Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 84: Cacofonia
PAH! PAH!
“São tiros… vindos lá de cima…!”
Chegou a hora de tornar à ação. Poucos segundos se passaram, desde a saída de Olivia, e os policiais pareciam ter descoberto a realidade a infectar a escola, fato esse nada bom.
“Eles podem ter atirado no Steve…! Eu tenho que ir lá e depressa…!”
Abriu a porta da sala com outro chute, terminando de quebrar a fechadura fragilizada pelo primeiro. Sem espera, uniu quaisquer fragmentos de energia nas pernas cansadas e planejou o rumo.
— Como esse tanto de destruição se fez em tão pouco tempo?!
Dano estrutural passou a cobrir toda e qualquer parede, e por onde olhasse, Ryan se depararia com profundas rachaduras pelo material teoricamente tão rígido da edificação.
Pilhas de tinta, provenientes do teto, caíam como flocos de neve, se descolando e flutuando devagar, até culminarem em amontoados disformes e sem propósito algum, além de noticiar o óbvio.
“Esse lugar vai cair…”
Se iniciou com vibrações sutis, distantes demais para a atenção de uma pessoa desavisada, progredindo tão aos poucos que somente seriam notadas ao ser tarde demais.
— Puta que pariu…!
Mas Ryan não podia estar mais distante de alguém comum. Munido de seus reflexos rápidos, o rapaz suprimiu as dores em seus joelhos e pés, saltando para trás, tão longe quanto os membros deixariam.
Por questão de poucos centímetros, escapou de ser atingido por um imenso fragmento de concreto, vindo de cima. Diante de seus olhos, a estrutura desabou.
A primeira reação instintiva veio para combater a espessa nuvem de poeira bege que passou a cobrir as imediações. De jeito firme, ele fechou os olhos e cobriu o nariz com o braço enfaixado, focando em se proteger.
Desesperadamente, se arrastou com a força das pernas e do único braço não-ocupado, criando certa distância e não mais no foco da agressão de tantas partículas, deixou-se ver outra vez.
— Ah… cacete…
Estremeceu por dentro e por fora ao se deparar com a visão adiante, ciente de que não deveria haver modo daquilo ser possível.
— Isso… — engasgou, puxando o ar envenenado pelos infinitos fragmentos. — Isso… é impossível…
Não precisou esperar que a poeira baixasse sozinha, pois um estranho e conhecido fenômeno fez questão de expulsá-la, levando cada pêlo no corpo a tremer diante do impulso de energia.
Ali estava ele — arruinado, porém não menos soberano —, reinando sobre a pilha de escombros e cadáveres.
— Ghk…! Gah…! — A mulher, trajada em uniforme policial, se debatia sem qualquer sucesso.
Nenhum barulho vinha do antes tão caótico Jacob Egan. Restrito pela indescritível falta de carne em sua garganta, onde pouco além de um fino barulho de ar exalava de seus pulmões.
Ele a mantinha suspensa, presa por um único braço chamuscado, forte o suficiente para erguer aquela mulher razoavelmente musculosa. Sem piedade, pressionava sua garganta, olhando tão fundo quanto o poço mais escuro, atravessando-a.
— Haaack…! Guh! — Ela tentava lutar, arranhando os tendões na mão dele em pleno pânico ou simplesmente tentando chutá-lo, e por mais que arrancasse carne e sangue, não se tinha efeito visível na força de preensão dessa pessoa que sequer deveria estar viva.
Ao lado, mais dois repousavam, cobertos de seus próprios tons de vermelho, sobre as pilhas de escombros. Irresponsivos, os corpos se encontravam retorcidos e destruídos em ângulos impossíveis.
Além deles, um braço e uma perna, pertencentes a pessoas diferentes, se destacavam na base do pequeno morro, mostrando existirem, ao menos, mais duas vítimas.
E, pelo que tudo indicava, a quinta logo viria.
— Hkk…! — A oficial alcançou o compartimento de couro em seu bolso, puxando dali a pistola.
Sedenta por se livrar, deflagrou vários disparos; em sucessão mais curta, impossível. Um atrás do outro, ela guiou as quatro balas em direção ao rosto do monstro que findou com sua equipe.
— Khh…! — pressionou o gatilho novamente. Sua pistola ficou sem balas.
Nada além de um profundo e completamente maníaco encarar veio em resposta. Nenhuma das balas o acertou ou sequer raspou contra a pele queimada; sem foco, apenas o erro contínuo restou.
E a última coisa que presenciou foi o brilho visceral das duas lâmpadas amarelas, antes da perda de toda a sensação.
BLURG — foi o som de quando ele apertou ainda mais e, de forma tão friamente espontânea, a cabeça da mulher foi desconectada do restante em uma explosão sangrenta que tudo destroçou.
“Será que não tem como derrubar ele…?”
O torso caiu como um saco de batatas, rolando do topo da pilha de forma desnecessariamente barulhenta. Ao chegar à base, passou a derramar o conteúdo rubro e fétido, audível a cada gota.
“Não tem o que vai dar um fim nele…?!”
O súbito movimento do pescoço os levou à inevitável encarada. Não haveria retorno ou protelação a partir dali.
“Ele…”
Saltou da pilha, aparentando estar calmo ao limite da palavra, senão um tanto solto demais para o gosto do Savoia. A caminhada de Jacob era lenta e seu aspecto destoante de qualquer lembrança prévia.
“... Será que eu sequer consigo vencer essa coisa…?”
Sequer podia imaginar o que ocorreu com Steve, e concluiu que se ele não teve chance de derrubá-lo…
“... Eu não vou conseguir…”
A atmosfera do segundo piso borbulhou e entrou em agitação e não demorou muito para que pudesse sentir a dança das moléculas em torno das bochechas.
O sangue na cabeça pulsou, perturbado por essa força que formava ondas visíveis no ar ao redor deles, contida de se ativar pela vontade desses olhos tão vazios, na iminência de escapulir e arruinar.
“... Eu…!”
O grito das fibras musculares ao ativar a mais nova face de sua habilidade reverberou em conjunto com o evento tão temido. Num fragmento de segundo, se apoiou com a destra, unindo-a às pernas para uma cambalhota longa.
— … Não tenho a menor chance de acabar com ele…!
Os próximos três segundos foram vividos no inferno. Inutilmente, Ryan cobriu o rosto com os braços em cruz e se enrijeceu como um casulo, pressionando a arcada dentária em posição fechada até os dentes doerem.
— Grrrrrrr…! — suportou, com muita dificuldade, a sensação de estar preso em uma bolha d’água a se mover na velocidade da luz. — Argh…!
Se segurou para não cair de joelhos ao retornar à normalidade. O chão abaixo de seus pés vibrou e se abalou, tanto quanto seu estômago, tomado pela mais intensa náusea já experienciada nesses cinco anos de incontáveis viagens pelo país.
— Blueeeergh…! — vomitou, derramando o conteúdo inexistente em seu estômago. Ele ainda não havia almoçado.
Infelizmente, não teve tempo para admirar a viscosa e brilhante poça de fluido límpido e transparente, intimidado pela súbita mudança na atitude de Jacob, não mais disposto a exibições.
O guitarrista chamuscado não demorou nada para cobrir a distância medíocre criada pela cambalhota. De olhos vidrados, elevou o braço esquerdo e atacou Ryan, em um gesto de agarrar.
— Ugh…! Droga…! — desviou para a esquerda, evitando um segundo golpe, dado pela mesma mão. “Eu tenho que… acabar com isso logo…!”
Ao errar, a mão em garra do Egan acertou a parede, gerando uma onda fraca, que não fez mais do que espalhar um tremor sutil, um golpe fraco demais para causar qualquer grande dano.
“Não significa que não vá fazer um estrago se me atingir…!”
A vibração podia não ser tão perigosa à distância, mas distribuir energia de tal forma, mesmo que em valores mínimos, traria consequências terríveis ao corpo humano.
“Ele poderia ter parado o meu coração se essa mão tivesse agarrado o meu peito…! Eu tenho que evitar ser tocado a todo custo…!”
A perda da capacidade de gritar trazia seus benefícios. Sem isso, Jacob não poderia causar dano efetivo sem tocá-lo, e enquanto isso soava como uma incrível notícia, restava um problema óbvio.
“... Acontece que eu também sou um lutador de curta distância…!”
Silencioso, o rapaz queimado deixou que seus olhos falassem. Vidradas, as lentes iluminaram, acumulando um pouco a mais de energia sonora, direcionada às pontas dos dedos. Ansioso e sagaz, o Savoia tomou a escolha óbvia: se afastar.
“Eu não vou poder ficar só me evadindo…!”
Os ferimentos extremos não pareciam ter efeito algum em sua mobilidade, e o manipulador de sons logo preparou uma investida abaladora.
“A energia sonora… Ele não produz o som que usa…!”
Percebeu isso no último ataque, quando ele bateu os dois pés no chão. Por um breve instante, o ar ao redor foi moldado e acumulado na base derretida dos sapatos.
A explosão da onda sonora, somada à própria vitalidade impossível de seus músculos, permitiu que o Egan avançasse como uma bala, deixando a mão estendida para tocá-lo.
“Eu entendi como funciona…!”
Girou o corpo para o lado, dando de cara com a ventania trazida pelo atrito do ar. Na bochecha esquerda, a leve vibração trouxe um leve formigamento; o golpe passou de raspão.
“Ele usa os sons do ambiente para atacar!”
Jacob caiu em pé e direcionou a energia do impacto contra o chão para o braço, lançando um golpe giratório veloz, que acertou Ryan em cheio.
— Gahk…! — usou os braços para se defender no último momento, impedindo-o de acertar no rosto.
O membro caiu imediatamente. Espalhada, o pulso sonoro de enorme frequência sobrepujou a capacidade de processamento de seus nervos, rendendo-o inutilizável.
— Droga…! — agachou, desviando de outro golpe. — Não dá para mexer…!
Um braço morto é um peso morto e ele não queria dois desses. Usando o máximo da agilidade que sua pouca energia tinha a oferecer, Ryan ascendeu novamente com um salto lateral, desviando de um chute.
“Eu vejo um ponto fraco…”
Jacob não iria deixá-lo descansar, repetindo a mesma dinâmica anterior, embora desta vez com o som de vários estalos de dedos somados.
“Eu só preciso fazer acontecer do jeito certo.” A disparada em projétil veio de cima na forma de curva, criando a oportunidade perfeita. “Basta colocar o pé aqui e…”
Esperou o tempo certo e chutou uma nuvem de poeira dos escombros. Os microfragmentos formaram uma pequena nuvem, indiscriminadamente absorvidos em massa pela traquéia livre.
“Agora é a minha chance…!”
A bizarra tosse desprovida de som denunciou a agonia de Jacob. Intensamente, alguns sons aquosos repletos de sofrimento tomavam o ar, arrancando o foco do ataque previamente planejado.
“Eu tenho que parar ele, e não vai ser dando um soco ou um chute!”
Ryan espalmou a mão destra, reunindo, do fundo, energia que sequer imaginou ter e movido pela determinação de fazer isso acabar, injetou cada terminação nervosa com puro poder.
O curso do braço direito foi tomado por choque, descendo pelo pescoço, culminando nas pontas dos dedos, oroxo dos olhos iluminados a tingir a atmosfera empoeirada e que cheirava como a morte.
— Eu vou invadir…! — Se permitiu gritar tão alto quanto os pulmões suportaram. — E eu vou te destruir… De dentro para fora…!
O contato com a pele queimada foi repugnante. A textura era a de plástico derretido, maleável demais para se dizer pertencente a um ser vivo.
Da distância de menos de um metro, sentiu enfim o fedor da carne queimada, que cedeu aos poucos, conforme a parte mais importante do processo se iniciava.
“É isso! Eu consegui me conectar…!”
As estruturas cederam e se desfizeram, reduzidas à infinidade branca, e quando a última parede se tornou em pó invisível, os alarmes soaram, ordenando a abrir os olhos.
Ryan invadiu, com sucesso, a mente de Jacob Egan.
— Eu tô dentro…! — comemorou, sentindo os arredores, tão diferentes. — Agora, eu só preciso descobrir o que tá acontecendo nessa porcaria de cidade…!
O Savoia despertou em uma praia comum. Abaixo de seus pés, a areia, fina e clara, se deformava sob os sapatos, macia em excesso e, lá em cima, um belo céu de verão acariciava a pele escura, ameno na medida certa.
Uma sutil ventania trazia a maresia, levando infinita tranquilidade ao lugar tão deserto, soprando leito das águas límpidas, coloridas em um tom de púrpura.
— Por mais que um mar roxo seja bizarro, não é a coisa mais estranha que eu já vi… — tentou se convencer, embora não muito confiante. — Se eu tiver que falar a verdade, acho que dá para considerar isso normal…
A mente humana jamais representava a realidade de forma plena e basta olhar um pouco e procurar e sempre vai se encontrar algo diferente.
— Um tapete pendurado no teto, um trem que na verdade é um navio… Ou um dragão, cuspindo fogo por aí — ajoelhou, tocando a areia. — As memórias se misturam com a imaginação.
Em suma, o mar roxo era só mais um detalhe — um semblante de algo, seja um desejo, uma outra memória, ou uma aspiração subconsciente — e por mais que tudo na mente signifique algo…
— Nem tudo precisa ser investigado tão profundamente… ou talvez precise.
Entrou ali em busca dos resultados, do produto formatado e iria buscar por ele. Sem hesitar, Ryan enfiou os dedos na areia fina e tomou um punhado.
— Hmm…
Admirou, deixando os grãos caírem pelos espaços entre os dedos, espalhados pelo vento. Devagar, cada um encontrou o chão outra vez e ao fim disso, suspirou, relativamente satisfeito.
— Jacob Egan, dezoito anos, filho de Maggie e Brandon Egan, sendo que esse último deixou a família quando ele tinha treze anos. Ele mora na Birch Street, 276 e tinha uma irmã menor, que foi levada pelo pai. Ela tem… sete anos, agora.
Fechou o punho, ciente de só ter cavado a superfície. Ele precisaria ir mais fundo.
— Huh…? O que é isso?
Algo passou a escapar do raso buraco feito na areia. A coisa se movia, desprovida de forma ou base, minando tal qual água de uma fonte, fugindo para a superfície da praia, se arrastando.
Não custou dele mais que uma encarada para entender o significado disso.
— Ah… Então é aí embaixo que tá tudo escondido… A mente dele é mesmo muito frágil…
Se levantou, pronto para fugir, mas logo ao dar o primeiro passo, foi surpreendido com um agarrão em seu tornozelo. Uma mão humanóide o tentava puxar para dentro do buraco.
— Por que eu pensei que isso ia ser fácil?!
Com força, foi capaz de se soltar, fazendo a coisa se desfazer temporariamente, gerando uma reação odiosa por sua parte, jorrando ainda mais intensamente pelo buraco no chão.
— Mesmo aqui dentro, eu vou ter que brigar…! — aprontou os punhos, assumindo a pose combatente de um boxeador. — Caiam dentro…!
— Haha! Haha!
Risadas femininas se somaram aos sons de massiva erupção vindos da brecha. Ali de dentro, a coisa revelou suas caras.
— Acho que eu tô entendendo agora…
A gosma roxa tinha consistência similar a de chiclete e exalava um avassalador cheiro de shampoo de morango. Viva, se contorceu e moldou até assumir um formato humanóide, criando um conhecido torso feminino.
— Então é debaixo desse semblante de sanidade que você esconde isso, Jacob Egan…?
A praia deixou de ser o todo para se tornar o restante, uma finíssima casca de humanidade mantida com a mera função para manter as aparências, fragilizada pelos clamores do instinto e do desejo doentio.
— Eu te amo… — A forma sorriu, espalmando os braços grudentos na forma de um abraço. — Eu te amo… Eu te amo…
O fluxo púrpura o rodeou, construindo uma barreira redonda em torno do Savoia. De cada ponto, mais e mais cópias daquela forma se moldaram.
— Ok, risca eu ter dito que esse lugar é normal — murmurou para si mesmo. — Isso é MUITO pior do que qualquer coisa que eu podia ter imaginado…!
— Eu te amo…
— Sempre juntos…
— Eu sou sempre sua…
— Fica comigo…
— Sempre comigo…
— Me ame… sempre…
As vozes depressa se acumularam ao topo umas das outras, dando origem a uma cacofonia ensurdecedora. Preso em meio a isso, Ryan mordeu a ponta da língua, sorrindo.
— Eu não sou quem vocês estão buscando.
Evocou seus poderes e estendeu as mãos para as laterais. Delas, grandes pulsos de cor púrpura saíram, atacando as figuras.
— Me desculpem, garotas, mas vocês estão no caminho!
As massas, abaladas pelo choque, demoraram um pouco para se reconstruírem, logo rumando em direção a ele. Um novo combate acabara de se iniciar.