Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 82: Divergência em União
"Steve… é melhor você nem pensar em morrer antes que eu chegue aí…!"
Os passos acelerados enviavam flashes dolorosos, advindos dos joelhos e que, por tão pouco que incomodassem, o restringiam de atingir a total velocidade.
"Não ajuda eu estar carregando uma gigante nas costas…!"
Olivia era tão alta quanto ele, além de quase tão pesada e, no topo disso, os cabelos longos e desgrenhados arranhavam o pescoço, criando coceiras difíceis de ignorar.
"Ah, mas tudo na vida tem como piorar…!" chutou uma porta qualquer, invadindo a sala de aula. "... E sempre que tiver a chance, vai piorar…!"
Policiais, no mesmo andar que ele, separados por, talvez, uma dezena de metros. Ao se esconder, permaneceu ao lado da porta, focado em fazer o mínimo de barulho.
— … Parece que a minha primeira opinião a seu respeito era, de fato, a correta.
— Hkk…! — O sopro no ouvido o tomou de surpresa, o obrigando a suprimir a exclamação a escalar a garganta. — Desde quando você tá acordada?!
A encarou, em um misto de decepção e incredulidade. Devagar, soltou a enorme garota, deixando-a se apoiar, sozinha, no chão da sala.
— Desde quando você me carregou, eu suponho — respondeu secamente. — Foi uma boa viagem, com exceção daqueles saltos. Aquilo machucou.
— Você podia ter dito ou mostrado que estava acordada…! Eu teria te deixado lá fora!
— E desistir da chance de ser carregada? Nunca. Na realidade, eu sequer consigo andar direito e você não ia ser tão caridoso se soubesse que eu estava acordada.
Esse comportamento, repleto de vias de fato e respostas afiadamente lógicas, o arrancava do sério, o lembrando de outra pessoa.
— E, além disso, se quisesse descobrir o meu estado de consciência, você teria simplesmente checado, ou usado seus poderes para ver.
A revelação o deixou em choque.
— O quanto você sabe…? — A pergunta veio cautelosa. — Na verdade… acho que eu mesmo posso descobrir…!
O Savoia elevou a destra e a trouxe para mais perto da testa da jovem. Ela sabia demais e deixar tamanho conhecimento escapar tão discriminadamente era uma ideia terrível.
“Se ela contar a esses policiais sobre mim ou qualquer um dos outros…!”
Sequer quis perder tempo pensando nas implicações de um vazamento tão rico. Ryan tinha de fazer o que fosse preciso para assegurar que poderia respirar em paz por mais alguns dias, caso o fim não viesse ali.
Assistiu filmes o bastante e não desejava o FBI ou a CIA invadindo seu domicílio às 4 da tarde de um domingo tranquilo e preguiçoso, para capturar a ele e sua irmã para uso em testes genéticos.
“Espera aí…” A resposta obtida, porém, foi estranha. “Por que ela não tá tentando resistir…?”
Sem reação, assistiu a palma se aproximar, apenas falando ao estar a poucos centímetros de tocar.
— Não vai ter necessidade disso. Acima de tudo, mesmo que você faça isso, aqui, agora, não vai impedir os outros vários que já conhecem essa realidade, muitos deles bem melhor do que eu.
O aspecto em seus olhos não se alterou e ela não esboçou o mínimo de medo. Pela frase inteira, manteve-se estóica e inabalável, convicta dos argumentos apresentados.
— Fóruns da internet… Foi desses lugares que eu extraí essa informação. Pessoas compartilham evidência sobre esse tipo de coisa a todo momento.
E a noção de tamanha confiança o aterrorizava. Na visão dele, a disposição por se entregar aos fatos e deixar-se cair sobre eles jamais tomou um tom tão ameaçador.
— Fóruns da internet? Espalhando evidência…? Eu fiz a minha pesquisa e…! — engasgou. — Você só pode estar mentindo…!
Hesitou brevemente, porém a provocação o lembrou daquilo que buscava. Tinha de buscar na mente dela, cavar até o último canto e incendiar as lembranças de tudo isso.
O brilho arroxeado trilhou o caminho rumo a ela, impedido pela imensa parede, fria e seca, a representar sua forma.
— Suponho que você não soube… Uma família foi morta na semana passada, na China. Todos foram assassinados por uma árvore.
Rebateu a encarada, profundamente. Ao contrário dos dele, seus olhos não brilhavam, muito mais lembrando a direta antítese — carregavam a sensação de morte, sem fundo ou princípio —, um azulado turvo, escuro.
— Eu vi as imagens dos corpos e sei que não há como uma árvore crescer tão rápido, a ponto de empalar quatro pessoas. Isso é irracional.
Por própria volição, segurou o punho dele, forçando a palma aberta contra a testa.
— Tudo o que falo é a verdade, mas se, ainda assim, quiser checar por si mesmo, então esteja livre para fazer isso.
Interagir com ela parecia errado e não no sentido de “algo faltando”, mas sim, como se cada componente houvesse sido substituído, trocado por algo novo e jamais antes visto.
— Você…
Entre várias, uma pergunta restou, triunfante, entre as centenas que foram brutalmente assassinadas na duração da curta conversa.
— O que é você…?
A leu, somente para ter certeza e, dentro da mente, viu coisas incompreensíveis.
Mistos de cores, sons e formas, impossíveis de interpretar e ao contrário dos caminhos tortos, porém coesos o bastante, existam linhas sem saída, num labirinto sem fim.
Não compreendia os padrões ou a maneira de organização, gerados pela, até então, mais confusa mente que já invadiu.
“O que é isso?”
A sensação era a de ler algo escrito em chinês — não tinha a menor impressão de como iniciar ou onde, em exato, terminaria —, algo fora de sua realidade, de natureza quase mística e ininteligível.
Silencioso, distanciou a mão, abalado com a revelação de não poder entendê-la.
— A maioria das pessoas não pergunta dessa forma. — A moça o fitou, enigmática e respondeu de forma monótona e desalmada. — Elas geralmente se questionam o que eu tenho.
O silêncio de poucos segundos pareceu se esticar por vários minutos, enquanto ele cavava pela resposta, e muito antes de sequer ter a chance de chutar, ela interveio.
— Eu vou me entregar para a polícia. Use o tempo que ganhar para pensar em alguma coisa.
O tornozelo visivelmente inchado acrescentou à dificuldade de ficar em pé. Com firmeza, a forma gigante da adolescente contou com o apoio da cadeira mais próxima.
— Espera aí…! Você não pode só sair…! — Em pânico, Ryan a agarrou pelo punho.
— Com medo que eu conte o que eu sei a seu respeito, já que não consegue me calar?
Mostrando a totalidade de sua força, balançou o braço e se livrou, o encarando por cima do ombro.
— Eu, pessoalmente, não te odeio, mas também não posso dizer que gosto… Já as outras, simplesmente te detestavam.
O uso do passado na conjugação o levou a morder a língua. Amargo, Ryan recuou e manteve os punhos para si mesmo, pedindo desculpas sem o uso de palavras.
— Elas não gostavam do jeito como você agia e, principalmente, do risco que passou a representar. Vou deixar que pense um pouco no que desejo dizer com isso — pausou, e ele não demonstrou estar prestes a interrompê-la. — Mas, fato é que, para ela, você importa bastante.
Se algo aprendeu, foi que interrompê-la baixava as chances de se ter as respostas desejadas, logo, por mais que tanto desejasse rebater e indagar, engoliu o desejo e escutou.
— Quando ela nos contactou no chat em grupo, falando tantas coisas sobre esse “cara aleatório” que conheceu no fim de semana, logo percebi do que se tratava. Do jeito como ela falou, foi fantástico demais para ser normal.
O ar exterior adentrou o ambiente outra vez, reciclando a atmosfera e a gigante mulher o deixou, travando a barreira para separá-los.
— Espera…!
Fez seu melhor para alcançá-la, sendo forçado a parar quando escutou as vozes discutindo ao longe, cujo significado foi incapaz de decifrar; permanecer calado passou a ser a única opção.
[...]
— Olhem! A sobrevivente está sendo retirada…!
A corrida do oficial, tão desesperada, foi notada com um misto de apreensão e imensa felicidade por parte do corpo de resgate. Em esperança, o semblante de um sorriso ocupou seus interiores.
— Ela parece bem, apenas desmaiada…! — Martin de pronto se ajoelhou, pondo a garota cuidadosamente no chão de concreto da fachada. — Está respirando, mas vai precisar de socorro especializado…!
Aos poucos, mais socorro chegava ao local, preparando pessoal e ferramentas para atuar e entre esses, uma equipe de socorristas veio até eles, conduzindo uma maca.
Sem delongas, um dos três homens se abaixou, mensurando pulso, incursões respiratórias e oxigenação do sangue, dando o veredito em questão de segundos.
— Frequência cardíaca muito baixa… Incursões respiratórias curtas e superficiais, e… — tocou a testa. — … um pouco de suor frio, mas sem palidez e com temperatura adequada. Está apenas desmaiada, sem sinais de hemorragia ou trauma físico… com exceção disso.
O tornozelo esquerdo, ausente de sapato, contava com inchaço visível por baixo da meia branca. Com cuidado, o segundo na equipe removeu a pequena peça, revelando a imensa marca arroxeada.
— Pode ter sido pisoteada ou simplesmente tropeçado no meio de todo o caos, embora a segunda hipótese seja bem mais crível, dada a integridade preservada do restante do corpo. Mesmo desmaiada, não aparenta estar dessaturando de forma alarmante.
De forma ágil, a equipe se uniu para preparar a maca. No olhar de qualquer observador, o serviço de transferir o corpo da estudante entre superfícies parecia ser fácil, bastando virar e mudar de posição, algo enganadoramente complexo e repleto de pequenos detalhes.
— Vamos levá-la ao carro e assim que chegar… — No meio das ordens, o socorrista-chefe foi interrompido. — O quê…?!
— Meu Deus…! — gritou uma moradora da vizinhança. — Vocês viram isso…?!
Distraído, o profissional somente escutou o grande estrondo e o som de vidro partido que veio em seguida, sem presenciar as intensas chamas vivas que escapuliram rumo ao ar livre.
O acontecimento elevou o tumulto a níveis alarmantes e logo toda a população compartilhava das piores teorias quanto ao que ocorria lá dentro.
— Esses terroristas…! — exclamou um homem. — Esse governo incompetente nunca fez nada desde que surgiram…!
— Oh, céus… Será isso um prelúdio do fim dos tempos…? — Uma senhora de ampla idade abraçou a si mesma.
— Os dias dos Estados Unidos não podem estar acabando… — Outro rapaz amargou a hipótese.
A série de eventos criminais vivenciados por todo o território nunca se mostraram tão agressivamente quanto naquela escola, e jamais em suas vidas esses cidadãos imaginariam tão remoto lugar como alvo.
— Ah… droga… — O homem da lei prontamente se ergueu, trêmulo diante do pensamento do que poderia estar ocorrendo aos seus colegas. — Eu tenho que voltar lá, e rápido…!
Em quase quatro anos, nenhuma evidência ou pista foi encontrada, mas agora, os autores, mesmo que apenas em parte, estavam ao alcance da mão soberana da lei.
“Vai ser nossa chance de pegá-los…!”
Sem perder mais tempo, engatilhou a pistola e acelerou em direção à construção, transtornado.
[...]
— Por aqui!
Os passos descoordenados seguiram a voz impositiva da profissional rumo ao corredor à esquerda. Velozes, os seis se mantinham alertas à possibilidade de emboscadas.
“Esses filhos da puta… deixaram o lugar inteiro uma bagunça!” Pisou com cuidado, evitando as maiores lascas de madeira e cacos de vidro. Não alertar o inimigo sempre seria prioridade. “Precisamos chegar depressa ao lugar daquele grito…”
A oficial Burns, a todo segundo, impunha esforço para acalmar o misto de extrema apreensão e o ódio destilado pelo autor da cena no andar inferior.
“Prender ele não vai ser o suficiente…” agarrou a arma com mais força, quase pressionando o gatilho. “Para alguém que cometeu um crime desses, de uma escala como aquela…!”
Trancou os dentes, notando que qualquer esforço a mais a levaria a deflagrar uma valiosa cápsula. Resignada a concluir a missão, tomou todo o ar cujos pulmões foram capazes de suportar e tomou o rumo para a direita.
— Huh?!
A equipe parou de forma conjunta, agraciados pela visão do segundo milagre do dia, na forma de uma nova sobrevivente.
— Garota…!
Amber não mediu velocidade nas passadas para chegar até ela, abordando-a um tanto agressivamente, onde, logo nos primeiros segundos de contato, a capturou de corpo inteiro.
— Está tudo bem?! Não está ferida?! Me diga, você viu outros se escondendo?!
Os longos cabelos da adolescente ficaram cobertos de cinzas e fuligem, dando-lhes uma tonalidade quase grisalha. Com relativa calma, ela afastou os fios, densos e ondulados, antes de falar.
— Eu só torci o tornozelo, mas estou bem… Fora isso… eu não encontrei nenhum outro estudante se escondendo aqui em cima…
Alívio foi o sentimento compartilhado entre cada um; quanto mais sobreviventes se pudesse encontrar, maiores as chances das coisas não terem corrido de maneira tão ruim quanto teorizado.
— Nós vamos te ajudar a descer, certo? — A mulher acenou, devagar. — Pessoal… Eu vou precisar que ao menos dois de vocês a ajudem a descer…
— Um vai ser o suficiente.
A interrupção da simples estudante não foi esperada. Simplesmente, nenhum dos policiais esperava por assertividade em uma vítima, ou ao menos, não a ponto de decidir como queria ser salva.
— Um de vocês será suficiente; eu consigo andar sozinha, com um pouco de dificuldades. Só vou precisar de ajuda para descer as escadas, mas assim que chegar ao saguão, eu sigo caminho sozinha.
A expressão sólida não indicava o menor traço de medo, quase os levando a se sentirem humilhados pela calmaria a jorrar livre desses olhos caídos.
A oficial Burns, porém, não podia aceitar ser ordenada por uma mera garota.
— Não. Nós não podemos fazer isso. Iremos resgatar você do jeito certo, porque…!
CRACK! CRACK!
Outro tremor abalou as paredes e arrancou mínimos fragmentos do teto. Por um breve segundo, o choque desativou as luzes do local, destruindo algumas das lâmpadas.
— Ou, você poderia ser esperta e seguir a minha sugestão — explicou, soando tão tranquila quanto inicialmente. — Vai precisar de tantos quanto puder lá em cima… se não quiserem acabar morrendo.
A mulher da lei a fitou com olhos afiados. Infelizmente, faltava o tempo para fazer perguntas e mais indagações quanto ao fato daquilo soar tão normal para essa menina qualquer.
— Certo… — assentiu com amargor. — Julian, você leva ela… Quanto ao resto de nós… vamos subir…
Dentre os seis, o segundo mais alto tomou a frente, trocando sinais com a designada chefe da operação. Sem palavras, a equipe, agora de cinco, bateu em direção ao lance de escadas à frente.
— Julian, certo? — questionou, o analisando de cima a baixo.
O homem alto e de cabelos escuros, bem-cortados e curtos, não respondeu coisa alguma e, de fato, passava a impressão de ter sido intimidado pela postura dela.
Algo nela o assombrava imensamente e não tinha a menor ideia de por onde começar a definir a natureza estranha do ser humano à frente.
“Ela… me assusta…” pensou, afogando a frase profundamente, na base da garganta. Não gostava do risco remoto de afirmá-la ao aberto.
O formato, as cores, o aspecto de pertencerem a um peixe morto… Os olhos daquela moça eram desagradáveis, estudando cada gesto e movimento dele…
— Meu tornozelo dói e você foi encarregado de me conduzir até lá embaixo…
De jeito simples, ela não parecia humana.
— … Então, eu espero que não se importe em me carregar… Não que você tenha alguma opção.
Friamente, a criatura, uns dez centímetros mais alta que ele, o tocou no ombro, suspirando, bem perto do ouvido esquerdo.
— Pelo que ainda está esperando?