Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 86: Contaminação
— Então aqui vai um plano — vocalizou para si mesmo, saltando para esquerda em busca de evitar o choque de um “braço” de gosma. — Entrar mais fundo na mente dele, pegar a informação que eu quero…
As criações nefastas, formadas da gosma sem fim a vazar do buraco na areia, se agrupavam em formas cada vez mais articuladas e completas, logo ganhando acesso a mãos e dedos, que se esforçavam para o agarrar.
— Eu te amo… Eu te amo… Eu te amo…
De todo surgiam, assumindo o formato de uma conhecida figura, esboçando ambos voz e sorriso de modos corruptos. Derretidas, as metades inferiores de seus corpos se arrastavam por entre grãos.
— … e dar o fora daqui, quanto antes, melhor…!
Ryan mordeu o beiço inferior até que sangrasse, embora o corte tenha se regenerado espontaneamente. O sabor do próprio sangue servia muito mais de lembrete quanto à sua situação.
— Eu nunca vi nada desse tipo antes…!
Em poucos segundos, as caricaturas, púrpuras e gosmentas de Abigail Halsey se somaram em um verdadeiro “exército de um só”. Presentes em cada fração da praia, se rastejavam, malucas.
E iam em direção a ele, sorridentes e gargalhantes, cuspindo as mais distorcidas declarações de amor e companhia eterna, anunciando o quanto desejavam prendê-lo consigo.
— Amar… Para sempre e sempre…!
— Fica comigo… aqui…
— Juntos… Sempre juntos…
“Puta que pariu…” O rapaz negro se estapeou fracamente. “O nível de obsessão desse cara com essa garota talvez não tenha nem como ser calculado…!”
Tentar correr não adiantaria e por mais que cada uma fosse lenta o bastante, estar cercado por tantas tornava o escape impossível.
— Me ame… Me ame…!
— Te amo…
— Me dê um abraço…
“Essas coisas não são provenientes de memórias normais…!”
Não haviam muitos metros entre ele e a ameaça e na urgência de fazer alguma coisa, pisou o mais forte quanto possível na areia, figurativamente.
— Bem, parece que eu vou ter que cometer um crime de ódio aqui…! — catou o objeto surgido da areia, empunhando-o com um leve sorriso. — Embora eu não ache que isso aqui vai fazer o suficiente!
“Força” se torna apenas um modo de falar quando se está dentro da mente. Em verdade, a potência aplicada no solado do sapato serviu para que pudesse alcançar maiores profundidades na mente de Jacob.
— Pela segunda vez, eu não sou o cara que vocês estão buscando! — acertou a massa logo à frente, penetrando fundo em sua composição. — Ah… Mas o que raios eu estava esperando fazer com isso?!
Pisar no chão desenterrou um pé-de-cabra e o Savoia podia até dizer a qual memória específica de Jacob o objeto pertencia.
— Huh…! Invadiu um galpão para roubar gasolina no seu aniversário de dezessete, Jacob? — bateu o objeto contra a mão esquerda. — Deve ter sido uma tranca e tanto… para precisar de um desses…!
Um único golpe bem aplicado partiria um crânio ao meio da forma que se quebra um ovo. Focando a força nos braços, conduziu a barra para trás do corpo e mirou a cabeça da mais próxima.
— Talvez eles estejam certos, e eu seja realmente estúpido…! — tentou puxar a barra retorcida dentre a gosma, sem sucesso. — Não dá para espancar uma pilha de geléia…!
Como uma cola viva, o corpo da Abigail à frente se envolveu no metal, saindo virtualmente ilesa do ataque. Em movimentos rápidos, ela se envolveu e remodelou, utilizando-o de ponte para alcançá-lo.
— Juntos… Para sempre…! Ahahaha! — A figura abriu o sorriso mais amplo e satisfeito já visto, estendendo os braços para envolvê-lo.
— Droga…! Larga… de mim…!
A mulher púrpura o capturou e envolveu em seu moldável corpo molhado e frio, onde a composição grudenta de sua matéria tornava mais difícil soltar conforme ele se debatia.
— Essa coisa… tá me envolvendo…! — gritou em voz alta, chamando por algum impulso qualquer de energia. — AAARGH…!
— Eu te amo… Eu te amo… Eu nunca vou te deixar ir… — E ela não o ajudava, pressionando com força surpreendente, buscando afundá-lo em sua massa.
— Eu… tô percebendo…! — lutou, cerrando os dentes e fazendo mais força. — Mas… a gente tem que acabar… esse relacionamento…!
Os vários clones chegaram mais perto, o observando tal qual as esposas de um harém. Satisfeitas, riam e gargalhavam, tomando turnos em administrar “cuidados” a ele.
— Ahahahahaha! — Em aparente êxtase, uma delas o tocou.
Administravam gestos que, em qualquer outro contexto, seriam agradáveis, indo de simples toques e carinhos, até abraços mais decididos e até mesmo alguns beijos.
— Meu! Meu! Meu!
Todas queriam mais do que uma lasca dele, em uma cooperação competidora com aquela que o capturou primeiro, e enquanto muitos pensariam nisso como um paraíso, havia um problema.
“Eu não consigo respirar…!”
Nenhum homem lutaria tanto para escapar dos seios de uma mulher; o interior do semi-fluido fechava as vias aéreas, assumindo comportamento alternado, entre o afogativo viscoso e o sufocante rígido.
Se distanciar e escapar assumiu tons mais intensos de impossibilidade. Caso não tomasse uma ação, perderia as energias e seria ejetado da mente de Jacob, para ser eventualmente morto.
“Eu tenho que escapar…!”
Ausente de condições para puxar mais uma lembrança, optou pelo pior caminho: utilizar uma de suas próprias memórias, processo muito mais custoso em comparação.
“Parem…” chamou por seus poderes, sentindo nas pontas dos dedos o súbito aumento de temperatura. — Parem com isso…!
Uma explosão. Dentro de um piscar de olhos, foi adicionado um estranho elemento à praia de águas rosadas, o fogo.
— Argh…! Droga…! Eu já tô cansado demais de tentar encarar ele diretamente… Não dá para ficar fazendo essas coisas…! — Exausto e com a cabeça prestes a explodir, puxou o ar imaginário com intensidade.
As chamas da biblioteca foram a solução fácil para o problema de se ter algo perigoso o suficiente e, acima de tudo, capaz de machucar algo ausente de matéria coesa.
— Ao menos… elas não estão gostando nem um pouco… Heh… bom… Essa vai para o repertório de ataques…
Ser queimado pelas chamas também ajudou, possibilitando replicar a própria dor da ignição. O reflexo disso não podia ser outro e as mulheres de chiclete logo manifestaram sua agonia.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAH…!
Trazer memórias externas foi trabalhoso por si só, mas recriá-las em tamanha escala minou os níveis de energia do Savoia; a totalidade do perímetro da praia foi consumida pelas chamas ardentes, que incendiavam sobre a areia, sem fim.
E mesmo que não se mostrasse suficiente para matar as figuras, o simples fato de o terem ignorado em virtude da dor posou como uma grande vitória.
— Boa… Isso ao menos me comprar algum tempo… Agora…
O mar. Logo à frente, ondas revoltas colidiam audivelmente contra algumas rochas claras, espumando, arrastando e levando areia. Para lá ele deveria ir.
— Eu preciso aproveitar o meu tempo e conseguir algo antes que elas voltem para tentar isso de novo…!
Ignorando o cansaço à medida do possível, Ryan bateu em retirada em direção àquele oceano e isso atraiu a atenção das figuras, que optaram por igualmente desafiar as chamas em função de perseguí-lo.
— NÃO VAI EMBORA…! NÃO VAI!
— VAI FICAR COMIGO… SEMPRE!
— MEU! VOCÊ É MEU…!
Tendo alcançado a linha do mar, deu a última olhada para a multidão de mulheres de gelatina e anunciou os pensamentos que esteve guardando.
— Por que mulheres são sempre tão temperamentais…?
Riu um pouco, orgulhoso da colocação, antes de pular no oceano roxo. A água acertou a pele com calor inesperado e embora não tivesse em si a coragem de bebê-la, percebeu um leve odor adocicado na solução.
“Cheiro de… chiclete.”
O motivo de pular na água não foi aleatório ou sequer totalmente para escapar das zombarias de gosma. A água agia como um portal, o modo mais fácil de se viajar entre memórias.
“Eu cheguei.”
Ergueu os braços e se agarrou ao chão carrasco de concreto, se alavancando para cima, escapando da imensidão hídrica sem fim.
— Oof…! — sentiu os pés em chão firme outra vez, aliviado. — Espero que elas fiquem bem entretidas, ao menos por enquanto…!
Atrás dele existia somente uma pequena poça d’água, de lâmina tão fina que sequer podia cobrir o dedo mínimo. Aquele jeito sempre foi bem mais efetivo do que viajar pelo chão.
— Pelo menos agora não vai ser um problema sair daqui, se eu precisar. Portas são um caminho mais fácil ainda.
Chegou a um [Espaço Mental] muito mais ativo e completo. O lugar, antes uma praia, passou a ser uma pequena cidade, representação da própria Elderlog.
— É parecido o bastante para dizer que é Elderlog…
Agora, uma profunda noite caía sobre o lugar e as várias poças diziam ter chovido recentemente. Ryan se encontrava no meio de uma rua, semelhante à Rowan Street.
— Esse cenário conta uma história mais clara do que o último… Definitivamente.
As árvores descuidadas, as calçadas tomadas por raízes e o aspecto geral de descuido se repetiam. As casas, mais isoladas entre si, permaneciam de luzes apagadas, sem poderem contar com a iluminação alaranjada deficitária, coberta de folhas.
O único motivo de ele poder enxergar era a luz vinda do carro de polícia, estacionado a cerca de cinquenta metros, frente a uma casa de cor bege.
— O caminho sempre é óbvio... — caminhou até a residência. — … com exceção de quando não é.
O lugar tinha marcações de um típico perímetro isolado para investigação. Um crime ocorreu ali, mas a ausência de policiais fazia de tudo só um monte de detalhes estéticos. Sem cerimônia, passou por cima, se deparando com um interior iluminado.
— Já tava demorando para eu encontrar alguma coisa roxa por aqui…
A parte interior da casa estava parcialmente coberta pelo mesmo visgo arroxeado visto na praia, escalando pelos tetos e paredes, embora existisse uma diferença notável à primeira encarada.
— Não tá vivo…? — pisou, obtendo nenhuma reação da substância. — Hmm…
O barulho gerado ao caminhar e o repuxado nos sapatos podiam ser desconfortáveis, mas, ao menos, ele se sentia agradecido pela coisa não estar tentando amá-lo agressivamente.
— Tá pingando de todos os lugares… Bem nojento, se me perguntar.
Tinha origem clara e bastava olhar para as escadas à esquerda para entender isso. A “infecção” da casa tomou parte do corredor de entrada e se estendia para a sala de estar.
— … E o único ponto que já foi totalmente coberto é essa escada… Significa que é hora de subir.
Não quis contato desnecessário com a coisa, mesmo que teoricamente latente, então tratou de evitar o corrimão, calculando bem os passos para não escorregar.
— É… Parece que eu estava certo… A situação tá muito pior aqui em cima.
O púrpura grudento formava uma camada densa no corredor do andar superior, criando pilares viscosos sobre as entradas das portas e descendo pelas lâmpadas.
Ao contrário do andar de baixo, nem mesmo um fragmento da pintura original podia ser reconhecido e as peças de mobília se tornaram indistinguíveis, todas visíveis somente como blocos roxos.
A outra metade da casa trazia, ainda, outro elemento diferente. Ao longe, Ryan escutou risos baixos.
— Ali. É dali que tá vindo.
Por sorte, reconheceu o gancho de sótão sobre um dos móveis, agradecendo não ter sido forçado a criar um. Depressa, focou o pequeno puxador das escadas retráteis e as exibiu.
Antes uma simples goteira, a abertura do sótão fez derramar o que pareceram centenas do semi-líquido. De uma vez, a mistura se espalhou, volumosa, até cobrir os sapatos dele.
— Ugh.
Sério, subiu os degraus com cuidado ainda maior, deixando-se sorver na escuridão quase plena do espaço usado para guardar coisas.
— Ahahahahaha!
Da janela, ao final, finos raios luminosos surgiam, permitindo se ver não mais que o suficiente.
— Nós te amamos!
O contato do calcanhar com o último degrau o mostrou a verdade.
— E você nos ama também! Não ama, Jacob?
Aquela era uma verdadeira cena de crime.
… … …
— Ah… então é aí que você tava…
A população acumulada o encarou, na grande maioria repleta do mais profundo desgosto, embora um deles agisse diferente.
— … Jacob Egan — concluiu Ryan, respondendo à atenção dele.
Os olhos dele contavam uma história sobre a mais pura dor.