alcançou a estabilidade, sentiu-se quase cair de novo, movido pelas ondas revoltas e da geléia que se unia.

— E quando não houverem mais interrupções… — A distorção na voz da mulher ascendia a níveis extremos. — Quando não restar mais ninguém…!

“Não vai ter outra opção.” O Savoia aprontou sua postura combatente, puxando do contaminado ar imaginário. “O Ego do Jacob já se perdeu demais e eu não sei para onde essa coisa o levou…”

O odor artificial de morangos irritava o nariz a ponto de fazê-lo querer arrancá-lo, mas antes fosse o cheiro o maior dos problemas atuais.

“Eu não tenho mais um pingo de energia para me manter aqui dentro.”

Corpos femininos de proporções titânicas se ergueram do espelho arroxeado, ascendendo ao entorno da geratriz, num total de sete. Ele sabia que não seriam necessárias duas para trucidá-lo.

“Seja lá o que essa coisa seja…”

— Ah…! Jacob vai ficar tão feliz quando souber que te eliminei…! Ele vai me amar ainda mais! Vai me dizer todas as palavras mais bonitas, me admirar com aquele olhar apaixonado e desejante…! Ah, eu não quero ter que só imaginar…!

As enormes mulheres o olharam de cima, talvez sentindo pena de terem que matar algo tão pequeno. Sem esperar, a primeira delas ergueu o punho esquerdo, gotejando parte de si mesma.

— Por quê?! Por que você teve que se intrometer…?! Ah, mas isso não faz mal…! Afinal, eu posso mostrar o seu cadáver frio para ele…! E fazê-lo me amar ainda mais!

A mão fechada desceu tal qual um míssil ao encontro do chão, movendo ondas e destruindo o frágil tecido mental do sujeito tão perturbado.

SPLASH!

— Ah, finalmente! Sem interrupções!

A distorção da garota de olhos azuis desceu em flutuação, tocando o chão lentamente. Ao pisar, o líquido expulsou a si mesmo, revelando o firme piso do Espaço Mental.

— Ninguém vai se intrometer no nosso amor.

O cadáver do ser insignificante, cujo nome sequer se deu o trabalho de lembrar, flutuava sem vida, carregado pelas fracas correntes do líquido turvo, visão que a conduziu a rir em satisfação.

— Ahahahaha! Menos um no caminho do verdadeiro amor! Nada é mais forte do que o poder desse sentimento!

O arroxeado se moldou para elevar o corpo dele. Curiosa, se aproximou e esticou a mão para anunciar a nova ordem de desfazer-se dele e jogá-lo no canto mais profundo da psique.

— Huh…?

O tremendo calor devorou a pele falsa, criando uma gaiola de chamas ao redor dela, conforme o cadáver desapareceu em meio ao inexistente.

— GAAAAAH! ISSO DÓI...!

O amor mais puro e verdadeiro havia sido enganado por uma mera memória deixada em forma de armadilha.

[...]

— Gah…! Urk…! — Quando Ryan abriu os olhos no mundo real, seu único pensamento era o de querer vomitar. — Eu… escapei…!

Aquela última pegadinha idiota custou muito mais do que gostaria de admitir, porém, julgou ter valido à pena.

“Eu deixei uma memória do fogo… Aquela coisa deve estar gritando de dor agora…!”

Sabia que estava longe de ser uma solução definitiva; em poucos segundos, se recuperaria e puxaria as cordas na mente de Jacob novamente e quando o fizesse, faria questão de deixá-lo saber o quão irritada se sentia.

“Eu não tenho tempo para perder.”

Os poucos segundos que ganhou valiam ouro. À frente, Jacob parecia confuso, encarando o chão ao esboçar uma expressão ilegível. O Savoia se aproveitou disso, mas não atacou.

“Isso seria inútil agora. Eu não o venceria. Não tenho força para isso.”

E por isso o Savoia decidiu que o melhor plano seria usar a cabeça.

“Por favor, minhas pernas… Eu peço…!”

Os olhos travaram nas escadarias em direção ao andar de baixo e ele mal sentiu algo em meio a tantos tumultos internos. Sinais de dor se misturavam ao enjôo e todas as demais sensações captadas por pele, olhos e ouvidos.

“Me deixem correr… só mais essa vez.”

O calcanhar direito chocou-se com o chão, irradiando ondas de puro sofrimento pelos ossos e músculos de suas pernas… Mas ele não parou de correr.

“Não dá para ganhar… Não dá para vencer. Não importa como eu olhe, não me vejo ganhando essa luta.”

Foi a primeira vez, em cinco anos, onde invadir a mente de alguém causou tanto medo, e enquanto tinha certeza de aquilo tinha um nome, não possuía noção de como chamá-lo.

“Eu já vi aquela coisa antes…! Aquilo não devia estar tão livre na mente dele…!”

A representação do instinto humano, onde os se armazenavam os desejos mais animalescos, primordiais e arcaicos: o socialmente reprimido, abominável.

Violência, reações instintivas, desejos carnais… isso, junto às diversas outras coisas enjauladas, presas no fundo da psique, nas camadas que ele nunca se dava o trabalho de explorar.

“Aquilo não era para estar na superfície… Não era para estar governando a mente dele!”

Alcançou o andar de baixo, mas a clássica visão da fumaça, mista do sangue e da visão das pilhas de corpos não mais o surpreendeu.

“Era poderoso demais… Ainda mais poderoso que a racionalidade dele…!”

Automatizado, ele persistiu em sua missão, passando por poças coalhadas de vermelho e espatifando os ossos sob seus pés. Se importar não passava de perda energética desnecessária.

“Ele não tem mais os níveis superiores de pensamento. A esse ponto, não dá nem mais para considerar aquele cara humano.”

O Ego de Jacob foi devorado diante dos olhos dele, assim como qualquer semblante da pessoa que um dia podia ter sido. A partir desse momento, seguiria somente aos impulsos e instintos do novo comandante.

“Ele quer me matar e vai me perseguir aqui, porque eu sou um empecilho, uma ameaça ao objetivo dele… Não tem nem como negar essa voz, gritando dentro da cabeça.”

Das três facetas da psique, aquela era a mais selvagem e descontrolada, a tal ponto que a maioria das pessoas não se atreve a deixá-la livre. 

“Eu não me encontrei com a terceira… É a mais superficial, mais fácil de achar… só que não estava lá. Eu deveria ter encontrado logo de cara…!”

A entidade a qual se referia tinha comportamentos refinados e polidos, vivendo de andar pelas camadas mais superficiais da psique, sob a ordem de regular as outras duas.

“Mas eu sei porque não a vi…”

Topar com ela não exigia esforço algum, de tão simples a tarefa, logo, não vê-la trouxe calafrios.

“Foi assassinada…

À frente, pulsos mortais de extremas temperaturas acompanharam o alaranjado dançante, confinado naquele cômodo grande, querendo fugir a qualquer custo e buscar mais para devorar.

Brrrrrrr…

Pequenos pedaços de concreto cederam do teto e tal qual da primeira vez, a antes pequena e inócua vibração se amplificou em escala exponencial.

“Deve estar tão bravo agora…! Porque eu sou uma ameaça a tudo o que ele representa! Ele não vai resistir em brigar comigo… nem que seja aqui, dentro desse inferno…!”

CRAAAACK!

O chão do andar de cima cedeu a poucos metros da entrada para o inferno e, devagar, a sombra decadente desceu da pilha de concreto, chutando pedaços do concreto destruído.

“Isso acaba aqui.”

Ryan aceitou o calor agoniante, vindo do monte de estantes e capítulos, vivendo seus últimos minutos. Já lá dentro, lhe veio a incrível ideia de adicionar ainda mais ação à loucura.

— Ei, Jacob…! É melhor você vir logo! Porque se não vier…

A voz saiu tão fraca e rouca que, talvez, nem mesmo ele pudesse escutar.

— … Eu vou ter que pegar a Abigail…! Acho ela a maior gata!

Dito e feito, o ensandecido Jacob Egan invadiu a fornalha ativa e logo no primeiro contato com o chão, levou as chamas a dançarem, graças a grande energia dispersa no golpe impulsivo.

Não podia gritar, embora certamente explodiria a edificação por inteiro, caso tivesse uma garganta.

“Agora não é mais uma batalha de força.”

No fundo do lugar, uma estante caiu, empurrando vento para o fogo próximo, que se espantou em deleite. O ar aquecido queimava o nariz, criando pequeno desconforto.

“Mas nada perto de ter que aspirar isso diretamente pelos pulmões. É uma batalha de resistência, agora, e o ganhador…”

Pegou um livro em chamas, preparando-se para atirá-lo.

“É aquele que puder continuar respirando por mais tempo!”



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