Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 83: Um Monstro Feito
— [Fúria Incandescente]...!
De única vez, o volume de ar altamente aquecido escapou pela boca, na forma de um spray flamejante. Sem limites, chamas vivas e viscerais se elevaram em direção a Jacob Egan.
O calor desenfreado se aproximou desimpedido, irradiando a terrível temperatura sobre a pele sangrenta do manipulador de sons, que bradou em alto e bom tom.
— Não vai me impedir… De ter a minha Abigail…!
Estalou os dedos da mão destra, acumulando volume sonoro de forma impossível. O ar em torno do punho se distorceu, acompanhando o profundo brilho amarelado das irises.
— Não vai me parar…!
O corredor foi tomado pelo enorme boom, formado pelo contato com o fogo, e como num sopro, cavou-se um buraco na chama, a reduzindo ao nada de onde veio.
— NINGUÉM VAI ME PARAR…!
Mostrou os dentes, de forma animalesca e, determinado, saltou tão alto quanto humanamente impossível, de alguma forma capaz de gerar força suficiente para quase alcançar o teto.
— E VOCÊ VAI SER SÓ MAIS UM NO MEIO DO MEU OBJETIVO…!
Tomado por medo, o rosto de Steve se contorceu em uma careta, tomado pela compreensão da escala do monstro com sede de sangue, bem à frente.
— Droga…! — Em um gesto desesperado, criou uma pequena bola de fogo, tão grande quanto a mão aberta do mesmo.
O impulso de fazer algo e evitar ser morto guiou sua mira, e sem a menor opção de fazer outra coisa, esticou o braço rumo ao rosto do guitarrista.
— Eu preciso explodir…!
Acumulou quaisquer energias no espaço entre os dedos, derramando-as sobre a diminuta esfera incandescente. Por um segundo, o braço do rapaz foi consumido pela mais excruciante dor de sua existência.
— Gah…!
Um misto existencial de todas as formas possíveis de se queimar tecido humano, com cada uma delas sendo perfeitamente distinguíveis umas das outras.
— NÃO VAI FUNCIONAR….! — Jacob gritou, maluco. — NÃO VAI DESTRUIR O MEU AMOR…!
“Mais quente…! Eu preciso… de mais quente…!”
Tendões, ossos, músculos e nervos… O sangue fluindo pelas artérias, transformado em magma incandescente, se derramando sobre sua última chance de sobrevivência, que tinha de fazer valer.
Os movimentos de Jacob se tornaram surpreendentemente lentos, um presente do tempo, o permitindo relembrar todos os erros e fraquezas do passado.
“Eu vivi minha vida como um covarde até agora…”
A dor sentida por suas vítimas, agora, corria em pulsos pela plenitude de sua forma, e o peso dos pecados, diante de seu executor raivoso, se fez inacreditavelmente intenso.
“Então, se eu puder, ao menos, queimar isso junto comigo…”
Os dois pares de olhos se encontraram, a centímetros do toque. Quase em dança, amarelo e alaranjado formaram um gradiente pulsante e mortal, indo do ódio a qualquer um, ao auto-ressentimento.
“... Talvez a minha vida valha um pouco mais a pena.”
As manifestações de brilho, calor e barulho se uniram, fundidas numa pequena supernova. O choque das energias foi desenfreado, dando origem a pulsos aleatórios, voltados a qualquer lado.
O fogo, selvagem, purificou qualquer coisa no caminho, irrompendo, livre, pelas portas e janelas do terceiro piso, mobilizando os fragmentos no chão, os unindo às cinzas da biblioteca, dispersas em camadas.
“Mas isso não ia ser suficiente, né? Morrer aqui…”
— GAAAAAAAAAAH! — O grito torturado nas proximidades o atingiu.
Do centro do fogo, Jacob, incendiado, lutava para se desfazer das chamas consumindo as roupas. Frenético, tentava arrancar, sem sucesso, fragmentos do moletom vermelho.
“Até porque, se eu morresse…”
Desejou ser capaz de atacar, mas com o último movimento, mover as pontas dos dedos ascendeu a nível de milagre. Superaquecidos, os músculos estremeciam, desesperadamente derramando suor aos litros.
— GAAAAAAAH! INFERNO…! ISSO QUEIMA…! AAAAAAAAAH!
Apreciando a queda do oponente, riu. Ver a zombaria à vida humana no térreo o preencheu de tanta amargura que sequer teve a disposição de se permitir evitar isso.
“... quem mais ia dar uma amolecida nessa coisa…?”
A potência da corrente de ar quente a resvalar por seu rosto o forçou a fechar os olhos. Bastou um simples grito e, outra vez, reinou triunfante sobre o fogo.
“Honestamente… Como alguém consegue ter um poder tão roubado…?! E como esse cara ainda continua andando?!”
— Grrrr… — levantou a cabeça, devagar. — GRRRRRR…!
“Ele foi completamente chamuscado…!”
Steve não era especialista ou sequer estudou o assunto antes, mas somente por olhar, podia dizer que uns sólidos 90% do corpo de Jacob sofreu significativo dano, suficiente para não permití-lo ficar de pé.
“Ele deveria estar desmaiado de tanta dor, agora…!”
A pele foi transformada em algo escuro, repleto de ferimentos abertos, tingidos de rosado profundo, jorrando salmoura, que se derramava sobre os restos do moletom vermelho, cuja fibra sintética, derretida, fundiu-se a ele.
— Grrrrr… Eu vou… matar… todos…
A metade esquerda do escalpo perdeu o conjunto de fios e as unhas derramaram sangue escuro, misto de tecidos carbonizados. A encarada dada por ele foi vazia, servindo apenas para mostrar o olho direito, arruinado, embora ainda com brilho.
— Eu vou matar você… aquele cara… aquela vadia…! Hehehehehe! Ahahahahaha!
Movia-se e gesticulava perfeitamente, quando tal coisa não podia ser mais impossível, gargalhando, embora o ar, altamente aquecido, teria cauterizado os pulmões de qualquer outro infeliz.
— Ahahahahahaha! AHAHAHAHAHAHA!
“Merda… Então, mesmo depois de tudo aquilo… ele ainda tá com toda a força?!”
Recuperou uma forma limitada de movimentos após desaquecer. Agora, podia mover quase perfeitamente o tronco e membros superiores, mas as pernas insistiam em falhar.
“Se eu tiver que desviar, talvez nem consiga…!”
Perdeu quaisquer condições de criar grandes ataques após aquela explosão e riria em face de qualquer chama de isqueiro, reduzindo suas chances ao temido “próximo de zero”.
— Hehehehe! Ahahahaha! — Sem parar, Jacob ria, tomando passos lentos. — Hahahahaha!
“O que é tão engraçado assim?!” pensou, enrijecendo os músculos faciais. “Não dá para entender…!”
Por vários segundos a fio, o manipulador de barulhos manteve a gargalhada, levando Steve a acreditar estar zombando de seus esforços.
“Esse cara…! Isso aí já é ter confiança demais na vitória…!”
Mas algo a respeito disso soou errado, e não se referia ao teatro insano logo à frente. Ao dar um pouco mais de atenção à diversão dele, notou súbitas alterações nos padrões e caráter dos risos.
Após algum tempo, Jacob não mais ria, e no lugar do aparente divertimento, fugiam algumas lágrimas.
— Ha… Ha… Ha… Hic… Hic…!
E, para a surpresa do piromante, escutou, pela primeira vez, uma sentença racional a fugir dos lábios chamuscados.
— Não adianta… Não tem mais como eu controlar isso… Não dá para impedir…
— Huh…? — espantado, Steve se enrijeceu. — Você… Então você…!
— Vocês NÃO têm tempo…! — interrompeu com extrema urgência. — Eu não vou segurar mais… Não dá…! Esse buraco… no meu… coração…!
Caiu de joelhos e agarrou as laterais da cabeça. O olhar fixo, rumo ao chão, dava a impressão de que logo saltariam para além das órbitas.
— Quer ela…! Isso quer ela…! Abby… ABBY…!
Acertou o chão, arranhando-o com os dois dedos restantes na canhota, perdendo detalhes em meio aos grunhidos e perdendo, pouco a pouco, o controle.
— Grita… por ela…! Clama… por ela…! E… NÃO VAI SE CALAR…! Não dá para fazer… CALAR…! A flecha… passando pelo meu coração… A FLECHA…!
— Uhhh…! — assombrado, o flamejante se afastou com dificuldades, usando a parede como apoio. — Mas… o que tá rolando…?!
— Não estar perto dela… MACHUCA…! Só… foge… logo…! AAAAARGH…!
O corpo tostado convulsionou, debatendo-se de forma contida, prostrado. Por breves sete segundos e meio, não houve qualquer barulho no terceiro piso; calmaria antes da tempestade.
“Não vai dar para vencer ele… Eu vou ter que correr…!”
— AAAAAAAAARGH….!
A fúria inteira se libertou, tendo rasgado os resquícios finais da racionalidade e, numa inimaginável propulsão muscular, se reergueu, fazendo das queimaduras um simples detalhe estético.
— Não tem como isso ser real…!
O chão tremeu, e o jovem de cabelos em padrão de chama não acreditou no que seus olhos viram. Ele sequer correu dez metros e Jacob já tinha a vantagem na perseguição.
— GRRRRRRR! — Por inteiro entregue ao estado mais selvagem, grunhiu alto. — HAAAAAAAH!
“Ele vai lançar um ataque…!”
Ergueu o braço de somente dois dedos, e uma grande onda tomou o lugar. Sem a resposta apropriada, as pernas fatigadas não puderam salvá-lo de ser capturado no grande turbilhão vibratório.
— Uck…! — tomado por profundo desconforto, trancou os dentes e se deixou levar. — Agh…!
O ataque, propositalmente fraco, compensou com o aumento brusco de abrangência. De uma vez, o fluxo mecânico das ondas o levou ao fundo do mais tumultuoso oceano.
“Não dá… para respirar…!”
Energia em pureza de forma perpassou os tecidos, rebatida pelos ossos, proporcionando-lhe imensa dor. No interior do crânio, o cérebro dançou, colidindo com a calota, tumultuando o estômago já perturbado.
— AAAAAAARGH! — E os gritos, a cereja do bolo, irromperam fundo à base dos ouvidos, estremecendo dentes e olhos.
Ceder ao chão carbonizado foi inevitável, diante de tantos estímulos. Já enfraquecido, bastou algo tão pequeno para derrubá-lo de vez.
— Morrer… Morrer…! Morrer! Os que me impedirem… TÊM QUE MORRER…!
O sapato de Jacob fez contato direto com a caixa torácica dele, lhe arrancando o ar, quando um fraco pulso passou por ali, deixando dor irradiante como lembrança de sua existência; ao menos uma costela foi quebrada.
— Aaaaagh…! Jacob…!
O instinto de sobrevivência redirecionou força de origem desconhecida para as pontas dos dedos e, no auge do pânico, Steve fincou as unhas no tecido semi-derretido.
— Você… não é… um monstro…! Vê se… controla… isso…!
O choque de adrenalina o proporcionou energia o bastante para aquecer as palmas das mãos, e em questão de segundos, o brilho dourado da pele em questão escavou caminho até a carne derretida.
— UUUUUUURK…! — O sinal de dor o distraiu suficientemente, permitindo que Steve o puxasse para o chão, num solavanco. — Não vai… me parar…!
— Para… com isso…! — agarrou o rosto chamuscado, afastando-o de gritar frente ao seu próprio. — Eu… ouvi…! Eu sei… que você ainda tá aí…!
O simples ato de respirar doía tanto que sequer tinha palavras para descrever e mesmo em tamanho sofrimento, acumulou ar suficiente, e não apenas para falar.
— Acorda…! E… se controla…!
O artista não mentiu ao dizer as últimas palavras coerentes; conversar não mais era opção, posto que sequer reagiu às provocações, o mirando com o mais puro desejo de morte.
Se algo de humano perdurava na casca vazia, acessar estava fora das capacidades do usuário de chamas..
— Vai me deixar… sem escolha…!
Soprou, arrastando-se através da sensação de inúmeras lâminas perfurando seu aparelho respiratório. Pelos lábios, porém, não saiu o típico fogo.
— AAAAAAAAAAAARGH…! — forçado a desistir, levou as mãos ao rosto, protegendo as regiões atingidas. O sangue fervente, misto numa nuvem de vapor tórrido, abriu a oportunidade.
— Eu não vou conseguir te matar…
O impossível se fez real e Steve viu humanidade no assassino de tantas pessoas, além de adquirir uma nova noção: Jacob não nasceu um monstro, mas sim, foi feito um.
“Por algo… Por alguém…”
A agonia no olhar foi legítima, tal como o terror ao fim de cada palavra. Ele perdia controle a cada respiração e existia mais do que sadismo ao cometer tanta maldade em nome de uma mulher.
“Flecha…” espalmou a mão. “Uma flecha… passando pelo coração…”
A menção misteriosa fazia descer tremores pela espinha, representando um mistério grande demais para ser solucionado por ele, cuja energia permitiria somente mais um gesto.
“Ryan, eu vou ter que deixar essa contigo.”
A temperatura acumulada atingiu o ponto certo e a ocasião se encaixou como uma luva, requerendo o último impulso de força. Errar esse passo crucial levaria à morte de muitos vários.
— Jacob… — suspirou, tão baixo que nem ele mesmo ouviu. — Eu sei quem pode te ajudar…
— RRRRRRRRAAAAAAAGH…! MORRER…! VAI MORRER…!
Ambos lançaram investidas simultâneas e os lábios se separaram, prontos para outra exclamação.
— Mas antes…
Dois conjuntos, um de cinco e o outro de dois dedos, tomaram a linha de frente.
— Vai ter que parar de gritar…!
O odor de carne queimada tomou conta das imediações — um cheiro repugnante, somando à ânsia de vômito ocasionada pela hipoglicemia —, ao envolver-lhe o pescoço, cauterizando as pregas vocais.
— Haaaaaaaagh…! — forçou o foco, prendendo-o no chão. — Sem… gritos…!
Incapacitado de falar, a agonia de Jacob expôs-se ao ápice, exposta em cada canto do corpo e, principalmente, nos braços chicoteantes.
“Droga… eu fiquei totalmente sem força…!”
A falta de energia o acertou de uma só vez; de visão turva, perdeu sensibilidade tátil e os sons se transformaram em meros ecos distantes.
“Ryan… Eu… ganhei tempo…”
Abaixo de si, sentiu a explosão da figura em sofrimento, e a última sensação que teve foi a de um bizarro giro em translação, seguida do impacto contra algo que prontamente cedeu.
“E… Stella… deixa eu saber…”
O acinzentado devorou o horizonte aos poucos, destruindo o azul, os variados tons de verde e o alaranjado da grande esfera acima, luminosa e calorosa, tal qual as memórias onde ela vivia.
“... Eu pareci legal… aí de cima…?”
Colidiu com o gramado dois segundos mais tarde, já desacordado. Ao redor se depositou a miríade de cacos da vidraça, alertando a mídia e as equipes de resgate.
[...]
— … — abriu a boca, mas dela, nada saiu. Arruinada, a garganta foi reduzida a um sulco queimado na carne.
As dores atravessando o corpo inteiro não significavam nada e a energia que o movia não o permitia se importar.
“Abby… Abby… Abby…”
Restava mais um obstáculo — o pior de todos —, aquele que a tocou, apresentando a coragem de desafiar a ordem tão natural das coisas.
“Abby… Abby…!”
Somente ele tinha a posse sobre qualquer coisa que dissesse respeito a ela; Abigail pertencia a ele.
“Abby…!”
As batidas do coração se tornaram distantes, quase imperceptíveis, indicando ter fugido para o lado de fora, longe, outra vez, do alcance imediato das suas sedentas mãos.
“Ele…”
Outro som foi captado no ar, mais próximo, incômodo e desconfortável. Detentor de um ritmo definido, a marcha o confundia, afogando a melodia tão doce, composta por sua amada.
“Ele…!”
O absoluto desgosto o levou a convulsionar e, injetado de nova energia, conectou o que sobrou na forma decadente no chão repleto de vidro perfurante. Havia uma última missão a ser feita.
— Olhem lá…! É… Oh, meu Deus…! Ele… Ele precisa de socorro urgente…!
A fonte do som horrível se pôs em seu caminho. Cinco batidas se misturavam, sem sincronia ou beleza, plenas de tempos incorretos.
— Rapaz…! Rapaz! — O chamou, freneticamente. — Ele vai morrer…! Precisamos ajudá-lo!
“Obstáculos… Mais obstáculos…!”
— Oficial Burns, me ajude a carregá-lo! Não podemos arriscar machucá-lo mais…!
— A garganta dele… como continua respirando?! Foi… destroçada…!
— Não vai continuar respirando por muito tempo se não o tirarmos daqui…! Falem menos e se mobilizem mais…!
“Essas vozes… vozes…!” O contato de incontáveis pares de mãos o arrastava para mais longe do objetivo. “Esse barulho…!”
O falatório sem fim interrompia o som que tanto desejava ouvir, e a infinidade de mãos, apalpando cada pedaço e extremidade, injetaram mais adrenalina na corrente sanguínea.
— Como alguém pode sobreviver desse jeito?! Isso… Isso é impossível…!
“Calem a boca…”
— Esse não é o tipo de pergunta que nós vamos responder… Precisamos de um médico.
“Esse barulho… Parem com o barulho…!”
— De qualquer forma, é verdadeiramente um milagre… Devemos comemorar mais essa conquista.
“Parem de me arrastar…”
— O piso abaixo fica no fim desse corredor…! Temos que ser rápidos!
“Longe dela…! Longe dela não…!”
— Aqui! Eu assumo! Deixe ele comigo e com o Nathan! Nós vamos transportá-lo, e…!
— Uh… Pessoal… Vocês estão sentindo isso?
“Não longe da minha Abigail…!”
— O ar… tá vibrando… Bizarro…
— Agora que você menciona, eu também tô sentindo… Será que a gente…
“Eu mandei pararem de fazer barulho…!”