Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 85: Acerto de Contas

— Eu tenho que voltar depressa…!

O oficial Martin corria ao topo de seus pulmões. Alertado pela explosão anterior, o homem levou as pernas a gritarem, dividindo o pânico no fundo do coração, diante de tantos cadáveres.

— Isso é ruim… Muito, muito ruim…!

Puxou a pistola carregada, pronta para atirar na primeira coisa que visse ao chegar lá. Temeroso, sentiu os dedos estremecerem e gelarem, irresponsivos aos comandos da mente de aliviar o esforço.

— Droga…! — tomou cuidado máximo para não puxar o gatilho, atingindo o corredor que levaria às escadarias. — Não posso ficar perdendo tempo…!

Nunca em sua vida presenciou tamanha desgraça acumulada, e o impacto de estar enfiado em tudo isso pesava mais a cada segundo. De qualquer forma, se estapeou, mesmo que mentalmente, impedindo a mente de desistir.

Ele tinha uma tarefa a fazer com quem quer que sejam os sobreviventes dessa catástrofe, e iria fazer isso, então, decidido, tomou todo o ar que pôde acumular de uma vez e virou o corredor.

— Ah… Vocês… Bem que eu deveria ter imaginado que não ia demorar para um bando de merdinhas vestidos de azul aparecerem aqui…

O corredor não se encontrava na zona mais densa da fumaceira, então ele pôde ver um tanto claramente. Ali, a cerca de dez metros, uma silhueta se elevou do chão.

— Parado…! Levante as mãos e…!

— Será que dá para cortar esse papinho? — O interrompeu secamente. — Eu tô vendo que você tá assombrado, seu bostinha. Não vai conseguir me acertar uma vez.

Abandonou a posição sentada, desencostando da parede. No meio do cinza, a forma mais escura revelou seus trejeitos, agindo de forma absolutamente tranquila.

— Quer um sugestão legal? Só desiste. Isso aqui não é para vocês e nem para a sua gentinha. Essas pistolinhas não vão fazer nem um arranhão em nós. Eu tô falando isso para o teu bem.

O timbre e o modo de comunicação não o enganaram: se tratava de uma mulher, e isso se tornou mais claro ainda, assim que passou a caminhar em sua direção.

“Ela…” tomado por tensão, quase falhou em manter a arma empunhada, tomado pela sensação de já ter escutado algo similar.

Ela o encarou através da fumaça, capaz de vê-lo diante da barreira. Do lado direito de sua cabeça, longos fios se projetaram até a altura do tórax e do lado direito, nenhum, pois foram raspados.

— Como sempre… sempre um bando de frouxos que nunca conseguem fazer nada que preste…!

Enfim, a forma completa deixou a fumaça, e o coração de Martin parou. Ele conhecia aquela garota — não, aquela mulher — e a realidade o arrancou de qualquer tranquilidade.

— É, eu me lembro de você também, Martin Dyson… O filho da puta que apertou demais a porra daquelas algemas…! Você pegou um tamanho menor, justamente para me deixar mais cicatrizes, né?!

A mandíbula de Martin passou a estremecer descontroladamente. De pronto, os olhos dele se arregalaram e não hesitou em atirar.

PAH! PAH! PAH! PAH — em rápida sucessão, os quatro disparos ressoaram pelas imediações, capturados por nenhuma outra orelha viva — e o tormento se mostrou distante de acabar.

— Eu disse…! — Ela sorriu. — Eu disse! Eu expliquei! E mesmo assim… mesmo assim vocês são tão burros…!

— Ah… Ahhh…!

Caiu, sem chão. Diante do evento à frente, não haveria solução mais lógica do que isso que fez logo depois.

— Me… Me desculpa… Não foi… proposital…!

Tomava distância de forma agressiva a cada passo dela. Assombrado, o ar lhe faltou, a ponto de quase não poder falar, algo que só acrescentava ao deleite dela.

— Haviam… muitas evidências contra você…! Eu recebi uma ordem de busca e apreensão…! Eu… Eu só estava fazendo o meu trabalho naquele dia…!

— Ahahaha! Martin, Martin…! — A mulher se divertiu, mostrando os dentes um pouco amarelados. — Então quer dizer que tudo aquilo que você me fez passar foi parte do seu trabalho?

Acabou o caminho por onde fugir, e o policial resfriou de corpo e alma ao se deparar com a presença da parede a lhe tocar as costas.

— Tudo bem…! Tudo bem…! Me… Me perdoe…! Por favor…!

— Ah, isso não é legal, ou é? Para um cara que foi tão corajoso quando fez aquelas coisas comigo…! Que foi? Ficou sem coragem porque perdeu os amiguinhos?!

Elevou a perna, guiando o solado do sapato direito à junção do cotovelo direito do policial.

— Porque eu também tô me sentindo bastante corajosa para fazer isso aqui agora…!

CRACK!

AAAAAAAAAAAAAAAAGH…!

Consumido por ondas de pura dor, Martin rolou descontrolado, agonizando.

— Como essa aí foi para você? Se é tanta coisa assim, me bate de volta! Me mostra aquilo que você foi quando me jogou na bosta daquela viatura, seu merdinha…!

Uma onda de chutes seguiu em sucessão e sem possibilidade de se defender, não custou até que sentisse o sabor do próprio sangue, retornando em forma de refluxo ferroso pela garganta.

— Me… Me perdoe… Por favor… Guh…! — Pateticamente cuspiu uma porção do fluido rubro. — Eu sei que… eu errei… mas…!

— Ah, eu sei disso! Eu sei bem…! — agarrou-o pelo escalpo, arrancando alguns fios. — Você fez questão de gravar na minha pele o quanto você errou, seu arrombado…!

Apreciou a sensação de colidir a cabeça do policial contra o próprio chão, repleto de cinzas. Um atrás do outro, se seguiu um curso de quatro grandes choques, condizentes com o número de tiros.

— Ugh… Ahhh… — A forma miserável dele a olhou, implorando por piedade. Diversos trechos de seu rosto se encontravam cobertos de cinza e o nariz iniciou um leve sangramento.

— Ah, vamos lá! Esse foi só o primeiro!

— Aaaargh…! — Outra batida e, dessa vez, houve um grito mais audível, proveniente do nariz distorcido e espatifado, transformado em uma simples projeção sangrenta de carne.

— Isso ainda não acabou, seu filho da puta…

A frieza furiosa do discurso não o permitiu o tempo de sequer questionar as escolhas de vida que o conduziram ao ponto presente.

— Porque eu vou atrás de vocês todos… 

Não houve ar para gritar e o sangue a invadir as vias aéreas, passadas os dois últimos impactos, obstruiria qualquer forma de anunciar seu sofrimento ao mundo.

— E quando eu fizer cada um de vocês sofrerem…

O agarrou pela garganta, elevando-o no ar com absurda facilidade. Catatônico, graças à dor, sequer notou quando seus pés foram desconectados da superfície imunda.

— Quando vocês todos passaram por uma fração da humilhação que eu vivi na porra daquele lugar…!

Apertou firme, até o corpo despertar e passar a lutar em espasmo reflexo e batalhar por qualquer mísera molécula de oxigênio.

Incapaz de vocalizar, o oficial arruinado usava de seu braço saudável para tentar formar arranhões nessa pele bem mais macia que sua própria. Sob circunstâncias normais, o jogo estaria ganho.

— É legal, né? Quando isso é feito com você…

O puxou para um pouco mais perto, até que pudessem se entreolhar em uma encarada vazia, repleta de significados. Os dele ainda punham a energia para clamar por piedade, embora os dela não pudessem estar mais longe disso.

— Não acredito que você ainda tá se perguntando o motivo de eu estar fazendo isso. É sério mesmo que você não tem a mínima ideia? Se esse é o caso, então deixa que eu refresco a sua memória!

Se aproximou do ouvido direito dele, cada respiração sua mandando ondas de tremores nervosos por cada fragmento de pele, onde o sangue corria, tão veloz e errático, que fazia barulho audível.

— Você não deveria ter me apalpado e violado dentro daquela viatura, seu desgraçado.

CRACK!

Estava feito. No tempo de um piscar de olhos, o corpo parou de fornecer qualquer resistência.

— Podre… nojento… cafajeste… vagabundo…!

O soltou, deixando cair como um saco de batatas. Foi um impacto seco e gravitacional, sem influência externa.

— Filho da puta… arrombado… PILHA DE BOSTA…!

Chute por chute, golpe por golpe, pedaços de carne se reduziam a poças de sangue gosmento. Os estalos dos ossos partidos ecoavam pelos corredores adjacentes, se destacando na ausência silenciosa.

— Eu vou matar…! Eu vou me vingar de cada um…!

O trucidou até sequer um fragmento de pele ser reconhecível pelo rosado característico, e pedaços do que, um dia, foi branco, flutuavam entre o escarlate morto.

E quando a coisa sob seus pés não tinha mais condição de ser associada a qualquer humanidade, foi quando, enfim, se acalmou.

— Arrombado do caralho… Nunca mais vai pegar em nada com essas mãos nojentas…!

Tocou o próprio peito e a pulsação maníaca liberou o seu estranho prazer. A adrenalina na ponta de cada dedo, aos poucos, cedia à satisfação de uma missão cumprida…

… ou ao menos em parte, pois quando deixou desviar o foco, um assobio altivo a relembrou da verdadeira tarefa do dia.

Phew…! — Passos curtos seguiram o barulho tão súbito. — Minha nossa, eu tô vendo que você se divertiu aqui…! Deixou o corredor todo uma bagunça.

Estremeceu com a repentina aparição. Não muito frequentemente conversavam, portanto, nunca teve tempo para se acostumar adequadamente ao evento de sua chegada.

— Vou ser veloz com você e dizer que o seu alvo já foi assegurado. Ele não vai sair de lá; deixei uma de minhas melhores associadas o vigiando… Ah, e não precisa se preocupar! Ela não vai matar ele ou nada do tipo, embora eu não garanta que ele não vá tentar seu melhor para ser morto por ela… se entende o que eu quero dizer!

Não interpretou de fato os últimos dois terços daquele quase discurso. A informação que tomou conta a levou a um sobressalto, arrastando os ânimos de volta aos níveis anteriores.

— É assim que eu gosto de ver… Tão determinada — sorriu. — Vamos lá. Você não quer deixar ele esperando, ou quer, Samantha Wilson?

Até o menor dos músculos conheceu a tensão à menção de seu próprio nome e inconscientemente, fechou os punhos, até que sangrassem.

A parte mais importante de tudo isso — desde o fogo, até as dezenas de mortes — enfim chegou.

[...]

— A gente vai ficar nessa palhaçada até quando?!

Ele tomou um passo para a esquerda e a figura à sua frente o seguiu, copiando o gesto de forma quase milimetricamente perfeita.

— Eu não tenho mais tempo para ficar nesse seu joguinho…! Eu sei que tu tá achando graça, então fala logo alguma coisa…!

Ela não reagiu, além de permanecer o encarando fixamente com aqueles olhos azuis-esbranquiçados como o gelo compacto e nem mesmo um espasmo se viu nos músculos faciais.

Por vários minutos eles ficaram nessa “brincadeira”; a mulher à sua frente não dizia nada e durante todo esse tempo, ele pôde contar nos dedos de uma única mão quantas vezes a viu piscar.

Ela imitava cada movimento, formando uma barreira impenetrável, para que não abandonasse o campo de batalha, rendendo-o incapaz de qualquer ação contra a cortina de fumaça, ao longe.

“Eu tenho que sair da porra dessa quadra e ir atrás da Lira logo…!” trancou os dentes, tentando raciocinar.

O chão apodrecido continha vários insetos mortos. De uma vez, foi envolvido e imobilizado por uma enorme massa deles, trazido para cá, logo em seguida.

Logo a princípio ficou bem claro o ponto da operação: isolá-lo, distanciá-lo do foco da ação e seja quem foi o responsável, detém do pleno conhecimento de seu status e capacidades.

“E isso só fode mais com o que a Lira já tinha pensado…”

A pessoa que elaborou o ataque não queria que acabasse logo e isso o levou a uma conclusão óbvia.

“Eles não devem ser assim tão fortes.”

O orgulho o tomou ao elaborar essa linha de pensamento e de pronto planejou uma rota de escape. Um leve sorriso lhe surgiu e deixou seus olhos brilharem.

Mark iniciou uma investida em direção a ela, que somente esperou até que se aproximasse o bastante, para reagir. Ao chegar perto, preparou um soco, visando acertá-la no rosto.

— Eu sei que tu é uma garota e tal, mas…!

Saltou, dando um grande giro no ar antes de atingi-la com o punho cerrado.

— … Eu sou um fiel escudeiro pela igualdade de gênero…!

Não houve reação ou tentativa de evitar, ao invés disso, a mulher sem nome ou voz encarou, fixamente, sua imediata esquerda, deixando o punho ilusório a atravessar.

“O quê?! Como ela me viu?!”

Se moveu ainda mais velozmente que ele, arrancando uma explosão de força das pernas tão esbeltas e de aparência delicada. Com um salto, ficou de frente para ele, olho a olho, desfazendo a ilusão que o mantinha invisível.

— Guh…! — O segurou pelo pescoço, fincando cada falange com tremenda firmeza.

Ainda no ar, graciosamente girou em pivô, lançando-o longe com a energia acumulada, forçando-o a retornar para a estaca zero, colocando-se impassível outra vez. Não o deixaria passar.

— … Vagabunda…! Se quer tanto me pegar de jeito, pelo menos diz antes...!

Lutando para recuperar o ar, Mark se questionou como tanta força podia ter vindo de um corpo como aquele e, acima de tudo, como foi capaz de enxergá-lo além da ilusão.

“Só resta uma explicação…”

E ali estava ela, parada, fixa como um pedregulho, fazendo sua melhor imitação de garota padrão com cabelos castanhos longos, impressão essa contaminada pela óbvia psicopatia que exalava.

“... Não me diga que ela também tem um poder…” trancou os dentes, assumindo postura combatente.

Não passava a sensação de humanidade, rígida e imutável, previsível. Se fosse para a esquerda, ela iria para a direita, e vice-versa, tal qual um espelho. 

Ele seriamente duvidava que ela sequer o julgasse, posto sequer parecer capaz disso.

“Eu tenho que encontrar algum jeito de passar por ela…! A Lira tá precisando de mim e…!”

Subitamente, ela cedeu.

“Uh… Hein?!”

Foi um evento simples e seco. Espontaneamente, ela parou de observá-lo e saiu de seu caminho, fugindo para mais fundo na escuridão da quadra abandonada.

— Ei, espera aí…! Que merda é essa?! Tá sumindo assim por quê?!

Mark cogitou a possibilidade de seguí-la, mas muito antes de ser capaz de dar o primeiro passo, percebeu a presença de algo várias vezes mais ameaçador.

— Huh?!

Saltou para trás de último momento, sentindo na bochecha o violento atrito do ar rapidamente movido.

— Ah! Então é mesmo verdade! Os reflexos de Mark Menotte talvez sejam mesmo capazes de evitar até uma bala…! Eu não acreditei nesse rumor de começo, mas agora vejo que não é de toda mentira.

Mark teve um pouco de trabalho para se recompor, saltando ainda mais longe para trás ao fazer isso. Distante, assumiu de novo a postura combatente, afrontando a figura coberta por sombras.

— Se revela, caramba…! Me deixa meter a mão nessa sua cara…!

— Ora, ora! Para que essa agressividade, eu pergunto? Sou apenas um mensageiro, e mensageiros mandam as mensagens! Isso não deveria ser óbvio? Ah, e me diga, gostou da companhia que reservei para você?

Pisou fora da escuridão, revelando sua forma plena. A mão esquerda cobria a base do pescoço enquanto a outra descansava ao longo do corpo e um único olho azulado se destacava junto ao sorriso.

— Cai para o pau, nerdola! — irritado, bradou. — Vem para cima! Tá se achando demais!

— Ah, Mark… esse é o problema com pessoas que pensam com os músculos… Mas o que podemos fazer, se tal ação não consistir de explicar de novo? Até você vai ser capaz de entender após uma segunda explicação…! Ou, ao menos, acredito eu.

Deu de ombros, exibindo a dentição impossivelmente branca. Tranquilo, lateralizou o corpo, dando espaço para algo mais surgir, e orgulhoso disso, indicou as trevas.

— Como eu disse, sou um mensageiro, não um combatente, e estou aqui para te passar uma mensagem especial… Na verdade, é um reencontro.

— Reencontro…? Mas que porra que tu tá falando?!

— Maneiras, Mark…! Eu disse que explicaria — exaltou-se. — Mas enfim, como eu dizia, antes de ser tão brutalmente interrompido por um energúmeno selvagem, há alguém conhecido que quer te reencontrar para acertar as contas.

A segunda forma deixou passos pesados ecoarem pela estrutura oca do ginásio abandonado. Cada passada lascou pedaços da madeira e espalhou água da chuva, até se mostrar por completo.

E a revelação quase lhe arrancou a alma pela boca.

“Não pode ser…”

— Vocês dois vão ter bastante tempo para resolver os seus problemas, disso eu tenho certeza. Vou deixá-los sozinhos, então certifiquem-se de se aproximarem e ficarem bem íntimos enquanto eu estiver fora…!

— Espera aí…! Ei…!

— Sinto muito, mas tenho outro assunto a resolver. Meu papel aqui acabou e sou um sujeito ocupado.

O rapaz pisou nas sombras e em uma fração de segundo, sua presença sumiu, deixando somente os dois sozinhos.

— Então passou um ano, né? Eu espero que tenha sido um ano legal para você, sem mim aqui para ficar enchendo o seu saco.

A voz dela, soando como sempre, o preencheu de puro terror.

— Porque o meu ano…?! A minha vida…?!

Mudou, tão hostil e venenosa quanto nunca, repleta de brechas e rachaduras. O medo se tornou pânico.

— Você arruinou ela, seu cretino…!



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